segunda-feira, 19 de outubro de 2009

JOHN LE CARRÉ



O ÚLTIMO DOS INOCENTES

Quando se pondera a especificidade da narrativa britânica, é costume salientar-se a originalidade do romance de humor. Talvez este seja, de facto, uma marca peculiar desta literatura. Mas seguramente que não é o seu veio mais determinante; sem nos dispersarmos muito, creio que é simplista arquitectar a história da narrativa na Grã-Bretanha a partir de um tronco central. Lembro, a título de exemplo, a importância que tem – até pelas ramificações que se entrelaçam noutros géneros narrativos – a chamada narrativa de viagens. Hoje, e a propósito de Single & Single de John Le Carré, gostaria de salientar a importância crucial que tem o romance de problemática ética nesta literatura; mesmo tendo em consideração a afirmação de Gide de que o romance é, por excelência, a expressão artística da ética, e, por conseguinte, que esta componente está, mais ou menos, subjacente a todas as grandes narrativas, recordo a importância dos nomes de Joseph Conrad, Graham Greene e John Le Carré na literatura inglesa deste século e de como a problemática ética foi ou é a motivação central para as suas construções romanescas.

É certo que os autores citados fazem parte, em termos estéticos, da mesma árvore genealógica. E, nesse sentido, Le Carré é um claro sucedâneo – no bom sentido da palavra – de Conrad e Greene. Estes autores procuraram, de acordo com a sua própria vivência e com as inquietações que o seu tempo levantava, definir os campos do Bem e do Mal. Repare-se, por exemplo, no caso de Conrad, como este encarou a Natureza como um Caos que se infiltrava no próprio Homem e como a Ordem se estabelecia através de uma civilização de princípios e valores que se manifestava, ao nível do indivíduo, contra os aspectos em que a Natureza (ou a matéria) procurava “contaminar” o carácter dos seus heróis. E como este modo de formular a problemática moral está estreitamente associado à consolidação universal do capitalismo e à implantação de novos modelos coloniais.

Uma das “coroas de glória” de Le Carré é ser, provavelmente, um dos poucos autores que, tendo assumido o estatuto de escritor de romances de género (e de um género considerado “menor”), atingiu uma envergadura – com todo o respeito e admiração que nos podem causar as “artes” de um Chandler, de um Hammett ou mesmo de uma Highsmith – que extravasa bem as fronteiras que a si próprio delimitou. E a sua originalidade está na torturada consciência que possui de que os campos do Bem e do Mal já não têm fronteiras tão nítidas como nos tempos de Conrad, por exemplo, e que o romance de espionagem servia na perfeição para confirmar estes seus desígnios. É certo que, nos seus primeiros romances, ainda muito enredados nas teias da espionagem/contra-espionagem, parecia existir uma luta constante entre os valores da consciência individual e os interesses da consciência colectiva; mas já não se pode afirmar que estes possam decalcar os referidos campos: pelo contrário, o Bem e o Mal parecem balsas que navegam numas ou noutras águas, conforme as circunstâncias trágicas que vivem os seus heróis.

Um dos aspectos mais significativos dos romances de Le Carré é que, em todos eles, se efectua, de uma forma exemplar quanto à integração na própria trama, uma panorâmica sobre a situação política e económica do período no qual a obra se situa e que, quase sempre, é o período coevo à sua própria redacção. É esse um dos fascínios das estruturas narrativas de Le Carré e, seguramente, uma das razões, porque adquiriu um público fiel e ávido das suas obras. Tanto mais que Le Carré, neste aspecto como noutros, nunca defraudou os seus leitores: todos os seus romances revelam uma invulgar argúcia e uma muito pertinente perspectiva na análise das conjunturas históricas sobre as quais as suas obras se debruçam.

Quando terminou a Guerra Fria, houve quem prognosticasse o fim da carreira literária de Le Carré, já que se achava que o seu “filão de inspiração” tinha terminado. Mais uma vez, avaliou-se mal as efectivas potencialidades deste autor. De facto, com uma maleabilidade criativa notável, Le Carré abandonou os universos sui generis da espionagem, onde se sentia como peixe na água, para a explorar outras “guerras” (que, no fundo, apenas são variantes em que se converteu a Guerra Fria) como cenários dos seus romances. E, entre estes, destaca-se o tráfico de droga e os meandros do crime organizado ao nível mundial e o modo como estes estão estreitamente imbricados com os interesses e as ambições políticas.

O tema de Single & Single (o título do romance é o nome de uma firma de advogados e de investidores financeiros) é o branqueamento dos lucros resultantes do comércio ilícito. De facto, como o autor bem fundamenta a certo passo do seu romance, a dimensão e os montantes actuais de facturação deste comércio, e em particular do tráfico de droga, tornam quase impossível que a sua acção seja alheia aos poderes instituídos (financeiros, económicos e políticos). Mais: segundo o autor, o sangue corrupto deste comércio criminoso já está a contaminar, directa ou indirectamente, todos os canais sociais, tornando-se difícil demarcar as fronteiras entre o crime organizado em termos mundiais e a restante sociedade. É esta situação, a que Le Carré dá o nome de código de “Hydra”, que serve com justeza para que coloque algumas interrogações que lhe são fundamentais: onde se situam hoje os campos do Bem e do Mal? Até que ponto pode um indivíduo considerar-se liberto do abraço tentacular do crime?

Por outro lado, este contexto é particularmente útil para que Le Carré se debruce, em Single & Single, sobre um dos temas nucleares do romance de problemática ética: o tema incómodo da traição (basta rever qualquer filme de Elia Kazan para perceber como o adjectivo não é gratuito). Em termos genéricos, pode considerar-se a traição como o repúdio consciente dos códigos éticos, mas em última instância afectivos, que nos unem a um grupo social e que fazem de nós um elo determinante do tecido da sociedade. Neste sentido, qualquer crime é uma traição. E é também neste quadro que se compreende o comportamento social de rejeição do traidor (e do criminoso), numa lógica de “olho por olho”: ao repúdio do traidor a sociedade responde com o ostracismo social. Contudo, habitualmente entende-se como traição o rompimento dos laços ou regras que unem o indivíduo a um grupo social mais restrito (ao amado, à família, à classe social, etc.) e onde a componente afectiva é mais visível. Além disso, pode suceder que entre os diversos níveis de códigos (os que unem o indivíduo à sociedade em geral e os que unem o individuo aos grupos sociais que em concreto o contextualizam) possam existir momentos de contradição e conflito, exigindo ao indivíduo uma opção e, por conseguinte, uma traição. Olivier Single, a personagem principal deste romance, vive um momento destes: entre as exigências do código social e as exigências dos códigos que o unem ao pai, ele “cede” aos primeiros, rompendo com os segundos. E tendo em conta o papel que o pai desempenha no branqueamento dos rendimentos da Máfia russa, a personagem principal sabe que o coloca, como a si e à sua família, em risco de vida, necessitando, por conseguinte de protecção da sociedade. Esta denúncia (que é a forma mais “explícita” de traição) do pai é resultante do seu desejo, radical e desesperado, de conquistar uma inocência que o dignifique e o leve a acreditar nos laços sociais (a sua relação com Sammy, o atrasado mental, filho da sua senhoria, que o ajuda nos seus números de malabarismo para miúdos, enquadra-se nesta sua tentativa de “renascimento” social). Simplesmente, a contaminação criminosa de toda a sociedade não só deixa de garantir a protecção dos seus familiares, como o leva a interrogar-se sobre a legitimidade moral da sua opção. No fundo, o que a personagem principal de Single & Single vem a perceber no desfecho dos conflitos (poder policial inglês/ Máfia russa; códigos sociais/códigos familiares) que o envolvem, é que todas as suas opções (legitimidade social/fidelidade aos códigos familiares) ocultam uma certeza: perante a precariedade, moral e física, dos corpos, só existe sentido na constância vibrante do afecto que se sente; todos os códigos normativos, públicos e privados, são uma roupagem que veste o vazio.

Um dos aspectos mais interessantes da estética narrativa de Le Carré é a importância que tem – como em todas as construções romanescas marcadamente devedoras da narrativa ficcional novecentista – a sua própria estrutura. Sem estar com análises de pormenor, gostaria, no entanto, de realçar a admirável arquitectura narrativa de Single & Single. Porém, não deixo de ceder à tentação de apresentar aqui um tópico para a compreensão da sua estética narrativa: o princípio – genuíno da espionagem – de que toda a realidade é uma teia de ocultações. Se se reparar bem, o percurso das personagens principais de Le Carré é sempre o mesmo: todas as situações em que se vêem envolvidas as encaminham para outras, onde se torna, gradualmente, mais explícita a motivação dos seus agentes. Parte-se, por isso, do princípio de que toda a realidade oculta outra (um princípio de insinceridade) e que o trabalho do escritor (com o auxílio do seu coadjuvante, a personagem principal), tal investigador social e “de almas”, é descobrir a verdade que, por essência, a realidade primeira nega ou oculta.

Por fim, deve ser realçada a tradução do casal Ramos que, ao acaso muito rigoroso das suas paixões literárias, tem efectuado um magnífico trabalho de divulgação da narrativa de língua inglesa e revelado, com traduções de elevada qualidade literária, ser uma das mais meritórias parelhas que labutam presentemente nesta área.



(Publicado no “Público” em 1999)


Título: Single & Single
Autor: John Le Carré
Tradução: Helena Ramos e Artur Ramos
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1999
305 págs., € 10,00