terça-feira, 27 de março de 2012

FRANÇOIS MAURIAC


CUMPLICIDADES



Quando, há vinte anos, François Mauriac morreu, a imagem, que o grande público dele retivera, era a do polemista e a do “clerc” que, sem nunca abandonar os seus princípios católicos, se tornara varias vezes bastante incómodo tanto para os grupos sociais que se proclamavam como os “verdadeiros paladinos” desses princípios, como para a “esquerda” que, não poucas vezes, caíra na tentação de ver nele um dos porta-vozes das suas posições. Mas, enquanto romancista, Mauriac era, desde a II Guerra Mundial e apesar do Nobel concedido em 1952, considerado como autor de uma obra de temática historicamente muito conotada e, por isso, já “ultrapassada”: a crítica “existencialista” parecia, de facto, ter demonstrado de forma exaustiva a fragilidade dos fundamentos estéticos, éticos e metafísicos da sua obra (que Sartre, em Situations I, tinha “arrumado” com um categórico juízo crítico: “Dieu n’est pas un artiste, M. François Mauriac non plus”).

No entanto, Mauriac tinha publicado, na década de vinte, vários romances, entre os quais este Teresa Desqueyroux, que não só obtiveram um enorme sucesso, como foram muito bem recebidos pelos seus “pares” (André Gide, por exemplo), garantindo-lhe, ainda relativamente novo, um lugar na Academia. Hoje, após se terem dissipado os fumos da borrasca crítica, são considerados como alguns dos mais significativos da literatura francesa do período entre as duas Guerras, adquirindo um insofismável estatuto de “clássicos”, e reveladores, paralelamente, de uma inegável modernidade estética.

A forma como é construída a história dramática de uma mulher que tenta envenenar o marido — que constitui a trama nuclear de Teresa Desqueyroux – é bem sintomática das preocupações de inovação estética de Mauriac: ela inicia-se com a saída da personagem principal do tribunal (onde foi ilibada pela própria vítima que procura “abafar” o escândalo, temendo as repercussões na família) e com a viagem de retorno a casa e ao confronto culpabilizante com o marido. Durante o percurso, Teresa Desqueyroux procura perceber por que motivos chegou a esta situação-limite, construindo-se, portanto, o romance em dois registos temporais: no presente diegético e em “retornos” ao passado, por sucessivos “flashes”, através dos quais se vão revelando a infância e a adolescência desta mulher, forjadas numa “pureza” que é, antes do mais, isolamento, ignorância das “coisas da vida” e de qualquer questionamento perturbante, o casamento de conveniência com um homem a quem ela rapidamente despreza por mesquinhez e boçalidade e, por fim, as circunstâncias que lhe facilitaram a tentativa de perpetração do crime.

Este tipo de construção prepara o leitor para o “clímax” inevitável, reforçando a dimensão trágica da trama e da personagem (Mauriac sempre reconheceu uma influência determinante em Racine), e, por outro lado, torna claro que a motivação de Teresa Desqueyroux não é resultante de nenhuma circunstância concreta, mas de um furor de viver que se sente bloqueado, devido à convicção de que a sua existência é um inevitável discorrer sem grandeza dentro de um universo fechado (é desta forma que quase sempre Mauriac caracteriza a instituição familiar). Esta ambiência asfixiante é ainda acentuada por uma técnica narrativa que coloca permanentemente o narrador “dentro e fora” da personagem principal, “empurrando” o leitor para dentro do “casulo” em que esta vive e obrigando-o, por isso, a uma atitude empática e cúmplice.

Foi esta atitude estética que, entre outros aspectos, Sartre principalmente condenou na obra de Mauriac, urna vez que entendia que ela nunca permitiria um juízo distanciado sobre o comportamento das personagens. No entanto, ela era resultante da mesma perspectiva ética que levou Mauriac a posições públicas denunciatórias da hipocrisia dominante: a de tentar integrar-se na motivação do outro, mesmo que para isso fosse necessário confrontar-se radicalmente com princípios que sempre se assumiram como estruturantes da realidade e da prática social. Além disso, a criação coerente de um universo que obrigue o leitor a uma deslocação para o “exterior” dos seus valores éticos e estéticos, através de um processo empático, tem-se revelado cada vez mais como a única forma da literatura propiciar aquela necessária compreensão do outro - que é um dos seus objectivos.

Saliente-se, por fim, que a presente tradução, já com quarenta anos, é ainda de uma excelente qualidade, pela sua capacidade de reproduzir o estilo preciso e envolvente do autor.


Publicado no Público em 1991


Título: Teresa Desqueyroux
Autor: François Mauriac
Tradução: Nataniel Costa
Editor: Editorial Presença
Ano: 1991
125 págs., € 8,31




segunda-feira, 26 de março de 2012

CARLO COCCIOLI



ENTRE O AMOR E O BEZERRO DE OURO



A inscrição da problemática da homossexualidade na literatura foi, como é do conhecimento geral, um percurso bem obscuro que obrigou os autores a exercícios ínvios e, muito em particular, dolorosos. Basta lembrar, neste século, os escritos pessoais de autores como Gide, Cocteau, Forster ou Isherwood, por exemplo, e de como viveram de modo torturado o conflito entre as pressões sociais e as exigências éticas que os impeliam a inscrever frontalmente esta problemática na sua própria obra. Porém, foi esta confrontação íntima que, em muito, contribuiu para o reconhecimento público desta mesma problemática.

Tudo isto tem hoje, pelo menos no registo literário, laivos de arqueológico. A mutação de mentalidades que se tem efectuado nas últimas décadas fez com que estas matérias perdessem — louvavelmente — grande parte da sua dimensão de escândalo. No entanto, esta forma mais franca de encarar a homossexualidade é recente e ainda não de todo pacífica. Como se pode ver na nota introdutória de Carlo Coccioli publicada na edição portuguesa do seu romance Fabrizio Lupo, ainda há quarenta anos o autor se sentira obrigado a circunscrever certos trechos da obra ao “espírito da época”. E mesmo tendo o autor, em edições posteriores, restaurado o texto original, é inevitável que o romance tenha de se ressentir da ambiência social em que foi escrito.

Estas circunstâncias reflectem-se, em Fabrizio Lupo, no seu carácter tacteante, palavroso, repetitivo e indisciplinado. E, em particular, na sua estrutura sinuosa: o romance é apresentado como resultante de uma “súplica” de uma personagem real, Fabrizio Lupo, para que o autor se torne porta-voz literário da sua experiência pessoal. Assim, Fabrizio Lupo é composto de três partes: uma primeira, onde se expõe a forma como a personagem entrou em contacto com o autor e em que narra a sua “história”; uma outra, mais extensa, integrando reflexões, folhas de um diário e o esboço de um romance da própria personagem; e, por fim, uma terceira parte constituída por cartas enviadas ao seu amante.

Pelo conjunto do material, e dada a atitude quase em exclusivo receptiva em relação a este com que o romance representa a figura do autor, fica-se com a ideia de que Carlo Coccioli aparece fundamentalmente como caucionador da narrativa de outrem. Mas, sem sombra de dúvidas, esta atitude não passa de um estratagema narrativo, uma vez que não são detectáveis diferenças estilísticas entre os dois narradores.

Fabrizio Lupo procura encarar a homossexualidade num contexto metafísico. De facto, a personagem principal, cristã e homossexual, redime as chagas da sua formação de adolescência com a seguinte conclusão: se Deus concebeu e orientou a capacidade de amar de um indivíduo num determinado sentido, a única solução (a única salvação) é ser-se “fiel” a essa natureza, sendo-se, assim, “fiel” à natureza de Deus: Ele é Amor e de todos os Seus actos emana aquilo que é. Por conseguinte, a homossexualidade (como qualquer sexualidade) só é aceitável no exclusivo quadro de uma relação amorosa, entendendo esta como elemento da ordem natural que é a emanação da substância divina: ser-se fiel ao amado é ser-se fiel ao desejo de Deus. O amado estabelece o elo com a ordem do Mundo e é, por si só, enviado e “sinal” de Deus (de certa forma, consubstancia a Sua Própria Natureza). O amante tem, unicamente, de esperar (ou melhor, esperar, “buscando”) que Ele envie esse “sinal”. Encontrado, termina-se a história (e a História): vive-se no tempo de Deus, no seio da Sua Natureza.

Porém, a teologia cristã concebe a ordem natural como estruturalmente heterossexual. A homossexualidade é, assim, entendida como “pecado”, condenando quem a pratica ao aviltamento religioso (e, por consequência, também social). Expulso da Casa de Deus, o homossexual fica entregue a autocomiseração, forçado à adoração do Bezerro de Ouro (e esta figura do segundo livro de Moisés representa aqui a consumação sexual da simples atracção física). A cidade, com os seus circuitos de abordagem permissiva, transforma-se, assim, no espaço dos alucinantes ritos de corrupção dos corpos e dos afectos.

É este o drama de Fabrizio Lupo: sabe que não há natureza sem sexo e que o amor é, antes do mais e nos seus fundamentos, uma “transpiração” dele; por isso, sem Deus nem Paraíso, o seu amado será presa fácil do terror do aviltamento social ou da desordenada degradação dos enredos da atracção física sem futuro.

No meio das suas fragilidades — e de uma perigosa propensão para uma concepção litúrgica da relação amorosa —, Fabrizio Lupo contem inúmeras páginas fascinantes e, em termos estéticos, bem  conseguidas: saliento aqui algumas passagens do “romance”de Fabrizio Lupo, repletas de uma sensualidade solar que lembra certas obras de Pavese e de Quarantotti-Gambini, ou as desesperadas “cantatas”, de sabor bíblico, em que a personagem reza por um amor inatingível.

No entanto, mesmo as fragilidades deste romance devem ser encaradas de forma compreensiva e empenhada: elas são, no fundo, o inevitável resultado da inquieta busca de um invulgar autor que, através de diversos espaços geográficos (Carlo Coccioli, depois de viver em Itália e em França, reside hoje no México), linguísticos (a sua obra foi escrita em italiano, francês e espanhol) e religiosos (depois de cristão, Carlo Coccioli converteu-se ao judaísmo), tem procurado descobrir uma Ordem que, provavelmente, não existe. E é esta a dimensão mais importante da literatura fundamental.

Publicado no Público em 1991.


Título: Fabrizio Lupo
Autor: Carlo Coccioli
Tradução: Rui Santana Brito
Editor: Edições Cotovia
Ano: 1991
410 págs., € 20,19

quarta-feira, 21 de março de 2012

GESUALDO BUFALINO



O JOGO DAS APARÊNCIAS


Uma tempestade que se avizinha no horizonte, uma ilha junto à costa, uma fortaleza inacessível na sua escarpa: no seu interior, quatro revolucionários condenados à morte esperam em vigília, durante toda a noite, a sua execução ao alvorecer. É este o ambiente trágico, sombrio, genuinamente romântico e oitocentista que, em particular pela sua dimensão de artifício e teatralidade, se ajusta na perfeição ao exercício metafísico sobre a aparência que é As Mentiras da Noite de Gesualdo Bufalino.

Esse exercício tem como maestro o próprio governador da fortaleza, pois que, ao propor aos condenados para que considerem, na última hora de vida, a hipótese de denunciarem, anonimamente e para uma urna, a identidade do seu chefe em troca da sobrevivência, está a colocar-lhes, na derradeira balança, uma basilar questão: se mais vale respeitar a vida, podendo “ser mais um pouco uma gota inconfundível no mar da existência” e continuar assim essa aparência de ser, que o sentir e o pensar origina, ou ser coerente com uma fantasia da existência, uma “inefável ideia”, já concretizável ou não na história dos outros, nunca se chegando a saber se está certa ou errada, se é justa ou injusta.

Mas esta opção, que pode parecer ainda entre uma existência real e uma convicção, vai revelar-se falsa ou, pelo menos, “recuada” e demasiado simples. Os “raccontos” autobiográficos com que cada um consome o tempo de vigí1ia, perante os outros e perante o pseudo-frade Cirillo, um enigmático bandido também condenado à morte, revelam que todas as suas existências assentam numa “vilania” e não passam da sombra de outrem ou até (como o próprio Cirillo, no final, as sintetiza) de uma “máscara” que oculta cada um, sendo a ideologia revolucionária uma mera maquilhagem com que realçam os contornos dela. De facto, nenhuma daquelas figuras realmente existiu e, por conseguinte, a eventualidade da execução torna-se um mero acidente, o simples apagar de uma imagem.

Natural, portanto, que aqueles “raccontos” flutuem entre o evento e a ficção e que criem, quando se desvenda a verdadeira identidade de Cirillo, um jogo de espelhos onde se reflecte, numa multiplicação de aparências, a existência de fantoche do próprio governador. Por isso, ele interroga-se, desesperado e lúcido, no seu testamento: “Quem sou eu? Nós, os homens, quem somos? Somos verdadeiros, somos pintados? Trapos de papel, simulacros não criados, inexistências que surgem no palco de uma pantomima de cinzas, bolas insufladas pela palhinha de um prestidigitador inimigo? Se assim for, nada é verdade. Pior: nada é, cada acontecimento é um zero que não pode sair de si. Todos nós apócrifos, mas apócrifo também quem nos dirige ou retém, quem nos une ou separa: nada metafísicos, nós e ele, misturados ao acaso por um erro recidivo: narizes de carnaval em caveiras cheias de buracos de ausência…”

No fundo, no pessimismo de As Mentiras da Noite, nada existe a não ser ficções. Ou talvez exista, mas então a única presença real é uma alucinação: esse rato, o Mostazzo, que vai roendo o interior do governador, fazendo deste um mero invólucro dele, e prenunciando-lhe, nas dores físicas e morais, o fim inevitável. Depois da tempestade passar, depois das paixões políticas deixarem de ter sentido, fica só um tempo roedor, criador de dúvidas insolúveis, de obscuridades, onde a alma se afunda e desaparece.

Realce-se, por fim, a oportunidade desta edição, pois espera-se que inicie no momento certo a tradução da obra de um dos mais importantes escritores (Gesualdo Bufalino é também poeta e ensaísta) contemporâneos de Itália. Reservado, tímido, parecendo uma personagem saída dos livros que escreve, este siciliano, vivendo isolado na sua pequena cidade natal, só começou a publicar ficção depois de reformado e já com 60 anos. Mas, desde a publicação da sua primeira novela (Diceria dell Untore) em 1981, obteve um natural reconhecimento crítico e público, porque, desde logo, conseguiu criar um universo literário inconfundível, onde erudição e uma minuciosa preocupação formal se conjugam na construção de complexas e simbólicas arquitecturas ficcionais, perpassadas por uma obsessiva preocupação pela morte e pela irrealidade da realidade.

Publicado no Expresso em 1990
 

(Foto do Autor de Loris dalla Nora)
 

Título: As Mentiras da Noite
Autor: Gesualdo Bufalino
Tradução: Simonetta Neto
Revisão Literária: João Rodrigo Narciso Furtado
Editora: Difel
Ano: 1990
161 págs., esg.




sábado, 10 de março de 2012

MARTIN AMIS




DESLIGUE-SE A FELICIDADE DO MUNDO



Gostava de começar esta recensão por uma história pessoal. Há alguns anos, convidado pelo Estado americano, viajei pelos EUA e, por entre os diversos lugares que percorri, fui parar à Universidade Estadual do Mississippi, onde se realizava um congresso de escritores. No meio de muita gente que lá apareceu (recordo com alguma simpatia as conversas com Richard Ford e Charles Simic), havia, como “prato principal”, um colóquio com John Grisham e Stephen King (dois “monstros” de vendas de livros em todo o mundo), moderado por um bom escritor sulista chamado Barry Hannah. Como só os americanos sabem fazer, nesta sessão tudo teve mais a ver com o “show-bizz” do que com a literatura: recordo a chegada de Stephen King de helicóptero ao “campus” da Universidade e dos agradecimentos de Barry Hannah pela sua benevolência e compreensão, informando o público de que o “cachet” deste autor, por perder um dia de trabalho, seria incomportável para “qualquer” universidade americana. Mas esta história vem-me à memória por causa de uma questão que John Grisham colocou a Stephen King, ao interrogá-lo sobre como ele conseguia escrever cerca de dois livros por ano, alcançando sempre um enorme sucesso comercial, e este lhe respondeu, fazendo músculo (é conhecido como Stephen King gosta de andar sempre de camisolas de alças ou de “t-shirts”), que só consegue esses resultados com uma excelente preparação física e um regular treino no seu ginásio de musculação.

Recordo esta história porque creio que Martin Amis não desdenharia responder com uma “boutade” semelhante perante a cena literária britânica. Não pretendo comparar estes dois autores (Martin Amis tem ambições literárias que Stephen King só tem “reconditamente”), mas a produção de Martin Amis (treze títulos em vinte anos e já dois anunciados para o próximo ano) e o autêntico vendaval, que tem originado a sua presença no meio literário inglês, fazem sobressair uma componente de energia “física” na sua actividade. É sabido que a personalidade deste escritor provoca aplausos e fortíssimas irascibilidades e que, por isso mesmo, a sua obra terá sempre um estatuto particular no “establishement” literário (não é por acaso que só um dos seus livros recebeu o Somerset Maugham Award e que alguns títulos seus estiveram na “short list” do Booker Prize sem nunca o ganharem).

Mas deve reconhecer-se que romances como, por exemplo, Sucess, Money ou The Information revelam que este autor é um virulento cronista dos tempos actuais, com inegável acutilância crítica, e um admirável estilista: a coloquialidade, as suas frases curtas, quase sincopadas, o permanente jogo de aliterações - algumas delas de uma ironia verdadeiramente nabokoviana -, a originalidade da sua adjectivação, a forma como as suas narrativas progridem num sistema complexo de elipses demonstraram à exaustão que Martin Amis é um excelente manuseador da língua inglesa. Além disso, a sua visão quixotescamente anti-romântica (?) da literatura instituiu um modo de estar nela que, quer se goste ou não, transformou imenso a forma de a entender como fenómeno social: de facto, Martin Amis foi um dos primeiros autores a compreender que a eficácia de uma obra (em termos estritos da sua “visibilidade” perante o público) passa por uma inteligente utilização dos circuitos mediáticos e que a literatura não se pode alhear - como tudo na vida - de que está inserida num universo de dinheiro e de negócio e que, por isso mesmo, só tem vantagens em o assumir, plena e frontalmente, sem nunca abandonar critérios próprios de exigência ética e estética. E, repito, quer se goste ou não, esta forma de entender a literatura como um “meio artístico de comunicação” criticamente integrado na actual sociedade já deu origem a um número infindável de epígonos, muitos deles confessos: o futuro de certa literatura contemporânea “já passou” pela obra de Martin Amis.

No contexto da sua obra, o último romance deste autor, traduzido agora com o título de O Comboio da Noite, parece um “momento de pausa” de um corredor de fundo para tomar fôlego. Enquanto alguns dos anteriores romances deste autor são amplos frescos por onde perpassa uma feroz crítica, carregada de um sarcasmo implacável, a certos valores (?) destrutivamente dominantes da nossa civilização (as obsessões da permanente juventude, da energia sexual inquebrantável, do sucesso e da riqueza a todo o custo, etc.), conseguindo virar do avesso a euforia de sociedades de abundância, O Comboio da Noite, pelo contrário, desilude muito, por centrar-se estritamente na problemática do suicídio e por parecer, perante as obras anteriores, um singelo “exercício” literário em louvor do romance negro e, em particular, de um autor americano, que Martin Amis muito aprecia, chamado Elmore Leonard.

Este romance, mais uma vez situado nos Estados Unidos, narra a investigação, feita por uma detective, de um suicídio, aparentemente realizado com uma imensa raiva auto-destrutiva, de uma mulher jovem, bela, inteligente, perfeitamente equilibrada em termos profissionais e afectivos, e que, por conseguinte, nada parece levar a semelhante acto. Por isso, o pai dela, Chefe do Departamento de Investigação Criminal, não admite esta evidência. E resolve abrir uma investigação, nomeando, para ela, a detective Mike Hoolihan, uma mulher que é o absoluto contraponto da suicida: alcoólica, vítima de abuso sexual na infância, incapaz de ter uma relação afectiva aceitável e de achar minimamente suportável o mundo que a rodeia.

A partir daqui, Martin Amis começa o seu jogo de manipulação do leitor, levando-o, através de um labirinto de caminhos sem saída, à mais óbvia e inaceitável certeza: a de que a perfeição não foi feita para existir neste universo e que essa ambição levará a uma desilusão autofágica; e que, pelo contrário, a sobrevivência só será possível a quem assumir uma resistência “impura”, contaminada, - a quem, em consciência, saiba que assassinou a possibilidade da felicidade no mundo. E torna-se, então, evidente, mesmo neste simples exercício literário, um dos sinais maiores deste autor: um radical niilismo de quem há muito encara a presente civilização como uma luxuosa e espectacular “limousine” com o motor gripado e sem arranjo possível.

Por fim, algumas considerações sobre a tradução. Creio que a tradutora - uma profissional que já deu provas da elevada qualidade do seu trabalho - optou de uma forma errónea perante esta obra de Martin Amis. É conhecida a enorme dificuldade que levantam as traduções deste autor, principalmente porque a sua coloquialidade as transforma numa perigosa armadilha. Creio que existiu aqui uma opção por uma tradução muito próxima do literal, o que deu origem a frases em português de leitura sinceramente obscura para não dizer ilegível. Os casos são tão abundantes que nem vale a pena estar aqui a fatigar o leitor com exemplificações. Além disso, O Comboio da Noite é uma obra tão “embebida” no particularíssimo quotidiano americano que exigia algumas notas explicativas em inúmeros trechos, uma vez que estas, no presente caso, não tornariam “pesada” a leitura e, pelo contrário, contribuiriam para uma mais fácil fruição do romance.


Publicado no Público em 1998


Título: O Comboio da Noite
Autor: Martin Amis
Tradução: Telma Costa
Editor: Editorial Teorema
Ano: 1998
173 págs., € 10,60







segunda-feira, 5 de março de 2012

CARLO EMILIO GADDA




O NOME DA DOR



É sabido que uma das consequências da criação literária é constantemente “refazer” a norma da língua, ao libertar-se dela. Porém, no caso da literatura italiana, por razões históricas e culturais, a questão é mais “radical”: de facto, esta língua foi, até ao alastramento da alfabetização e a proliferação dos fenómenos migratórios resultantes da industrialização, mais um “modelo” forjado pelos escritores do que uma língua falada pelos italianos. E se esta situação parece corresponder a um mito literário (o do criador que constrói um universo tão pessoal e autónomo que inclui o seu próprio instrumento de criação), ela motivou, pelo contrário, a necessidade constante de ultrapassar um espinhoso isolamento: alguns dos grandes autores italianos foram, por isso, impelidos a um trabalho de “recriação” da sua língua, conciliando os diversos dialectos da Itália e integrando contributos de línguas estrangeiras, românicas ou não, de forma a “renovarem” a norma e a aproximarem-se do mais amplo número de concidadãos. É este facto que origina uma das características mais peculiares e interessantes da literatura italiana: a de ser basicamente, até aos dias de hoje, um conjunto de literaturas regionais referenciadas a uma norma.

Estas considerações são fundamentais para perceber o poder criativo de um autor como Carlo Emilio Gadda e o motivo por que, desde os anos cinquenta, tem sido reconhecido, com Italo Svevo, como um dos principais escritores italianos da primeira metade deste século: aproveitando-se do carácter aberto da sua língua, Gadda construiu um instrumento literário particularmente complexo e heteróclito, cruzando contributos linguísticos da mais diversa origem, e com excepcionais capacidades expressivas. Além disso, a sua produção literária, iniciada nos anos trinta e tendo talvez o seu maior expoente no romance policial Quer Pasticciaccio bruto de Via Merulana, constituiu-se à margem das correntes que dominaram a literatura italiana até à II Guerra Mundial, tornando-se, por isso, não só única como dificilmente qualificável.

A reedição de O Conhecimento da Dor, numa tradução que se esforçou com mérito por captar os diferentes níveis de língua, tanto semânticos como sintácticos, desde os arcaísmos às formas dialectais, passando por neologismos ou expressões alienígenas, permite perceber a diversidade criativa do barroquismo do estilo de Gadda, que tanto pode assumir uma luminosidade lírica, como tomar-se de uma epicidade tonitruante, mas que é em predominância satírico e caustico. O objectivo desse estilo (que, de todo, não foi compreendido pelos críticos coevos de Gadda, já que inúmeras vezes o acusaram de ser um escritor “macarrónico’) é exclusivamente “sorver” o real, conseguir trazê-lo - através da expressividade com que é nomeado - para dentro das páginas da sua obra. E o carácter fragmentário e inacabado de O Conhecimento da Dor (que, como o autor explica, foi resultante dos “bloqueamentos” que os acontecimentos históricos, entre 1938 e 1945, provocaram à sua gestação) parece realçar ainda mais a concepção que Gadda tem da língua: a de ser, por si só, um instrumento de conhecimento.

Esta obra faz um retrato grotesco da existência como se esta não pudesse ser senão uma caricatura de uma Ideia já de si aberrante. Na visão implacável de um jovem fidalgo, perdido na vastidão de uma América do Sul imaginária, a existência é só uma dor disforme, sem nenhum sentido originário, que devora em mediocridade os seus dias e quem o rodeia, deixando-o entre um desespero prostrante e incontroláveis fúrias contra um Nada que se encarna na sombra lamurienta da sua mãe. A realidade, desde o mais pequeno detalhe às descrições rasgadamente globalizantes - como se cada parágrafo fizesse o esforço de conter o máximo de “matéria” -, tinge-se de comicidade, umas vezes de tons agressivos, outras soturnos; uma comicidade de quem descobriu, num esgar de amargura, que o conhecimento da dor pode ser uma “rapina que esgota tudo”, deixando apenas o seu nome a escurecer páginas e páginas.

Sem entrar em tipificações gastas, é inegável que a lógica discursiva de O Conhecimento da Dor é fundamentalmente poética. Talvez daí a sua dificuldade de leitura; tanto para mais que não existe nenhuma nostalgia de qualquer “paraíso perdido” para amenizar o olhar. No entanto, o leitor resista: verá que entrará em contacto com um universo inconfundível, de uma modernidade que parece vinda de um outro tempo, de uma estranha lucidez que parece brotar gota a gota, palavra a palavra.


Publicado no Público em 1993.

Título: O Conhecimento da Dor
Autor: Carlo Emilio Gadda
Introdução: Gianfranco Contini
Tradução: Nunes Martinho e Ernesto Sampaio
Editor: Vega
Ano: 1993
165 págs., 13,73 €