quarta-feira, 25 de agosto de 2010

JOSÉ MANUEL FAJARDO




O DIÁLOGO IMPOSSÍVEL


Há quem se interrogue, actualmente, sobre o significado da proliferação, em particular na Europa, do romance histórico. De facto, poucos são hoje os autores que não se sentem “tentados” a explorar este género narrativo. Porém, os analistas mais pessimistas consideram, de forma polémica, que a proliferação desta tendência para reforçar a componente de distanciação temporal seria um sinal de desvitalização do romance, visto que provocaria uma atenuação da sua carga intervencionista (mesmo em obras que tenham essa pretensão explícita), ao originar no leitor um sentimento de gradual descomprometimento: este teria, mesmo de forma inconsciente, a propensão para aceitar a problemática, que a obra espelha, como pertencente a outra época e que, por consequência, não lhe exigiria qualquer opção ética que condicionasse a sua própria vida.

Creio que é difícil fundamentar esta tese, tanto mais que, pelo contrário, essa proliferação pode ser também entendida como uma manifestação genuína da pulsão de contar "histórias" (recorde-se que, na literatura para a infância clássica, a presença da distanciação temporal é uma componente constante e que procura corresponder a uma necessidade de segurança da criança, uma vez que a arte narrativa consegue, desta forma, transmitir-lhe uma “aparência de perenidade”). De qualquer modo, esta proliferação do romance histórico permite estabelecer com facilidade uma tipologia que o classifica em três subgéneros, conforme a “maior evidência” de uma das seguintes características (habitualmente estão todas presentes, só com grau variável de evidência): os romances cuja problemática exige, para uma maior clarificação, o afastamento temporal (saliente-se que, ao contrário das teses dos analistas acima referidos, este afastamento permite ao leitor, ao identificar-se com a problematização do romance, obter uma visão “atemporal” desta, uma vez que se revela “comum” ao seu tempo e ao tempo narrado no romance); os romances cuja pretensão é dominantemente recriar uma ambiência socio-histórica; por fim, os romances cujo objectivo é narrar um conjunto de acontecimentos dos quais não ficaram vestígios documentais suficientemente esclarecedores e para o qual se crê que, através da ficção, se atingirá uma maior inteligibilidade, uma vez que os “tecerá” a partir de um “interior” recriado.

Integra este último caso a mais recente novela do escritor espanhol José Manuel Fajardo, Carta do Fim do Mundo, agora editada no nosso país. A obra é composta por uma longa carta, para um irmão, de um biscainho, pertencente à primeira expedição de Cristóvão Colombo, que ficou a colonizar La Española, após a fundação da Vila de la Navidad (como é sabido, esta comunidade foi a primeira a permanecer em contacto com os ameríndios e pereceu por completo às mãos destes). Para a sua redacção, o autor recorre a toda a informação histórica conhecida sobre o assunto, introduzindo algumas personagens “inventadas”, mas inteiramente plausíveis: o rigor de historiador de José Manuel Fajardo faz com que inclua um “apêndice” onde são bem demarcadas as personagens “reais” daquelas que são “inventadas”.

A novela serve, portanto, para dramatizar este primeiro contacto e tentar perceber por que é que a colonização espanhola do continente americano estabeleceu, desde o seu início, uma radical incomunicabilidade entre comunidades – ao ponto de provocar sequentemente o puro e simples massacre da população ameríndia. Sobre este aspecto, o autor não traz nenhuma perspectiva inovadora: confina as “culpas” do sucedido à ganância dos europeus por oiro e aos parâmetros culturais, marcados pela intolerância, do cristianismo da altura, incapazes de compreender uma civilização tão distinta como a ameríndia. Neste sentido, o autor resolve evidenciar a importância da fundação recente em Espanha da Inquisição e o seu papel no reforço da componente fundamentalista da Igreja. Natural, por isso que a personagem mais interessante da novela seja Luis de Torres, um judeu converso, que retrata exemplarmente o tipo de figura que, sofrendo na pele a hipocrisia dos valores culturais dominantes, sente necessidade de questionar o seu património através do confronto com outras culturas: daí o seu fascínio pelas línguas estrangeiras (ele era o “intérprete” na frota de Colombo) e a “facilidade” com que acolhe os ameríndios e se desterra na sua cultura.

No essencial, deve ser salientado que Carta do Fim do Mundo, sem justificar as loas tão entusiásticas do “Prefácio” de Luis Sepúlveda, revela uma inegável segurança histórica, não só visível na contextualização, mas também no cuidado de reproduzir estilisticamente os modos narrativos da época. Além disso, e será este o principal mérito literário da obra, há uma deliberada e conseguida intenção de depurar as situações de forma a procurar atingir a clareza harmónica do mito (recordo, entre muitas situações, a morte do filho do cacique Cayainoa, a relação amorosa entre o narrador e Nagala ou a morte do português Álvaro Almeyda): trata-se, de facto, de uma novela de leitura fácil e aliciante, servida por uma tradução que revela trabalho e engenho.


(Publicado no Público em 1998)

Título: Carta do Fim do Mundo
Autor: José Manuel Fajardo
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1998
165 págs., € 10,57