domingo, 20 de maio de 2012

ALBERTO BEVILACQUA



ARTIFICIOSAS CORRUPÇÕES



Uma das ideias mais generalizadas sobre o romance é a de este ser, por excelência, o instrumento artístico de análise e de crítica social. Simplesmente, o romance, como objecto artístico, é, antes do mais, uma forma de conhecimento que ambiciona uma totalidade, envolvendo o escritor como entidade individual e social. Nesse sentido, não há romance de crítica social que não exija uma coerente reflexão moral que implique e caracterize uma visão do mundo; sem esta, o dito romance de critica social transforma-se num simples “fogo-de-artifício”, mais ou menos habilidoso, mas condenado ao fracasso quanto aos seus fins e como objecto artístico.

Creio que esse é um dos vários equívocos em que tem assente a produção romanesca de Alberto Bevilacqua, um escritor italiano que iniciou a publicação da sua obra nos anos sessenta, obtendo, desde logo, uma significativa consagração. De facto, este autor tem pretendido efectuar, com a sua ficção, uma desmontagem das traficâncias com que os diversos poderes sociais e políticos tem gangrenado o corpo colectivo da Itália contemporânea. O Jogo das Paixões, o romance agora traduzido, insere-se integralmente neste tipo de preocupações.

Através de um enredo que narra a luta pela liderança da Mafia veneziana e as suas relações cúmplices com os poderes públicos, Alberto Bevilacqua pretende retratar uma Itália onde já não se consegue distinguir os contornos da Lei e do Crime. A figura central do romance, o Doge - título irónico dado ao chefe daquela Mafia -, aparece, pelo contrário, como um eventual Redentor, contraditório e sanguinolento, fustigando, pela chantagem, a hipocrisia daqueles que têm o prestígio e o poder e revelando que o seu ostensivo poço de virtudes é um obscuro poço de corrupção.

A imagem final que O Jogo das Paixões transmite da sociedade contemporânea é a de um tecido social completamente esgarçado por tibiezas, traições, denúncias, ódios e prostituições. As “paixões”, a que alude o título, são os furores mortíferos a que conduzem o sexo e o dinheiro, e o termo “jogo” caracteriza os exercícios rigorosos e aplicados de ocultação a que são obrigados esses furores para atingirem os seus objectivos. Mesmo os afectos mais intensos se transformam, depois de apaziguado o desejo, em contratos que visam uma determinada representação social.

Assim, de acordo com a concepção da sociedade que determina a actuação do Doge - em que os indivíduos não passam de artificiosas máscaras que encobrem uma carne manchada pelo pecado original de uma traição e que, por isso, necessita de se alimentar da corrupção dos outros -, Alberto Bevilacqua coloca-se, decididamente, do lado dos “chantagistas”. E isto revela a dimensão absurda da “imago mundi” de O Jogo das Paixões: é que, ao contrário do que os poderes sociais e políticos pretendem fazer crer, impondo hábeis processos de culpabilização que permitem um fácil manuseamento dos indivíduos, o sentimento de corrupção é, antes de social, uma questão do foro íntimo; só quando se assume determinado acto como corrupto é que ele pode ter nefastas implicações sociais. Por isso, a este nível, não existem “máscaras” e “rostos”, porque não existe distinção entre verdade e representação: a máscara é a pele. A mais simples reflexão moral daria, por conseguinte, outra dimensão a este romance e libertaria o autor dos perigosos equívocos para que se vê arrastado.

Talvez não sejam alheias a estas “facilidades” certas opções estilísticas do autor neste romance: não só a construção frásica é, a maior parte das vezes, rebuscada e artificiosa (ou será isto resultante de uma tradução pouco conseguida de um profissional que já obteve muito melhores resultados em obras como as de Primo Levi ou de Umberto Eco?), como, em particular, é inconsequente a decisão de, no próprio texto, utilizar expressões que evidenciem a dimensão puramente ficcional do enredo. Além disso, a maior parte das personagens e das situações narradas são, de modo notório, pouco plausíveis, como se Alberto Bevilacqua se satisfizesse em acreditar que a sua pena é demiúrgica.

É lamentável que o autor não se tenha confinado a produzir um romance de puro divertimento que tem, obviamente, a sua legitimidade própria. Ao comprometê-lo com implicações mais complexas, criou um produto que não é peixe nem carne, fracassando, por isso, em todos os tabuleiros.


Publicado no Público em 1992.


Título: O Jogo das Paixões
Autor: Alberto Bevilacqua
Tradução: José Colaço Barreiros
Editor: Difusão Cultural
Ano: 1992
294 págs., (esgotado)



terça-feira, 15 de maio de 2012

BORIS PASTERNAK




A ESTEPE INCENDIADA



Poucas obras terão gerado tanta polémica até hoje, por razões que escassamente pertencem ao domínio literário, como O Doutor Jivago, de Boris Pasternak, editado pela primeira vez em Itália no ano de 1957. Entendido como um libelo acusatório dos acontecimentos que se tinham passado na U.R.S.S. desde a Revolução de Outubro, este romance, de autoria de um dos mais credenciados escritores soviéticos, foi logo traduzido e editado em todo o Ocidente, obtendo um enorme sucesso. No ano seguinte à sua primeira edição, e no auge de uma explosiva Guerra Fria, era concedido o Prémio Nobel ao seu autor. Por fim, veio o filme homónimo de David Lean, transformando O Doutor Jivago no romance soviético mais popular em todo o mundo.

Entretanto, na União Soviética, e um pouco por todos os países de Leste, tinha começado uma campanha nos meios de comunicação social contra Boris Pasternak. Acusado de idealismo e espírito contra-revolucionário, O Doutor Jivago foi recusado pela prestigiante revista “Novy Mir”, e após a sua publicação no Ocidente, Boris Pasternak foi expulso da União de Escritores (o que o impossibilitava de voltar a ser editado) e é pressionado a recusar o Prémio Nobel. Os últimos anos da sua vida foram passados, no mais estrito exílio interior, na sua “datcha” em Peredelkino, nos arredores de Moscovo, redigindo uma peça dramática que só será publicada muitos anos depois da sua morte em 1960.

Até ao início da década de setenta, com a ampla divulgação da obra de Soljenitsyne e da difusão internacional dos processos dos dissidentes, O Doutor Jivago foi considerado como o caso mais revelador da falta de liberdades e de perseguições ao poder criador na U.R.S.S. e a expressão viva da hipocrisia do movimento comunista.

Mas passados trinta anos, O Doutor Jivago voltou de novo à ribalta. As autoridades soviéticas, com o intuito de exprimirem a sinceridade das suas intenções de abertura no quadro da política de transparência da era grobatchoviana, resolveram arrancar o espinho doloroso que era este romance, permitindo que no próximo ano seja pela primeira vez publicado em russo - e precisamente na revista “Novy Mir” que antes o tinha recusado. Mais uma vez, O Doutor Jivago vai servir de porta-estandarte de uma vontade política e a sua promoção vai de novo reflectir interesses que não são puramente literários.

O sucesso de O Doutor Jivago foi, contudo, uma espécie de maldição para Boris Pasternak. Toda a obra anterior deste autor ficou soterrada pela lava de vulcão que é este romance: em todo o mundo, Boris Pasternak é quase unicamente conhecido como o autor de O Doutor Jivago.

Ora Boris Pasternak é, antes do mais e sem desmerecer a importância da sua obra romanesca, um dos mais importantes poetas russos deste século. Tendo sofrido inicialmente a influência dos poetas simbolistas Alexander Blok e Andréi Biély e do filósofo Nicolas Berdiaev, Pasternak descobre, em 1913, o movimento futurista, torna-se amigo de Maïakovsky e começa a publicar, sob a égide daquele movimento, as suas primeiras colectâneas. Entre o desespero e a descrença e um grande optimismo e convicção no processo revolucionário, vai publicando, além de algumas novelas e de uma narrativa autobiográfica, um número significativo de obras poéticas, ao ponto de ser considerado pelo Partido e pela União de Escritores (numa época em que esta vive sob o patronato benéfico de Gorki) como o maior poeta vivo da União Soviética. A sombra negra do ostracismo só começa a cair sobre Boris Pasternak quando, na década de quarenta, a vida cultural soviética fica dominada pelo mais estreito “jdanovismo”.

Não se julgue, no entanto, que a redacção de O Doutor Jivago implique alguma alteração substancial no pensamento do autor. Desde os anos trinta que Boris Pasternak redigia este romance com a intenção de ser uma “summa” das concepções de arte, de vida e de revolução que, de uma forma esparsa, se encontravam já em toda a sua obra anterior.

Boris Pasternak fora desde sempre um “compagnon de route”, aderindo emocionalmente à revolução, mas receando também o que, depois desta, poderia desmoronar do velho mundo: a burguesia russa vivia então, no meio de um imenso oceano de miséria do operariado e do campesinato, um período de grande projecção criadora - que decerto iria desaparecer...

Este longo fresco da Rússia soviética, que vai desde a revolução de 1905 até aos anos quarenta, foi, contudo, correctamente acusado pelas entidades oficiais: à luz do marxismo-leninismo, O Doutor Jivago reflecte de facto um acentuado idealismo. O que ressalta neste romance é a presença de uma energia telúrica, vital, que anima a imensidão da estepe e da taiga e que brota nas inúmeras florestas atravessadas pelas serpentes infindas de comboios. Mas que também faz erguer, nos invernosos becos das cidades e vilas siberianas, os operários, camponeses e soldados que se irão insurgir contra quem os subjuga, fazendo a revolução.

O Doutor Jivago é, antes de mais, uma narrativa cristalina e de um intenso lirismo, a aprendizagem da ferocidade e da violência, e de como, na revolução, o oportunismo e a mediocridade campeiam ao lado do voluntarismo mais arrebatado. A desagregação económica, motivada pela revolução e pela guerra civil, com o seu lastro de miséria e de infindáveis filas de refugiados enlouquecendo em horizontes de neve e gelo, vai ensombrar esta imagem empolgada da revolução que Boris Pasternak alimentava, fazendo com que tombe num negro pessimismo, convencido de que o caos revolucionário irá asfixiar o impulso vital que estava na sua verdadeira raiz.

O percurso acidentado de Jivago e, em particular, o núcleo narrativo que é a relação Tonia/Jivago/Lara têm um valor eminentemente simbólico por estabelecerem a consonância entre o quadro emocional da personagem principal e o macrocosmos da revolução. E torna-se assim notório que a belíssima relação Jivago/Lara, repleta de encontros e desencontros, filha da revolução, tem o sentido do pulsar da seiva numa árvore (não é por acaso que Jivago “vê” Lara numa sorveira que espalha as suas bagas pelo chão), e que, tal como a revolução se sufoca na vertigem dos tempos sinistros, o Inverno irá gelar a perenidade ilusória desta paixão.

Pode-se dizer que as autoridades soviéticas, sob a batuta de Gorbatchov, não fazem mais do que repôr o que é devido (mesmo sabendo que o romance de Boris Pasternak tem ainda inúmeros detractores na U.R.S.S.), ao permitirem a edição em russo de O Doutor Jivago. Este romance é hoje um clássico, na linha da tradição realista russa, admirável pela utilização da elipse e pelo encadeamento de tempos narrativos paralelos, assim como pela funcionalidade inovadora das descrições naturalistas.

Por fim, convém referir o notável trabalho que constitui a tradução, com base na versão italiana, de Augusto Abelaira. Só se lamenta que o editor, ao utilizar esta antiga tradução, não tenha tido a ousadia de publicar o prefácio de Aquilino Ribeiro e as traduções dos poemas de Iuri Jivago feitas por David Mourão-Ferreira para a edição original, nem demonstrar a necessária consideração pelo leitor que sempre revela assinalar-lhe que está perante a reedição de uma tradução.

Publicado no Expresso em 1987.



Título: O Doutor Jivago
Autor: Boris Pasternak
Tradução: Augusto Abelaira e Moura Pimenta para as poesias de Iuri Jivago
Editor: Publicações Europa-América
Ano: 1987
499 págs., € 18,42