sexta-feira, 23 de novembro de 2012

KIRSTY GUNN



A ÁGUA DA INFÂNCIA


Um dos elementos que mais tem contribuído para o vigor e dinamismo da literatura de expressão inglesa no corrente século tem sido, sem sombra de dúvida, a forma como consegue integrar a produção literária de autores oriundos de países pertencentes à antiga Commonwealth: basta consultar as “short-lists” dos mais importantes prémios literários ingleses para constatar este facto. É certo que esta situação é ainda uma sequela do colossal império que foi o Reino Unido e de continuar, como grande potência económica, a atrair e a formar a “inteligentsia” dos Estados que surgiram a partir da II Guerra Mundial. É neste contexto que se deve compreender a opção de muitos autores originários desses países em residir em Inglaterra e de adquirir a nacionalidade britânica. Mas mesmo em relação aos autores que resolveram permanecer no país de origem, a edição inglesa continua a ser o principal veículo da sua afirmação literária, dado o papel hegemónico que mantem, directamente ou através de sucursais ou de empresas geminadas, na publicitação de obras oriundas das antigas colónias.

A esta “absorção” cultural, não escapam os autores de países, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, em que existem níveis elevados de desenvolvimento económico e cultural. Repare-se, por exemplo, no caso de Katherine Mansfield. De facto, será mais determinante, para a compreensão da obra desta notável contista, saber que nasceu na Nova Zelândia ou que pertenceu aos círculos literários de Virginia Woolf e de D.H. Lawrence? Mesmo nos dias de hoje, em que se reconhece existir, tanto na Austrália como na Nova Zelândia, uma vida literária significativa, onde proliferam prémios, revistas e instituições, a consagração dos seus autores mais importantes, como C. K. Stead, Janet Frame, Alan Duff ou Patricia Grace, continua a fazer-se através da vida cultural inglesa.

Não admira, por isso, que, seguindo as pegadas dos seus antecessores, uma recente escritora neozelandesa, Kirsty Gunn, que despontou literariamente na década de noventa, com esta novela, Chuva, que agora é apresentada aos nossos leitores, o tenha efectuado em Inglaterra, onde ainda hoje vive.

Chuva é uma novela que faz transparecer uma imagem de fragilidade, onde a trama parece estar permanentemente a liquefazer-se, a escapar-se entre os dedos de quem a lê. De facto, o peso do elemento “água” nesta curta narrativa é tão constante, está tão presente em todas as suas páginas, que a própria acção parece desenrolar-se de uma forma ondulada, ao sabor das sinuosidades das elipses, criando uma cortina líquida que, de forma intencional, “turva” o olhar do leitor. Para este resultado contribui um acentuado cuidado estilístico - que se revela na criatividade da sua adjectivação e na depuração lírica das suas breves metáforas - que incute a esta obra uma qualidade poética muito peculiar.

A novela de Kirsty Gunn centra-se no sentimento de profunda amizade, de paixão quase materna, que a narradora, uma criança no início da adolescência, tem pelo irmão de cinco anos e nos seus solitários jogos infantis, em redor do lago próximo de sua casa, com que fugiam ao “olhar” adulto, a sonhar com uma independência selvagem, liberta de qualquer constrangimento, e que eles sabem ser uma utopia inconcretizável.

O universo de Chuva estrutura-se em redor de duas ideias-força fundamentais: a primeira, é a de que existe entre o universo infantil e adolescêntico e o universo adulto um acentuado grau de incomunicabilidade, resultante de visões e interpretações do mundo diferentes e de códigos de comportamento que são ilegíveis de parte a parte; a segunda, é a de que existe, na criança, uma sensualidade difusa, quase pré-sexual, e que é na tepidez dessa “água” que não só se fermenta a sensibilidade infantil, como é através dela que a criança consegue atingir aquela consonância com a natureza que lhe transmite uma auréola de esplendor divino. Neste contexto, a descoberta da sexualidade provoca o desaparecimento desta sensualidade sem objecto, rompendo em definitivo com a referida consonância e deformando o olhar que a narradora tem sobre o seu irmão. No fundo, a descoberta da sexualidade desencadeia o real processo de morte do corpo. Daí que a sexualidade apareça nesta novela como uma culpa desejada, um vórtice que os sentidos suplicam, mas que transforma a infância num paraíso perdido.

Chuva é, sem dúvida, uma das mais belas e interessantes obras que apareceu nos últimos tempos no nosso país sobre a infância. Grande parte da sua comovente beleza advém do pudor com que afronta os sinais trágicos da vida. Neste sentido, as páginas em que narra a descoberta da sexualidade por parte da personagem principal ou aquelas em que se desfecha o clímax da acção são exemplares de contenção emotiva, de tratamento subtil de tudo o que é insustentável para a sensibilidade infantil. Pena é que a tradução, algumas vezes, se deixe ficar demasiado presa à sintaxe inglesa e que, aqui e além, revele opções semânticas que não são as mais ajustadas.

Publicado no Público em 1999.


Título: Chuva
Autor: Kirsty Gunn
Tradutor: Margarida Vale de Gato
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
117 págs., esg.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FRED UHLMAN




AS AFINIDADES IRREDUTÍVEIS



Muitas vezes, os motivos e as condições do aparecimento de um livro, sem determinarem o seu sentido e valor, são acontecimentos que se inscrevem como estigmas no “corpo” da obra e o seu conhecimento contribui inequivocamente para que ela obtenha a sua afirmação plena.

Fred Uhlman viveu cerca de quarenta anos “habitado” por esta história que a edição portuguesa apelou de O Reencontro. Judeu alemão, Fred Uhlman nasceu em 1901 em Estugarda. Já advogado rural, recebeu em 1933 um telefonema de um amigo nazi, aconselhando-o a fugir de imediato da Alemanha. Sem voltar a ver os pais (que vão morrer em Auschwitz), Uhlman, depois de deambular um pouco pela Europa perseguido por todo o tipo de dificuldades, fixa-se em Inglaterra. Aí, nauseado com tudo o que se relaciona com a cultura alemã, resolve abandonar todas as suas anteriores actividades e, com as dificuldades de um homem já formado, aprender a língua inglesa. Enquanto a não domina, começa a trabalhar como desenhador e pintor. Só em 1960 se considerou em condições para redigir esta obra, elaborando, como refere Arthur Koestler na sua introdução, uma “pequena obra-prima” sobre o “tempo em que se derretiam cadáveres para fazer o sabão que mantinha limpa a raça dominante”.

O Reencontro narra a relação de amizade, nos anos de 1932/33, entre dois liceais, a do judeu Hans Schwarz por um descendente de uma das mais importantes famílias aristocráticas alemãs, Konrad vou Hohenfels. Mas esta relação, estabelecida com a capacidade de admiração e fascínio da adolescência, vai ser marcada pela diferença social e pelos preconceitos rácicos, pela ascensão do nazismo, e, por fim, brutalmente interrompida pelo exílio a que Hans Schwarz é impelido. E neste aspecto, na sua extrema simplicidade narrativa, O Reencontro é modelar na forma como encadeia a interferência da História na história privada e como revela que elas são, no fundo, as duas faces de uma mesma moeda.

Mas a singeleza dos meios utilizados na narração desta relação entre dois jovens, feita de uma imediata e intensa empatia e da cumplicidade resultante da descoberta em comum das emoções, e, além disso, de como ela consegue perdurar, após a adversidade imposta pelo nazismo, muito anos depois, transforma O Reencontro numa “história exemplar”, com uma dimensão quase mítica, da catástrofe política e social que foi aquele regime, mas, em particular, desse sentimento dolorosamente frágil que é a amizade.

Por outro lado, tanto a enorme paixão pela terra alemã, pela “Heimat”, revelada por Hans Schwarz (note-se que toda a novela é narrada por esta personagem como se fizesse, largos anos depois, uma rememoração nostálgica desta relação e das deambulações que ela propiciou pela Floresta Negra, pelas margens do lago Constança ou pelos arredores de Estrasburgo), como a sua posição de se assumir antes do mais como suábio, depois alemão e só por fim como judeu, ou ainda, mais tarde, a sua repugnância em contactar com qualquer alemão, tal é a ferida que sente por estes terem construído Auschwitz, demonstra que aquela personagem tem fortes traços analógicos com o próprio Fred Uhlman, ao ponto de transformar O Reencontro numa espécie de autobiografia idealizada.

Por fim, saliente-se alguns efeitos de encenação dramática particularmente eficazes e, por conseguinte, inesquecíveis, desta obra: é o caso do modo como é descrita a entrada na sala de aula de Konrad von Hohenfels, quando Hans Schwarz o vê pela primeira vez, ou então, quando esta personagem descobre, muitos anos depois da separação, o destino do seu amigo, situação esta que transfigura de forma trágica toda a relação narrada e todo o contexto social e político que a envolve.



Publicado no Expresso em 1989.



Título: O Reencontro
Autor: Fred Uhlman
Tradutor: Paula Vitória
Editor: Presença
Ano: 1989
90 págs. € 8,31





quarta-feira, 7 de novembro de 2012

PAUL BAILEY



A SOMBRA DO PAI



Uma das características das literaturas deste século da Europa Central e do Leste é o papel negativo que constantemente nelas assume a figura do pai. Alguma interpretação psicanalisante dirá que esse papel negativo é compreensível, uma vez que considera que a “deglutição” do pai está na génese da ficção, no sentido em que esta é a arte da “ocultação” das origens. Porém, no caso das literaturas referidas, creio que a questão é mais simples e objectiva: as sociedades que lhe deram origem têm uma má relação com a História imediata e a corporização dessa época ergue-se, como é natural, na figura do pai. Foi o pai que a construiu, que a constituiu. Basta recordarmos a dimensão sociológica dos factos sinistros que envolvem a II Guerra Mundial, as ditaduras estalinianas e a Guerra Fria para compreendermos que a radicalidade destas situações seria insustentável sem um “julgamento” das gerações posteriores e que tem sido esse, entre outras artes exorcistas, um dos papéis decisivos da narrativa deste século.

Não é tão comum, no entanto, que semelhante temática apareça na literatura inglesa, como sucede com este romance de Paul Bailey, intitulado Os Pecados dos Nossos Pais (versão infeliz - porque abusivamente explícita - de uma obra que se chama, na edição original, Kitty & Virgil; deve reconhecer-se, contudo, que este título tem pouco valor comercial e que, além disso, a intenção do autor - apresentar duas personagens que, na aparência, são comuns a muitas outras - se perde no nosso país; de qualquer forma, haveria decerto outras hipóteses mais em sintonia com o trabalho de tradução que é, em todas as restantes perspectivas, excelente). Paul Bailey, com uma obra iniciada na década de setenta e constituída, entre outros trabalhos, por meia dúzia de títulos de ficção, é um autor com um reconhecimento um pouco “secreto” em Inglaterra, tendo, porém, entre alguns prémios, já conseguido ser, por duas vezes (com os romances Peter Smart’s Confessions e Gabriel’s Lament), finalista do Booker Prize. Saliente-se que este último romance, agora publicado no nosso país, é, por unanimidade, considerado pela crítica inglesa como a obra mais interessante que o autor até hoje publicou.

Segundo declarações do próprio autor, Os Pecados dos Nossos Pais pretende ser uma homenagem ao povo romeno. Com esse intuito, Paul Bailey viajou demoradamente pela Roménia e pelo Leste europeu, levando cerca de quatro anos a redigir este romance. Nesta perspectiva, a obra concluída é, de certo modo, imprevisível e original. Porque esta “homenagem” deu origem a uma história de amor, elaborada num estilo e com uma estrutura quase clássicos, entre uma inglesa de meia-idade, vivendo do trabalho de preparação “editorial” de biografias, e um romeno, poeta e vagabundo, a viver em Inglaterra e fugido do regime de Ceausescu.

Porém, o que, de imediato, fascina neste romance de Paul Bailey é a forma como concilia e mescla tragédia e ironia, transformando-a numa obra de uma saborosa “ligeireza” que pondera e descreve situações graves e muito dolorosas. Neste sentido, parece que sobre Os Pecados dos Nossos Pais paira, à distância, as sombras tutelares de Milan Kundera e Bohumil Hrabal. Contribui, sem sombra de dúvida, para esta visão global da obra, um estilo que controla, pela farsa, o excesso de dramaticidade de certos momentos, mas, em particular, a criação de um conjunto de personagens secundárias que tingem de uma sábio cepticismo irónico a sinuosidade das suas existências: é o caso das deliciosas criações literárias que são as figuras do mordomo-amigo do pai de Kitty ou da dona da pensão, ex-cantora de ópera, em que Virgil mora.

De forma paradoxal, este romance, que se conclui com um suicídio e uma história amorosa abortada, é um “livro feliz”, já que as suas personagens transmitem, mesmo dilaceradas por sinistros fantasmas vindos do passado, o sentimento de uma intensa euforia pela vida. O amor, tal como nos é apresentado em Os Pecados dos Nossos Pais, seguramente que é incapaz de redimir ou de “salvar”, mas tem a capacidade, não despiciente, de dar um toque de jovialidade em destinos que já estão determinados antes de ele brotar. A própria situação, em que as personagens principais se “descobrem” uma a outra, parece ter os “sintomas” do percurso da sua história amorosa: Kitty está a acordar da anestesia, após ter sofrido uma histerectomia, quando dá de caras com o sorriso de um servente hospitalar, Virgil, que, junto à sua cama, lhe diz, com um sotaque estranho, que nunca tinha visto nenhuma mulher a dormir tão bela.

Todo o romance se estrutura no contraste de duas civilizações e dos comportamentos emocionais que, de um modo complexo, delas emana: por um lado, o modo de sentir britânico, com o seu gosto pelo cosmopolitismo, a sua visão “imperial” das outras civilizações, um quotidiano marcado pela urbanidade das existências; por outro, a Roménia, com o seu nacionalismo “jovem”, onde se faz sentir o peso da ruralidade e das tradições orais milenares, com um quotidiano marcado pelo medo e pela repressão. Ou, por outras palavras, Kitty e a contenção, como forma de se esforçar por depositar o “pé” das emoções e assim alcançar uma imagem de definitiva dignidade no seio da catástrofe; ou Virgil e o abandono à emoção, como forma de vivificar a intensidade poética do momento, fazendo dessa exploração uma forma de vida (por exemplo, são interessantes, até numa perspectiva ideológica, as considerações de Virgil sobre a repugnância que lhe provoca o “ser vigilante”).

É dentro deste contraponto civilizacional que deve ser entendido o estigma que, para as duas personagens principais, constitui o percurso dos seus pais. Tanto o pai de Kitty como o pai de Virgil deixaram atrás de si um rasto de destruição, como resultado da forma como a História, com os valores e princípios que segregou em cada contexto civilizacional, “trabalhou” as suas almas, transformando-os em monstros de frivolidade. A leviandade amorosa do pai de Kitty ou o aberrante comportamento “camaleónico” do pai de Virgil parecem, ao nosso juízo distante de leitores, como “crimes” abissalmente (e talvez objectivamente) distintos. Mas, no contexto da “história privada” de cada uma destas personagens, tiveram os mesmos efeitos devastadores, já que atingiram um poder similar de amputação sobre a sua capacidade de, em plenitude, conseguirem sentir e sobreviver.

No fundo, talvez Os Pecados de Nossos Pais venha reproduzir aquilo que a literatura deste século tem repetido de um modo incessante: que todos nós, quer queiramos ou não, nada mais fazemos, ao longo da vida, do que tentar fugir debaixo da sombra tutelar do pai, como forma de conseguir libertar-se da sua tenaz sufocante e plenamente respirar.

Publicado no Público em 2000.



Título: Os Pecados dos Nossos Pais
Autor: Paul Bailey
Tradução: José Vieira de Lima
Editor: Asa
Ano: 2000
286 págs., € 3,50