quarta-feira, 3 de junho de 2009

ALESSANDRO BARICCO


A PRÓPRIA VIDA, O MAR



A vida cultural e literária italiana, mesmo para quem já se habituou a segui-la com alguma atenção, não deixa de intrigar e de fascinar pelo seu dinamismo, pela criatividade dos seus agentes, pelo vigor do seu debate intelectual. É inegável que este país possui, mesmo afectado por alguns sinais de recessão, um pujante quadro editorial, publicando um número significativo de originais e de traduções, e que é estimulado por um conjunto diversificado de revistas, umas mais informativas, outras mais analíticas e teóricas, de índole cultural. E, contudo, os índices percentuais de leitura e de aquisições de livros em Itália são similares aos restantes países da Europa do Sul, que são, como é sabido, bastante baixos... Este facto deveria lembrar um princípio, um pouco esquecido, mas bastante elementar, a quem tem responsabilidades na política do sector do livro no nosso país: o de que é fundamental estabelecer uma política de promoção da leitura, bem ajustada à realidade, que, em articulação com uma estratégia pedagógica de ocupação dos tempos livres, permita tornar mais amplo e intenso o mercado editorial já existente; só assim, estimulando acções de proximidade, complementadas com uma presença mediática forte e diversificada, se conseguirá transformar o livro num objecto de vivência quotidiana que possibilitará o aparecimento de manifestações significativas de criatividade.

Estas considerações já vão, no entanto, longe das razões que as motivaram e que estão relacionadas com a edição no nosso país de mais um romance de Alessandro Baricco, Oceano Mar: é que o aparecimento da obra deste autor (que, com quarenta anos e três romances publicados, já obteve um amplo reconhecimento internacional) foi acompanhado por um aceso debate sobre a evolução estética da ficção em Itália, em que os comentadores a confrontaram com a de autores mais novos, actualmente arregimentados sob o epíteto de “literatura canibal”, como Enrico Brizzi (que ainda não foi traduzido para português). No essencial, o debate andou em torno de uma concepção do romance assente numa perspectiva realista e na capacidade de esta se metamorfosear para integrar e entender a mutabilidade da vida social “versus” uma concepção cujo objectivo é a construção de um universo estruturado a partir de critérios cuja lógica é apenas literária e consequente de necessidades intrínsecas à formalização narrativa de determinadas problemáticas éticas e/ou estéticas. De certo modo, esta polémica não é de hoje (vem, pelo menos, desde os tempos do neo-realismo italiano) e os seus contendores já adquiriram o “saber” de que está assente numa falsa antinomia: porém, esse “saber” não chega para que, em cada nova geração literária, ela não volte a colocar-se, como se fosse uma necessária força motriz para que a literatura se revitalize e progrida. Daí que, com cerca dez anos de intervalo, a actual polémica volte a reproduzir similares argumentos à que se processou em torno das obras de Aldo Busi e Daniel del Giudice.

Como o título da obra de Alessandro Baricco dá a entender, este romance é sobre o “mar”. Porém, e esta é já uma das originalidades desta obra, não tanto como meio ou espaço de circulação, como é habitualmente encarado, mas como realidade significante em si mesma.

Oceano Mar está organizado como um daqueles trípticos antigos que, ao fecharem as portadas, ocultam o quadro essencial. Na primeira parte, o autor vai colocando em cena (isto é, numa estalagem perto de uma praia) um conjunto de personagens particularmente fascinantes que, por um motivo ou outro, estão seduzidas pelo mar; na segunda, muito mais pequena que as outras, encontra-se o núcleo duro do romance - uma cena de náufragos numa jangada - onde se concentra a face “revelada” da significação do mar; a terceira regressa ao conjunto das personagens do primeiro painel e à forma como resolvem o seu destino após esta experiência de aproximação ao mar.

Cada uma das personagens de Oceano Mar possui uma representação do mar e é sob o seu efeito que, tal como uma borboleta cega pela luz, fica presa à orla dele. A conjugação destas representações permite, no entanto, salientar dois sentidos fulcrais: por um lado, ele é um “vazio de sentido” (uma tela branca onde o mar é “representado” com água do mar) onde só se reflecte o nosso olhar; por outro, é o referente concreto da “eterna mutabilidade” do tempo e do espaço. Por isso, a obsessiva preocupação de duas personagens, o pintor e o cientista, em descobrirem duas coisas complementares e diferentes: respectivamente, o “princípio” e o “fim” do mar.

Percebe-se, assim, que todas as personagens do romance, a coberto do seu fascínio pelo mar, têm qualquer coisa a resolver com o “tempo”: o pintor, na sua necessidade de se libertar da componente física da representação (a pornografia) para se reter exclusivamente na representação da eternidade em cada entidade física (o olhar); o cientista, na sua serena diluição de tempo à espera do ser amado, sabendo que ele corporizará todo o (seu) tempo; o padre que procura descobrir a eternidade e a infinitude material de Deus em cada ser em situação; a princesa, temendo a sua dissolvência na eternidade antes de a ver aflorar na própria vida; e, por fim, a adúltera (Ann Deverià) que, no seu “rosário do desejo”, vai constituindo uma “eternidade interior” através de momentos de transfiguração amorosa. Há, portanto, em cada uma delas, a convicção de que existe uma partilha do destino individual na mutabilidade eterna da vida: é essa “verdade transcendental” que, ao olharem a espuma da crista das ondas do mar, serena os hóspedes da estalagem de Almayer.

Contudo, só um deles saiu da orla e conheceu o “ventre do mar” (é o título do já referido painel central). E percebeu nele a gélida necessidade de sobreviver e como a imensidão da vida impõe a irrupção da morte: é no olhar que se cruza entre a vítima e o algoz, determinado pela infinitude do mar, que transparece a face de Deus. “A verdade”, que no mar pulsa, “só se concede no horror” e é a mesma que impele o corpo a superar todos os princípios e limites (éticos, ideológicos) e a impor-se sobre os campos devastados da loucura e do assassínio. Esta verdade não serena: pelo contrário, torna “inconsolável” quem a descobre (“A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”, diria o suicida Stig Dagerman). A personagem que tocou esta verdade nada tem a “dizer”, porque conhece a perfeição que enlouquece, sabe o passado e prevê o futuro, subsiste para cumprir o destino que o mar representa.

Porém, aqui chegado, depressa o leitor reconhece que o romance de Alessandro Baricco perde, quase de todo, o interesse. Até chegar à terceira parte, Oceano Mar tinha progredido num registo entre o lírico e o trágico, com alguns trechos de uma intensa beleza (deformada, contudo, às vezes, por um maneirismo esteticista irritante, do qual, são bons exemplos, o título do romance e o aparecimento, ao longo deste, de um conjunto de “efebos e ninfitas” que actuam como “emissários” do autor na sua função de interlocutores íntimos das personagens). No entanto, como se fosse insustentável manter a mesma intensidade estilística após o painel central, Alessandro Baricco dispersa toda a parte final numa significativa diversidade de registos (que, para além dos já referidos nas outras duas partes, vão desde o humor ao fantástico, passando pelo enigma metafórico, etc.), num afã de “consumir”, em rápidas pinceladas, as personagens no seu destino. Além disso, para concluir, remata, de uma forma fácil, Oceano Mar, colocando a figura do autor em cena (e associando-a a Deus e a um quarto fechado), num arremedo de “arte poética” que não é de todo conseguida. De facto, dá a sensação que, depois de aflorar a tal “verdade indizível”, o autor apenas sentiu necessidade de concluir o romance por razões formais. Esperemos que Alessandro Baricco um dia descubra a perfeição do inacabado...

Deve ser salientada a inegável qualidade da tradução.


Publicado no Público em 1998.



Título: Oceano Mar
Autor: Alessandro Baricco
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Difel
Ano: 1998
245 págs., € 12,50