sexta-feira, 1 de maio de 2009

ELISEO ALBERTO


O IRREMEDEÁVEL EXÍLIO

Desde há algumas décadas que a literatura cubana, em consequência de confrontos ideológicos com o poder castrista, de perseguições políticas e da presença constante da censura, é marcada por uma expressiva diáspora dos seus criadores - e este facto, apesar da sua dimensão obscurantista e sinistra, dá-lhe um estatuto peculiar no quadro da literatura contemporânea. Alguns dos escritores cubanos com maior irradiação internacional (recordo, a título de exemplo, os casos de Guillermo Cabrera Infante, do malogrado Reinaldo Arenas ou de Zoe Valdès) viveram ou vivem no exílio (no México, na Europa, nos Estados Unidos), sofrendo amargamente a circunstância de se encontrarem afastados do universo sociocultural que motiva a sua produção literária; mas, em paralelo, têm obtido inequívocas vantagens, em termos de projecção, por se radicarem na órbita dos grandes centros editoriais. Seja como for, hoje existe uma geração de escritores oriundos de Cuba, alguns deles integrando uma segunda geração a viver no exílio, que já abandonaram o espanhol como veículo de expressão literária (é o caso de alguns escritores residentes no E.U.A., como Cristina Gracia) ou que simplesmente abdicaram da ambiência da ilha das Caraíbas como temática dos seus livros. Porém - e um pouco a dar razão aos que afirmam que as dificuldades sociopolíticas são sempre favoráveis ao florescimento da arte narrativa -, a literatura cubana vive hoje um momento de significativa efervescência, ao ponto de haver quem considere que se está em presença de um autêntico “boom”.

Integra o plantel destes escritores cubanos no exílio o romancista Eliseo Alberto, de quem foi agora publicado no nosso país o romance A Fábula de José, e que se revela, mesmo para quem acompanha com algum interesse o percurso da literatura de Cuba, uma agradável descoberta. Contudo, Eliseo Alberto não é um recém-chegado à vida cultural cubana. Este autor, filho de um poeta e novelista de grande craveira, Eliseo Diego, já tinha publicado alguns livros de poesia, quando, como guionista e argumentista se tornou conhecido (recordo, por exemplo, o filme Guantanamera de Tomás Gutiérrez Alea). Já nesta primeira fase, o escritor teve alguns problemas com o poder político castrista; mas foi com a sua obra Informe Contra Mi Mesmo (onde narra como lhe foi solicitado pelos serviços de segurança do Estado que fizesse um relatório sobre as actividades políticas e culturais da sua família e, em particular, do seu pai) que se efectuou a ruptura inevitável. Depois, em 1998, atinge a consagração crítica e pública, com o romance Caracol Beach, ao obter o Prémio Alfaguara (um prestigiado prémio para originais da editora espanhola, aberto a todo o universo linguístico castelhano), ganho “ex-aequo” com uma obra do escritor Sergio Ramirez, ex-presidente da Nicarágua.

A Fábula de José parte de uma ideia que, segundo o autor, durante muito tempo amadureceu, e que nos parece, de princípio, um pouco frouxa e relativamente fácil: a história de um homem, um jovem emigrante cubano, radicado nos Estados Unidos, preso por assassínio, que é exposto numa jaula de um zoo, como representante de uma espécie de primata muito perigosa. Percebe-se, por esta síntese, que a acção do romance está contextualizada na comunidade cubana emigrada nos E.U.A., funcionando esta comunidade como uma espécie de universo “fechado” faulkneriano e com um valor metafórico que em muito ultrapassa esse contexto.

De facto, como o título indica, este romance é uma fábula. E, como todas as fábulas, a sua localização é pouco relevante. Em síntese, pode afirmar-se que esta fábula, de certo modo, ambiciona demonstrar que o sentido da existência do homem é libertar-se do seu circunstancialismo, é tentar conquistar uma dignidade que ilumine a opacidade do seu corpo, conseguindo, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos outros como ser. O que José, a personagem principal do romance de Eliseo Alberto, descobre na sua jaula, primeiro, com uma feroz resignação, depois, com a serena ansiedade de quem busca descobrir a fraternidade e o amor, é que, em todo o lado, é sempre possível construir um espaço de reserva onde irrompa uma irredutível liberdade. E que esta é, antes do mais, a expressiva reminiscência de um paraíso perdido, onde a existência ainda não está contaminada por uma absurda e radical solidão.

É evidente que pode ver-se, no percurso da personagem principal de A Fábula de José, uma metáfora da necessidade de fuga, de reconstruir no exílio uma existência livre e digna, por parte do povo cubano. Seguramente que o romance terá também este sentido. Mas o seu mérito primordial é conseguir construir uma narrativa que supera de forma inequívoca esta perspectiva mais circunstancial.

Refira-se ainda que A Fábula de José, mesmo descaindo, aqui e além, em termos estilísticos, para os modelos com que se tipificou, de uma forma redutora, a literatura da América hispânica da últimas décadas (em particular, aquilo que se tem chamado “realismo fantástico”), tem uma invulgar qualidade poética, realçando-se a originalidade de muitas situações, o humor e a coloquialidade inteligente dos diálogos, mas, em especial, o excelente friso de personagens secundárias, arquitectadas com a intensidade de quem sabe que existe, no anonimato da vida, uma terrível, e por vezes dolorosa, magnificência. Por fim, é de toda a justiça salientar a exemplar tradução deste romance, porque é, sem sombra de dúvida, um dos atractivos desta edição.

Publicado no Público em 2001.

Título: A Fábula de José
Autor: Eliseo Alberto
Tradutor: Maria do Carmo Abreu
Editor: Ulisseia
Ano: 2001
181 págs., € 9,95