segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

CHRISTOPHER ISHERWOOD




AS DIÁFANAS MÁSCARAS


Um caso exemplar de valorização distinta de uma obra, conforme se vão alterando o contexto sociocultural e o modo de interrogar a literatura por parte do receptor, é o da produção literária de Cristopher lsherwood. Quem comparar histórias da literatura inglesa - feitas até aos anos setenta - notará que, quase por unanimidade, todas elas consideram que a ficção, até aos finais dos anos quarenta, deste autor tem o relevo e a qualidade narrativa da de Graham Greene, Evelyn Waugh ou George Orwell (para referir apenas escritores da sua geração). Mas salientam também que, após a sua fixação na Califórnia, a obra de lsherwood se subjugou ao fascínio das filosofias orientais e à problemática homossexual, deixando de ter o mesmo interesse e importância. E chega-se ao ponto, na maior parte dos casos, de nem sequer se referir nenhuma obra realizada a partir dessa altura - isto é, durante quase cinquenta anos de actividade literária.

No entanto, as recentes gerações de leitores e críticos começaram a encarar de forma diferente a produção romanesca de lsherwood, não aceitando aquela demarcação. Quando anteriormente se destacava a dimensão política da sua obra, associando-a à dos escritores que, entre as duas guerras, tiveram preocupações semelhantes, esquecia-se quais as motivações mais ou menos explícitas que o levaram a esse tipo de intervenção literária. Hoje, após a morte recente de lsherwood, torna-se bem claro que aquelas eram originadas por uma vigorosa reacção ao farisaísmo de uma época (mais do que de uma sociedade) e à incapacidade desta em compreender comportamentos que se esquivassem à norma (em especial a homossexualidade).

Porém, já neste período, o que era mais original na sua narrativa era uma sensibilidade e um “olhar” bem peculiares, no contexto literário da época, sobre as éticas sociais, os comportamentos e as relações intersubjectivas. A abertura posterior dos costumes facilitou que a obra de lsherwood se orientasse, na chamada “fase americana”, para uma temática mais subjectiva e pessoal que permitiu a clarificação desse “olhar” com que, inegavelmente, o leitor actual mais se identifica.


Facilmente se consegue caracterizar no seu segundo romance, O Memorial - pertencente, por conseguinte, ainda à fase prestigiada da produção de lsherwood - , agora traduzido, esta forma de sensibilidade e de “olhar”.

O romance procura entender, através da descrição da evolução das diversas ramificações de uma família, as mutações comportamentais e civilizacionais que a I Guerra Mundial provocou na sociedade inglesa. O autor parte do princípio que esta guerra esgarçou o tecido social e que o confronto com a morte originou, também dentro da sociedade, grupos de “vencidos” e de “vencedores”, de gentes que se resignaram a ser dirigidas pelo tempo ou que com ele se afirmaram.

De modo bem interessante, esta temática reflecte-se na própria estrutura de O Memorial. Este divide-se em quatro “livros”, situados em distintos anos da década de vinte, mas sucedendo-se de forma não cronológica; as personagens são introduzidas na trama sem apresentações prévias e o leitor é, por isso, obrigado a gradualmente estabelecer as conexões familiares e afectivas; por fim, cada um dos capítulos, em que se subdividem os “livros”, centra-se numa das personagens, o que permite entrecruzar as perspectivas com que cada uma delas se relaciona com as outras. Estas soluções narrativas acentuam a sensação de estilhaçamento da acção que se adequa na perfeição ao clima psicológico e social que a obra deseja exemplificar.

Contudo, as personagens de O Memorial parecem, mesmo quando estão na plenitude da sua vida, eternos adolescentes em constante desajustamento e necessitando de simular as suas angustiantes interrogações num prazer imediatista e “ligeiro” de viver (note-se que não é apenas neste tipo de caracterização das personagens que existe uma curiosa similitude entre a obra de lsherwood e a de F. Scott Fitzgerald). De facto, todas estas personagens parecem ter a consciência de que a dimensão mais trágica da vida é só existirem ilusórias tragédias. Tudo é contingência, fluidez do tempo, e daí o sorriso amargo com que as personagens de O Memorial encaram o destino: os suicídios são falhados ou perdem o sentido que se lhes quer dar, a morte abrupta dos entes amados transforma a viuvez em formas de comiseração que favorecem o desejo de poder e a dor e os orgulhos feridos transfiguram-se em prazeres e em liberdades. Mesmo os afectos são jogos e a existência matiza-se em simulações que, de tão intensamente assumidas, se tornam a palpável realidade em que se encaixa as relações entre as pessoas.

É esta convicção de lsherwood de que os comportamentos são “máscaras” que, de tão coladas a pele, com ela se (con)fundem, que o afasta dos modos de formular as relações intersubjectivas por escritores de gerações anteriores, como, por exemplo, D. H. Lawrence. Assim, se, por um lado, lsherwood entende que aquelas têm sempre tendência para se afirmar pelos códigos estabelecidos pela civilização, por outro, manifesta uma radical desconfiança relativamente aos comportamentos: eles são sempre o sinal explícito de um inevitável compromisso entre pulsões e contingências sociais.

Não há dúvida que a passagem do tempo só tem comprovado a modernidade de um romance como O Memorial. Mais que não seja, porque o labirinto mediático, em que hoje se vive, tornou evidente aquilo que o “olhar” de lsherwood prenunciava: não existe nenhuma forma de amor ou de morte exterior às linguagens que socialmente se constroem.


Publicado no Público em 1990.



Título: O Memorial
Autor: Christopher lsherwood
Tradução: Maria do Rosário Sousa Guedes
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
254 págs., € 8,46



LARS GUSTAFSSON 1




O MAL ABSOLUTO



Conforme se vai lendo História Com Cão, o último romance de Lars Gustafsson traduzido para português, percebe-se que este possui uma “tonalidade” que o demarca na produção literária contemporânea a que habitualmente se tem acesso no nosso país; e o leitor que esteja um pouco familiarizado com os romances deste autor (as Edições Asa já lhe traduziram e editaram três livros) sabe que é comum às suas restantes obras. Porém, de um modo contraditório, assalta também ao leitor a dúvida (talvez irresolúvel) de saber se essa “tonalidade” é de facto específica da produção narrativa do escritor ou característica do contexto cultural de onde emana, já que se lhe pressente alguma sintonia com o “tom” de outras manifestações artísticas (literárias ou não) originárias da Suécia.

Seja como for, Lars Gustafsson é hoje não só o principal “embaixador” desta literatura periférica, como está estreitamente ligado à definição do seu “mainstream”, pelo trabalho crítico e ensaístico que exerce desde os anos cinquenta e, em particular, pela obra romanesca que começou a construir a partir da década seguinte. Além disso, o “diálogo”, nem sempre pacífico, que estabeleceu ao longo de mais de trinta anos com o seu amigo, e escritor, Sven Delblanc (falecido no ano passado), sobre todos os aspectos da realidade sueca, é hoje considerado como uma das mais estimulantes reflexões produzidas no seio da cultura do seu país durante este século.

Confesso que, de início, receei sobre o resultado deste romance, ao constatar que se passa em Austin, no Texas (cidade, em cuja universidade, Lars Gustafsson, há muitos anos, lecciona), pois estava convencido que a “tonalidade” referida era nórdica em demasia para que fosse transponível para outra área cultural e geográfica, sem parecer artificiosa. No entanto, Lars Gustafsson resolve muito bem este “risco” através da criação de um conjunto de situações que integram bem o leitor nos costumes de uma típica cidade média americana. E, algumas delas, são verdadeiras preciosidades literárias: recordo, por exemplo, o pormenor, bem humorado, da personagem principal, em noites de insónia, “dialogar” com a sua máquina limpadora de fundos de piscina…

Mas, por outro lado, talvez seja essa “mudança de paisagem” que torna mais evidente algumas das constantes narrativas que tipificam a produção literária deste autor.

Primeiro, a necessidade de uma ambiência de certa “semi-ruralidade”. Como se esse pequeno cosmos, com relações de vizinhança bem definidas, contivesse toda a problemática do mundo... Por isso, as notícias vindas de “outros universos” só servem para confirmar a sintonia que existe com esse pequeno cosmos retratado. Assim, em História Com Cão, as catástrofes naturais e sociais, de que a personagem principal vai tendo conhecimento, estão em perfeita consonância com aquilo que descobre, em pequenos sinais, no seu mundo privado: a crescente presença, por todo o lado, de um irremediável “mal absoluto”.

A segunda, o tipo de personagem principal que centraliza toda a estrutura narrativa: é sempre uma figura de cinquenta/sessenta anos, culta ou, pelo menos, com uma séria capacidade de reflexão sobre os mais ínfimos e efémeros pormenores do quotidiano e que, perante a diversidade da vida, tem sempre uma atitude de humildade quase religiosa… mas bem temperada de ironia.

Por último, todo o romance se centra, como se fosse uma monografia, sobre um tema de cariz filosófico, tratado de um modo exaustivo (deve-se a este aspecto o reconhecimento de que Lars Gustafsson é, antes do mais, um narrador-filósofo), e que ressalta das circunstâncias mais triviais da vida. É esta característica que permite estabelecer um dos contornos identificadores da sua obra: uma espécie de “densidade leve”, resultante de uma reflexão, integrada no mais simples e banal quotidiano, sobre questões determinantes da existência.

O carácter explícito em excesso destas componentes narrativas comprova que História Com Cão não é a melhor obra de Lars Gustafsson (tendo à mesma todos estes ingredientes, não há dúvida que o melhor romance deste autor continua a ser A Morte De Um Apicultor: a reflexão, verdadeiramente sentida - dando a este termo a sua significação mais “radical” -, sobre o papel que a “dor” tem na nossa existência, dá a esta obra uma dimensão pungente que a torna inesquecível). Em duas linhas, descreve-se a sua situação dramática nuclear: uma noite, Erwin Caldwell, juiz de falências em Austin, quando vai colocar o lixo na rua, vê um cão que, como em noites anteriores, ao tentar comer alguns restos, despeja o caixote, espalhando o conteúdo no seu jardim; perante a situação, perde as estribeiras e esmaga-lhe a cabeça à pancada. Este acontecimento desencadeia na personagem principal, figura com uma vida pacata e serena, um conjunto de dúvidas que passa a ocupar-lhe, de um modo obsessivo o seu espírito e ao qual parece reconduzir todos os pequenos actos e situações do quotidiano: “Se Deus existe, qual é então a origem do mal? Se Deus não existe, qual é então a origem do bem?” Será que “as concepções morais são apenas antropologia, como a etiqueta à mesa”?

Acredito que, apresentadas desta forma, estas questões possam parecer um pouco “démodés”, desligadas do frenesim do nosso mundo. Mas a capacidade narrativa de Lars Gustafsson, ao revelar como elas transparecem nas mais banais situações, permite-nos compreender como são determinantes, pois que nada, ao nível do comportamento pessoal ou da concepção que se faça do mundo, terá sentido sem a sua, mesmo que ilusória, resolução privada.


Publicado no Público em 1996.


Título: História Com Cão
Autor: Lars Gustafsson
Tradução do Sueco: Ana Diniz
Ano: 1996
Editor: Edições Asa
221 págs., € 10,47





quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

GONZALO TORRENTE BALLESTER



UMA FICÇÃO VORAZ



Em vários textos ensaísticos, Gonzalo Torrente Ballester sempre defendeu a novela cervantina como um paradigma narrativo inesgotável, encarando-a fundamentalmente como um exercício lúdico e cognitivo, um campo de “significação verbal” cujo principal recorrente é a produção escrita anterior. Devido, talvez, a esta forma de entender a ficção, a obra narrativa deste autor, ao longo das suas diversas fases, nunca se encontrou de todo ajustada às correntes estéticas dominantes da literatura espanhola do pós-guerra: nem na sua fase realista (refiro-me em particular à trilogia Los Gozos y las Sombras) existiu um objectivo linearmente detectável de problematização social ou de empenhamento ideológico, nem na fase de experimentação das estruturas narrativas houve um afastamento radical dos modelos ficcionistas clássicos (veja-se Off-side).

De certo modo, é só na fase conhecida por “trilogia fantástica” - iniciada, já na década de setenta, com La Saga/fuga de J.B. e que inclui o romance, agora traduzido, Fragmentos do Apocalipse e La Isla de los Jacintos Cortados - que Ballester se aproximou mais do paradigma cervantino. De facto, esta fase, resultante de um longo processo de maturação estética e narrativa, foi em geral assumida como charneira na recente literatura espanhola, visto que antecipou alguns princípios narrativos que os actuais ficcionistas protagonizam e procuram afirmar: ironia, valorização da intriga e da construção da personagem, assunção integral da especificidade do universo verbal da ficção, intertextualidade.

Em todos estes aspectos, Fragmentos do Apocalipse revela-se exemplar. O romance é constituído por um “diário de trabalho” onde um narrador/romancista vai descrevendo o difícil trabalho de elaboração de um romance, da construção do seu cenário e de como lhe “aparecem” as diversas personagens e estas se vão encadeando no jogo labiríntico das situações plausíveis. Trata-se, por conseguinte, de um metaromance em que Ballester reflecte sobre os mecanismos da construção narrativa e sobre a forma como a ficção se relaciona com a experiência do autor, isto é, com a própria realidade.

O próprio Ballester afirma, no prefácio à 2ª edição castelhana de Fragmentos do Apocalipse que a versão portuguesa reproduz, que pretendeu fazer este romance o mais realista possível e, se ele parece fantástico, é porque a realidade de um ficcionista é fantástica, dada a sua componente imagética.

Porém, mesmo nesta afirmação, já sobressai a profunda ironia com que é construído todo o romance. Senão, vejamos: se, de início, há algumas alusões que permitem uma identificação entre o autor e o narrador, rapidamente se percebe que essa identificação é ilusória. O narrador só existe no romance, o cenário por onde deambula é aquele que ele constrói e “diz”, as figuras com que se encontra são as personagens que entram no seu romance e ele inventa (ou “rouba” a obras alheias): o narrador/romancista é, por conseguinte, como tudo o resto no romance, pura “significação verbal”.

Cria-se, assim, um exercício vertiginoso: Fragmentos do Apocalipse é um romance constituído por um “diário de trabalho” que, por sua vez, insere um romance. Note-se que, a maior parte das vezes, não existe nenhuma distinção entre a “realidade’ do narrador/romancista e a “realidade” que ele constrói no seu romance. Conclusão: Fragmentos do Apocalipse estrutura-se numa “mise en abyme”, onde cada elemento referencia ou remete para outros elementos do romance ou para situações características da história literária ou cultural.

Por isso, creio que não é de espantar que se faça, em complemento, mais a seguinte afirmação: por este romance perpassa em alusões, trocadilhos, integrações de diverso nível (até mesmo, como já é comum no autor, ao nível estilístico), as mais importantes obras da literatura espanhola e, entre elas, muito em particular, essa novela, determinante para a ficção contemporânea, que é Niebla de Unamuno. Pode-se mesmo entender Fragmentos do Apocalipse, em certa perspectiva, como um prolongamento - ou uma resposta crítica, como o próprio Ballester prefere - àquela obra.

Dentro das estimulantes e inúmeras questões que Fragmentos do Apocalipse coloca, creio que convinha referenciar algumas: primeiro, que qualquer personagem ficcional (incluindo o próprio autor como determinante ‘personagem” literária) não é inventada, mas mero “puzzle” de “encontros” reais e literários; segundo, que o romancista é um simples jogador no xadrez das situações imaginadas ou, como o próprio Ballester metaforiza, um “Mestre das Pistas Que Se Bifurcam”; terceiro, que o autor, como tal, só existe com e dentro da obra, não sendo fácil (nem, de certo, 1ícito) procurá-lo em qualquer “exterior”; quarto, que a ficção não é um resquício, inevitavelmente deformante, de qualquer realidade, mas, pelo contrário, é a ficção que “devora” a realidade, fazendo com que esta, com o tempo, não tenha existência exterior ao “verbo”. Observa-se, em relação a este ultimo aspecto, que Fragmentos do Apocalipse se constrói em redor da criação de um “romance falhado” (o que, a seu modo, é bem arguto sobre a condição estrutural do romance como género) cuja “realidade” se volatiliza no seu final, como sucede, de forma não explícita, quando se encerram as páginas de qualquer romance.

Por fim, convinha salientar que poucas vezes, na edição portuguesa, se encontra, infelizmente, uma tradução que esteja à altura da dificuldade e da importância de obras como Fragmentos de Apocalipse. Não é este o caso: o leitor está de parabéns porque o tradutor revela não só uma louvável competência literária, em particular na reprodução do humor, bem “sui generis”, de Gonzalo Torrente Ballester, como um cuidado bem ajustado em situá-lo nas infindáveis referências à cultura espanhola, imprescindíveis para uma correcta compreensão de uma obra que é determinante na cultura contemporânea e, ao mesmo tempo, uma aprazível leitura.

Publicado no Público em 1991.


Título: Fragmentos de Apocalipse
Autor: Gonzalo Torrente Ballester
Tradutor: António Gonçalves
Ano: 1991
Editor: Editorial Caminho
307 págs., esg.