segunda-feira, 19 de outubro de 2009

JOHN LE CARRÉ



O ÚLTIMO DOS INOCENTES

Quando se pondera a especificidade da narrativa britânica, é costume salientar-se a originalidade do romance de humor. Talvez este seja, de facto, uma marca peculiar desta literatura. Mas seguramente que não é o seu veio mais determinante; sem nos dispersarmos muito, creio que é simplista arquitectar a história da narrativa na Grã-Bretanha a partir de um tronco central. Lembro, a título de exemplo, a importância que tem – até pelas ramificações que se entrelaçam noutros géneros narrativos – a chamada narrativa de viagens. Hoje, e a propósito de Single & Single de John Le Carré, gostaria de salientar a importância crucial que tem o romance de problemática ética nesta literatura; mesmo tendo em consideração a afirmação de Gide de que o romance é, por excelência, a expressão artística da ética, e, por conseguinte, que esta componente está, mais ou menos, subjacente a todas as grandes narrativas, recordo a importância dos nomes de Joseph Conrad, Graham Greene e John Le Carré na literatura inglesa deste século e de como a problemática ética foi ou é a motivação central para as suas construções romanescas.

É certo que os autores citados fazem parte, em termos estéticos, da mesma árvore genealógica. E, nesse sentido, Le Carré é um claro sucedâneo – no bom sentido da palavra – de Conrad e Greene. Estes autores procuraram, de acordo com a sua própria vivência e com as inquietações que o seu tempo levantava, definir os campos do Bem e do Mal. Repare-se, por exemplo, no caso de Conrad, como este encarou a Natureza como um Caos que se infiltrava no próprio Homem e como a Ordem se estabelecia através de uma civilização de princípios e valores que se manifestava, ao nível do indivíduo, contra os aspectos em que a Natureza (ou a matéria) procurava “contaminar” o carácter dos seus heróis. E como este modo de formular a problemática moral está estreitamente associado à consolidação universal do capitalismo e à implantação de novos modelos coloniais.

Uma das “coroas de glória” de Le Carré é ser, provavelmente, um dos poucos autores que, tendo assumido o estatuto de escritor de romances de género (e de um género considerado “menor”), atingiu uma envergadura – com todo o respeito e admiração que nos podem causar as “artes” de um Chandler, de um Hammett ou mesmo de uma Highsmith – que extravasa bem as fronteiras que a si próprio delimitou. E a sua originalidade está na torturada consciência que possui de que os campos do Bem e do Mal já não têm fronteiras tão nítidas como nos tempos de Conrad, por exemplo, e que o romance de espionagem servia na perfeição para confirmar estes seus desígnios. É certo que, nos seus primeiros romances, ainda muito enredados nas teias da espionagem/contra-espionagem, parecia existir uma luta constante entre os valores da consciência individual e os interesses da consciência colectiva; mas já não se pode afirmar que estes possam decalcar os referidos campos: pelo contrário, o Bem e o Mal parecem balsas que navegam numas ou noutras águas, conforme as circunstâncias trágicas que vivem os seus heróis.

Um dos aspectos mais significativos dos romances de Le Carré é que, em todos eles, se efectua, de uma forma exemplar quanto à integração na própria trama, uma panorâmica sobre a situação política e económica do período no qual a obra se situa e que, quase sempre, é o período coevo à sua própria redacção. É esse um dos fascínios das estruturas narrativas de Le Carré e, seguramente, uma das razões, porque adquiriu um público fiel e ávido das suas obras. Tanto mais que Le Carré, neste aspecto como noutros, nunca defraudou os seus leitores: todos os seus romances revelam uma invulgar argúcia e uma muito pertinente perspectiva na análise das conjunturas históricas sobre as quais as suas obras se debruçam.

Quando terminou a Guerra Fria, houve quem prognosticasse o fim da carreira literária de Le Carré, já que se achava que o seu “filão de inspiração” tinha terminado. Mais uma vez, avaliou-se mal as efectivas potencialidades deste autor. De facto, com uma maleabilidade criativa notável, Le Carré abandonou os universos sui generis da espionagem, onde se sentia como peixe na água, para a explorar outras “guerras” (que, no fundo, apenas são variantes em que se converteu a Guerra Fria) como cenários dos seus romances. E, entre estes, destaca-se o tráfico de droga e os meandros do crime organizado ao nível mundial e o modo como estes estão estreitamente imbricados com os interesses e as ambições políticas.

O tema de Single & Single (o título do romance é o nome de uma firma de advogados e de investidores financeiros) é o branqueamento dos lucros resultantes do comércio ilícito. De facto, como o autor bem fundamenta a certo passo do seu romance, a dimensão e os montantes actuais de facturação deste comércio, e em particular do tráfico de droga, tornam quase impossível que a sua acção seja alheia aos poderes instituídos (financeiros, económicos e políticos). Mais: segundo o autor, o sangue corrupto deste comércio criminoso já está a contaminar, directa ou indirectamente, todos os canais sociais, tornando-se difícil demarcar as fronteiras entre o crime organizado em termos mundiais e a restante sociedade. É esta situação, a que Le Carré dá o nome de código de “Hydra”, que serve com justeza para que coloque algumas interrogações que lhe são fundamentais: onde se situam hoje os campos do Bem e do Mal? Até que ponto pode um indivíduo considerar-se liberto do abraço tentacular do crime?

Por outro lado, este contexto é particularmente útil para que Le Carré se debruce, em Single & Single, sobre um dos temas nucleares do romance de problemática ética: o tema incómodo da traição (basta rever qualquer filme de Elia Kazan para perceber como o adjectivo não é gratuito). Em termos genéricos, pode considerar-se a traição como o repúdio consciente dos códigos éticos, mas em última instância afectivos, que nos unem a um grupo social e que fazem de nós um elo determinante do tecido da sociedade. Neste sentido, qualquer crime é uma traição. E é também neste quadro que se compreende o comportamento social de rejeição do traidor (e do criminoso), numa lógica de “olho por olho”: ao repúdio do traidor a sociedade responde com o ostracismo social. Contudo, habitualmente entende-se como traição o rompimento dos laços ou regras que unem o indivíduo a um grupo social mais restrito (ao amado, à família, à classe social, etc.) e onde a componente afectiva é mais visível. Além disso, pode suceder que entre os diversos níveis de códigos (os que unem o indivíduo à sociedade em geral e os que unem o individuo aos grupos sociais que em concreto o contextualizam) possam existir momentos de contradição e conflito, exigindo ao indivíduo uma opção e, por conseguinte, uma traição. Olivier Single, a personagem principal deste romance, vive um momento destes: entre as exigências do código social e as exigências dos códigos que o unem ao pai, ele “cede” aos primeiros, rompendo com os segundos. E tendo em conta o papel que o pai desempenha no branqueamento dos rendimentos da Máfia russa, a personagem principal sabe que o coloca, como a si e à sua família, em risco de vida, necessitando, por conseguinte de protecção da sociedade. Esta denúncia (que é a forma mais “explícita” de traição) do pai é resultante do seu desejo, radical e desesperado, de conquistar uma inocência que o dignifique e o leve a acreditar nos laços sociais (a sua relação com Sammy, o atrasado mental, filho da sua senhoria, que o ajuda nos seus números de malabarismo para miúdos, enquadra-se nesta sua tentativa de “renascimento” social). Simplesmente, a contaminação criminosa de toda a sociedade não só deixa de garantir a protecção dos seus familiares, como o leva a interrogar-se sobre a legitimidade moral da sua opção. No fundo, o que a personagem principal de Single & Single vem a perceber no desfecho dos conflitos (poder policial inglês/ Máfia russa; códigos sociais/códigos familiares) que o envolvem, é que todas as suas opções (legitimidade social/fidelidade aos códigos familiares) ocultam uma certeza: perante a precariedade, moral e física, dos corpos, só existe sentido na constância vibrante do afecto que se sente; todos os códigos normativos, públicos e privados, são uma roupagem que veste o vazio.

Um dos aspectos mais interessantes da estética narrativa de Le Carré é a importância que tem – como em todas as construções romanescas marcadamente devedoras da narrativa ficcional novecentista – a sua própria estrutura. Sem estar com análises de pormenor, gostaria, no entanto, de realçar a admirável arquitectura narrativa de Single & Single. Porém, não deixo de ceder à tentação de apresentar aqui um tópico para a compreensão da sua estética narrativa: o princípio – genuíno da espionagem – de que toda a realidade é uma teia de ocultações. Se se reparar bem, o percurso das personagens principais de Le Carré é sempre o mesmo: todas as situações em que se vêem envolvidas as encaminham para outras, onde se torna, gradualmente, mais explícita a motivação dos seus agentes. Parte-se, por isso, do princípio de que toda a realidade oculta outra (um princípio de insinceridade) e que o trabalho do escritor (com o auxílio do seu coadjuvante, a personagem principal), tal investigador social e “de almas”, é descobrir a verdade que, por essência, a realidade primeira nega ou oculta.

Por fim, deve ser realçada a tradução do casal Ramos que, ao acaso muito rigoroso das suas paixões literárias, tem efectuado um magnífico trabalho de divulgação da narrativa de língua inglesa e revelado, com traduções de elevada qualidade literária, ser uma das mais meritórias parelhas que labutam presentemente nesta área.



(Publicado no “Público” em 1999)


Título: Single & Single
Autor: John Le Carré
Tradução: Helena Ramos e Artur Ramos
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1999
305 págs., € 10,00



sábado, 18 de julho de 2009

JULIAN BARNES


O FIM DAS FRONTEIRAS


Nos finais da década de 70, quando, com uma nova geração, se percebeu que se formulava uma renovação das estratégias narrativas da literatura inglesa, tornou-se também claro que, o que unia os seus principais mentores, era - como acontece muitas vezes com o aparecimento de novas gerações literárias - o que rejeitavam: certo tipo de realismo, mais ou menos satírico, em que se tipificava, em registo de crónica de costumes, ambientes e situações sociais ou, por outro lado, certos métodos narrativos de cariz experimental e enfeudados a formulações teóricas de origem marcadamente académica. É certo que quase todos se mantiveram na órbita de um registo realista; mas procurando incutir-lhe um “matiz” que o transfigurava: ou uma intensa carga simbólica (Graham Swift), ou uma dimensão fantasmática (Ian McEwan), ou através do reforço do picarismo patético das situações até transformar as personagens em bufões histriónicos e impotentes perante as vertiginosas contradições da actual sociedade (Martin Amis), ou, por fim, numa reutilização puramente paródica dos modelos clássicos do realismo (Julian Barnes).

Do Outro Lado do Canal, a obra agora publicada deste último autor, é o seu primeiro livro de contos e, em termos estilísticos, desenvolve o percurso traçado por romances como O Papagaio de Flaubert e Uma História do Mundo em Dez Capítulos e Meio. É compreensível, no seu título, o fio condutor dos contos desta colectânea: o autor pretende, situando-os em diversos períodos históricos, expressar uma visão de “grande empatia” pelas relações civilizacionais anglo-francesas e, muito em particular, pelo povo francês. Não admira a motivação deste livro, já que é facilmente constatável que Julian Barnes é, de todos os autores ingleses contemporâneos, o que mais reconhece na sua obra o legado cultural e literário da França.

Porém, a recente publicação de um novo romance deste autor, intitulado England, England, permite perceber que estas duas obras estabelecem um conjunto com um determinado sentido estratégico: o de revelar ao leitor como um “olhar” literário, oriundo da mesma entidade/autor e orientado para dois lugares civilizacionais distintos, se define nos seus contornos. Ou, por outras palavras: como é que a literatura se pode definir como uma forma de “saber” específica. No fundo - e desculpe-se a ironia - uma contribuição prática para uma das mais constantes interrogações da teoria literária.

No mosaico destes contos destaca-se, antes do mais, a maestria de Julian Barnes em recriar, em redor de personagens muito distintas e peculiares, ambiências históricas e sociais bem diversificadas e, por outro lado, em orquestrá-los segundo tonalidades que permitam estabelecer, no todo da colectânea, um conjunto polifónico que vai desde o humor (de que o autor é um exímio artífice) ao nostálgico, do sentimental ao absurdamente trágico. Recordo, a título de exemplo somente, o conto Experiência, de um delicioso humor, e onde o autor confronta o bom-senso (um pouco hipócrita) dos ingleses com o despudor vanguardista de certa cultura francesa do princípio do século, demonstrando, de uma forma quase hilariante, como a aproximação da cultura inglesa ao movimento surrealista francês só poderia estabelecer-se no registo do equívoco; ou ainda o conto Para Todo o Sempre, onde uma velha senhora inglesa, irmã de um jovem que morreu na I Guerra Mundial, visita anualmente, de uma forma metódica e exaustiva, os cemitérios militares que estão dispersos por toda a França, vigiando obsessivamente o gradual alastramento do “grande esquecimento” que, sem sombra de dúvida, irá desfigurar numa nova paisagem esses sinais públicos do sofrimento de uma geração.

Nada há de novo nesta ambição de Julian Barnes em tentar delimitar os parâmetros civilizacionais de um povo. E, por outro lado, provoca sempre, em quem se confronta com essas tentativas, uma interrogação sobre a sua eficácia ou operacionalidade cognitiva. Talvez, por isso, um dos aspectos mais estimulantes de Do Outro Lado do Canal seja a ideia de que se situa na Mancha a fronteira entre duas Europas civilizacionalmente distintas (a do Norte e a do Sul), tendo a Inglaterra e a França como seus guardas-avançados. Nesse sentido, percebe-se o valor simbólico que Julian Barnes pertende transmitir ao túnel ferroviário que liga os dois países: ele comprova que estas diferenças começam a ter um carácter arqueológico e que toda uma prolongada época histórica se esfuma no tempo, levando com ela o prazer sedutor da descoberta de um outro. Daí, talvez, a urgência que o autor sentiu na redacção desta colectânea.

(Publicado no “Público” em 1999)


Título: Do Outro Lado do Canal
Autor: Julian Barnes
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Asa
Ano: 1999
157 págs., € 11,00



quarta-feira, 3 de junho de 2009

ALESSANDRO BARICCO


A PRÓPRIA VIDA, O MAR



A vida cultural e literária italiana, mesmo para quem já se habituou a segui-la com alguma atenção, não deixa de intrigar e de fascinar pelo seu dinamismo, pela criatividade dos seus agentes, pelo vigor do seu debate intelectual. É inegável que este país possui, mesmo afectado por alguns sinais de recessão, um pujante quadro editorial, publicando um número significativo de originais e de traduções, e que é estimulado por um conjunto diversificado de revistas, umas mais informativas, outras mais analíticas e teóricas, de índole cultural. E, contudo, os índices percentuais de leitura e de aquisições de livros em Itália são similares aos restantes países da Europa do Sul, que são, como é sabido, bastante baixos... Este facto deveria lembrar um princípio, um pouco esquecido, mas bastante elementar, a quem tem responsabilidades na política do sector do livro no nosso país: o de que é fundamental estabelecer uma política de promoção da leitura, bem ajustada à realidade, que, em articulação com uma estratégia pedagógica de ocupação dos tempos livres, permita tornar mais amplo e intenso o mercado editorial já existente; só assim, estimulando acções de proximidade, complementadas com uma presença mediática forte e diversificada, se conseguirá transformar o livro num objecto de vivência quotidiana que possibilitará o aparecimento de manifestações significativas de criatividade.

Estas considerações já vão, no entanto, longe das razões que as motivaram e que estão relacionadas com a edição no nosso país de mais um romance de Alessandro Baricco, Oceano Mar: é que o aparecimento da obra deste autor (que, com quarenta anos e três romances publicados, já obteve um amplo reconhecimento internacional) foi acompanhado por um aceso debate sobre a evolução estética da ficção em Itália, em que os comentadores a confrontaram com a de autores mais novos, actualmente arregimentados sob o epíteto de “literatura canibal”, como Enrico Brizzi (que ainda não foi traduzido para português). No essencial, o debate andou em torno de uma concepção do romance assente numa perspectiva realista e na capacidade de esta se metamorfosear para integrar e entender a mutabilidade da vida social “versus” uma concepção cujo objectivo é a construção de um universo estruturado a partir de critérios cuja lógica é apenas literária e consequente de necessidades intrínsecas à formalização narrativa de determinadas problemáticas éticas e/ou estéticas. De certo modo, esta polémica não é de hoje (vem, pelo menos, desde os tempos do neo-realismo italiano) e os seus contendores já adquiriram o “saber” de que está assente numa falsa antinomia: porém, esse “saber” não chega para que, em cada nova geração literária, ela não volte a colocar-se, como se fosse uma necessária força motriz para que a literatura se revitalize e progrida. Daí que, com cerca dez anos de intervalo, a actual polémica volte a reproduzir similares argumentos à que se processou em torno das obras de Aldo Busi e Daniel del Giudice.

Como o título da obra de Alessandro Baricco dá a entender, este romance é sobre o “mar”. Porém, e esta é já uma das originalidades desta obra, não tanto como meio ou espaço de circulação, como é habitualmente encarado, mas como realidade significante em si mesma.

Oceano Mar está organizado como um daqueles trípticos antigos que, ao fecharem as portadas, ocultam o quadro essencial. Na primeira parte, o autor vai colocando em cena (isto é, numa estalagem perto de uma praia) um conjunto de personagens particularmente fascinantes que, por um motivo ou outro, estão seduzidas pelo mar; na segunda, muito mais pequena que as outras, encontra-se o núcleo duro do romance - uma cena de náufragos numa jangada - onde se concentra a face “revelada” da significação do mar; a terceira regressa ao conjunto das personagens do primeiro painel e à forma como resolvem o seu destino após esta experiência de aproximação ao mar.

Cada uma das personagens de Oceano Mar possui uma representação do mar e é sob o seu efeito que, tal como uma borboleta cega pela luz, fica presa à orla dele. A conjugação destas representações permite, no entanto, salientar dois sentidos fulcrais: por um lado, ele é um “vazio de sentido” (uma tela branca onde o mar é “representado” com água do mar) onde só se reflecte o nosso olhar; por outro, é o referente concreto da “eterna mutabilidade” do tempo e do espaço. Por isso, a obsessiva preocupação de duas personagens, o pintor e o cientista, em descobrirem duas coisas complementares e diferentes: respectivamente, o “princípio” e o “fim” do mar.

Percebe-se, assim, que todas as personagens do romance, a coberto do seu fascínio pelo mar, têm qualquer coisa a resolver com o “tempo”: o pintor, na sua necessidade de se libertar da componente física da representação (a pornografia) para se reter exclusivamente na representação da eternidade em cada entidade física (o olhar); o cientista, na sua serena diluição de tempo à espera do ser amado, sabendo que ele corporizará todo o (seu) tempo; o padre que procura descobrir a eternidade e a infinitude material de Deus em cada ser em situação; a princesa, temendo a sua dissolvência na eternidade antes de a ver aflorar na própria vida; e, por fim, a adúltera (Ann Deverià) que, no seu “rosário do desejo”, vai constituindo uma “eternidade interior” através de momentos de transfiguração amorosa. Há, portanto, em cada uma delas, a convicção de que existe uma partilha do destino individual na mutabilidade eterna da vida: é essa “verdade transcendental” que, ao olharem a espuma da crista das ondas do mar, serena os hóspedes da estalagem de Almayer.

Contudo, só um deles saiu da orla e conheceu o “ventre do mar” (é o título do já referido painel central). E percebeu nele a gélida necessidade de sobreviver e como a imensidão da vida impõe a irrupção da morte: é no olhar que se cruza entre a vítima e o algoz, determinado pela infinitude do mar, que transparece a face de Deus. “A verdade”, que no mar pulsa, “só se concede no horror” e é a mesma que impele o corpo a superar todos os princípios e limites (éticos, ideológicos) e a impor-se sobre os campos devastados da loucura e do assassínio. Esta verdade não serena: pelo contrário, torna “inconsolável” quem a descobre (“A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”, diria o suicida Stig Dagerman). A personagem que tocou esta verdade nada tem a “dizer”, porque conhece a perfeição que enlouquece, sabe o passado e prevê o futuro, subsiste para cumprir o destino que o mar representa.

Porém, aqui chegado, depressa o leitor reconhece que o romance de Alessandro Baricco perde, quase de todo, o interesse. Até chegar à terceira parte, Oceano Mar tinha progredido num registo entre o lírico e o trágico, com alguns trechos de uma intensa beleza (deformada, contudo, às vezes, por um maneirismo esteticista irritante, do qual, são bons exemplos, o título do romance e o aparecimento, ao longo deste, de um conjunto de “efebos e ninfitas” que actuam como “emissários” do autor na sua função de interlocutores íntimos das personagens). No entanto, como se fosse insustentável manter a mesma intensidade estilística após o painel central, Alessandro Baricco dispersa toda a parte final numa significativa diversidade de registos (que, para além dos já referidos nas outras duas partes, vão desde o humor ao fantástico, passando pelo enigma metafórico, etc.), num afã de “consumir”, em rápidas pinceladas, as personagens no seu destino. Além disso, para concluir, remata, de uma forma fácil, Oceano Mar, colocando a figura do autor em cena (e associando-a a Deus e a um quarto fechado), num arremedo de “arte poética” que não é de todo conseguida. De facto, dá a sensação que, depois de aflorar a tal “verdade indizível”, o autor apenas sentiu necessidade de concluir o romance por razões formais. Esperemos que Alessandro Baricco um dia descubra a perfeição do inacabado...

Deve ser salientada a inegável qualidade da tradução.


Publicado no Público em 1998.



Título: Oceano Mar
Autor: Alessandro Baricco
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Difel
Ano: 1998
245 págs., € 12,50




sexta-feira, 1 de maio de 2009

ELISEO ALBERTO


O IRREMEDEÁVEL EXÍLIO

Desde há algumas décadas que a literatura cubana, em consequência de confrontos ideológicos com o poder castrista, de perseguições políticas e da presença constante da censura, é marcada por uma expressiva diáspora dos seus criadores - e este facto, apesar da sua dimensão obscurantista e sinistra, dá-lhe um estatuto peculiar no quadro da literatura contemporânea. Alguns dos escritores cubanos com maior irradiação internacional (recordo, a título de exemplo, os casos de Guillermo Cabrera Infante, do malogrado Reinaldo Arenas ou de Zoe Valdès) viveram ou vivem no exílio (no México, na Europa, nos Estados Unidos), sofrendo amargamente a circunstância de se encontrarem afastados do universo sociocultural que motiva a sua produção literária; mas, em paralelo, têm obtido inequívocas vantagens, em termos de projecção, por se radicarem na órbita dos grandes centros editoriais. Seja como for, hoje existe uma geração de escritores oriundos de Cuba, alguns deles integrando uma segunda geração a viver no exílio, que já abandonaram o espanhol como veículo de expressão literária (é o caso de alguns escritores residentes no E.U.A., como Cristina Gracia) ou que simplesmente abdicaram da ambiência da ilha das Caraíbas como temática dos seus livros. Porém - e um pouco a dar razão aos que afirmam que as dificuldades sociopolíticas são sempre favoráveis ao florescimento da arte narrativa -, a literatura cubana vive hoje um momento de significativa efervescência, ao ponto de haver quem considere que se está em presença de um autêntico “boom”.

Integra o plantel destes escritores cubanos no exílio o romancista Eliseo Alberto, de quem foi agora publicado no nosso país o romance A Fábula de José, e que se revela, mesmo para quem acompanha com algum interesse o percurso da literatura de Cuba, uma agradável descoberta. Contudo, Eliseo Alberto não é um recém-chegado à vida cultural cubana. Este autor, filho de um poeta e novelista de grande craveira, Eliseo Diego, já tinha publicado alguns livros de poesia, quando, como guionista e argumentista se tornou conhecido (recordo, por exemplo, o filme Guantanamera de Tomás Gutiérrez Alea). Já nesta primeira fase, o escritor teve alguns problemas com o poder político castrista; mas foi com a sua obra Informe Contra Mi Mesmo (onde narra como lhe foi solicitado pelos serviços de segurança do Estado que fizesse um relatório sobre as actividades políticas e culturais da sua família e, em particular, do seu pai) que se efectuou a ruptura inevitável. Depois, em 1998, atinge a consagração crítica e pública, com o romance Caracol Beach, ao obter o Prémio Alfaguara (um prestigiado prémio para originais da editora espanhola, aberto a todo o universo linguístico castelhano), ganho “ex-aequo” com uma obra do escritor Sergio Ramirez, ex-presidente da Nicarágua.

A Fábula de José parte de uma ideia que, segundo o autor, durante muito tempo amadureceu, e que nos parece, de princípio, um pouco frouxa e relativamente fácil: a história de um homem, um jovem emigrante cubano, radicado nos Estados Unidos, preso por assassínio, que é exposto numa jaula de um zoo, como representante de uma espécie de primata muito perigosa. Percebe-se, por esta síntese, que a acção do romance está contextualizada na comunidade cubana emigrada nos E.U.A., funcionando esta comunidade como uma espécie de universo “fechado” faulkneriano e com um valor metafórico que em muito ultrapassa esse contexto.

De facto, como o título indica, este romance é uma fábula. E, como todas as fábulas, a sua localização é pouco relevante. Em síntese, pode afirmar-se que esta fábula, de certo modo, ambiciona demonstrar que o sentido da existência do homem é libertar-se do seu circunstancialismo, é tentar conquistar uma dignidade que ilumine a opacidade do seu corpo, conseguindo, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos outros como ser. O que José, a personagem principal do romance de Eliseo Alberto, descobre na sua jaula, primeiro, com uma feroz resignação, depois, com a serena ansiedade de quem busca descobrir a fraternidade e o amor, é que, em todo o lado, é sempre possível construir um espaço de reserva onde irrompa uma irredutível liberdade. E que esta é, antes do mais, a expressiva reminiscência de um paraíso perdido, onde a existência ainda não está contaminada por uma absurda e radical solidão.

É evidente que pode ver-se, no percurso da personagem principal de A Fábula de José, uma metáfora da necessidade de fuga, de reconstruir no exílio uma existência livre e digna, por parte do povo cubano. Seguramente que o romance terá também este sentido. Mas o seu mérito primordial é conseguir construir uma narrativa que supera de forma inequívoca esta perspectiva mais circunstancial.

Refira-se ainda que A Fábula de José, mesmo descaindo, aqui e além, em termos estilísticos, para os modelos com que se tipificou, de uma forma redutora, a literatura da América hispânica da últimas décadas (em particular, aquilo que se tem chamado “realismo fantástico”), tem uma invulgar qualidade poética, realçando-se a originalidade de muitas situações, o humor e a coloquialidade inteligente dos diálogos, mas, em especial, o excelente friso de personagens secundárias, arquitectadas com a intensidade de quem sabe que existe, no anonimato da vida, uma terrível, e por vezes dolorosa, magnificência. Por fim, é de toda a justiça salientar a exemplar tradução deste romance, porque é, sem sombra de dúvida, um dos atractivos desta edição.

Publicado no Público em 2001.

Título: A Fábula de José
Autor: Eliseo Alberto
Tradutor: Maria do Carmo Abreu
Editor: Ulisseia
Ano: 2001
181 págs., € 9,95



quarta-feira, 25 de março de 2009

BERNARDO ATXAGA 1


A GUERRA CIVIL


Quem tiver iniciado o conhecimento da obra do escritor basco Bernardo Atxaga com o seu romance Obabakoak, que ganhou o Prémio Nacional de Literatura de Espanha em 1989 e lançou a sua obra nos circuitos internacionais de edição, ficará provavelmente um pouco desiludido ao ler o romance Um Homem Só, agora editado no nosso país. No entanto, este sentimento “distorce” uma avaliação correcta dos dois romances: não se deve esquecer que Obabakoak é um “caso” muito peculiar e, por conseguinte, quase impossível de correlacionar seja com que obra for, mesmo do próprio autor.

De facto, poucos casos haverá na história literária de uma obra que “se assuma” como fundadora de uma literatura nacional escrita, como sucedia com Obabakoak. Obviamente não era a primeira obra em “euskara”. Mas Bernardo Atxaga, ao iniciar este projecto, pretendia, através de um árduo trabalho sobre a língua materna, conciliar a língua literária com os seus leitores e, dessa forma, refundar uma literatura. Esta circunstância transmitia uma gravidade quase mítica a Obabakoak que transparecia na fluidez musical das palavras e na estrutura da obra: era preciso “recriar” as vozes, as histórias, as personagens e os lugares de uma cultura, transpondo-os para uma geografia imaginária mas, ao mesmo tempo, referenciável. O resultado foi um romance onde o humor, a inteligência afectiva, a variedade tonal estabeleciam uma invulgar e complexa teia de nexos entre os elementos estruturantes, levando ao reconhecimento de que Obabakoak não só, de certo modo, refundava uma literatura, como se revelava uma das obras mais importantes das letras espanholas (?) do pós-guerra.

Um Homem Só, o romance agora publicado e excelentemente traduzido (a obra de Bernardo Atxaga tem sido bafejada pela sorte de ter muito bons tradutores no nosso país), não pretende ter as mesmas ambições. Parece, numa primeira leitura, centrar-se no “clima psicológico” que vivem, nos dias de hoje, os (ex-)guerrilheiros nacionalistas e, por consequência, no estádio actual da luta autonómica do país basco. Com esse fim, narra, utilizando a linearidade convencional do romance clássico, os últimos cinco dias de um ex-guerrilheiro que, após a prisão, resolve adquirir, em conjunto com antigos companheiros de luta, um hotel nos arredores de Barcelona. Ao longo da narração, percebe-se que esse homem, cansado e um pouco descrente das causas que abraçou, se satisfaz a gastar os dias com pequenos prazeres e ódios de estimação, amores fortuitos e amizades mais ou menos cúmplices. No entanto, um pouco por sentimento de culpa por ter abandonado a luta em que acreditara, um pouco para combater o tédio dos seus dias, resolve envolver-se num apoio pontual aos seus antigos companheiros de armas, situação essa que se vai revelar de um risco imprevisível.

É só quando conclui a leitura da obra, e se encontra envolvido num desfecho trágico e emotivo, que o leitor percebe, na placidez narrativa de O Homem Só, uma armadilha. E compreende que Bernardo Atxaga procurou revelar, pelo lado mais difícil, um facto óbvio, mas esquecido de forma intencional: aquilo a que se chama terrorismo é uma forma variante da guerra civil, e, por isso mesmo, os papéis da vítima e do algoz são permanentemente revertíveis, conforme o lugar em que se situa a dor e o sofrimento - no fundo, aquilo que é partilhado por todos. E que, além disso, é impossível escapar a essa situação de guerra civil, porque, antes do mais, ela é a expressão do torvelinho de fantasmas, inquietações e medos que atravessam os dias: todos somos “homens sós”, procurando uma benfazeja paz que, de forma inevitável, só se alcançará na água tépida da morte.

Bernardo Atxaga construiu, com O Homem Só, um romance talvez não tão importante em termos literários como Obabakoak... Mas, sem dúvida, é um testemunho pungente e decisivo para compreender a necessidade de existir um espírito de tolerância e abertura com vista à resolução do problema nacional basco.

Publicado no Público em 1998.

Título: Um Homem Só
Autor: Bernardo Atxaga
Tradução (do castelhano): Maria do Carmo Abreu
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
342 págs., € 15,96