segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

THORNTON WILDER




A PONTE IMORTAL


Se o leitor partilhar o contestado princípio de que a corrente dominante da literatura americana é a que pretende apreender o real vivido (e não tanto o realismo, como é habitual ver enunciado) estará, pelo menos, em melhores condições para perceber por que é que os primeiros romances de Thornton Wilder, publicados durante os anos vinte e trinta, deram (e dão) a sensação de estarem de todo deslocados e desenraizados. De facto, este autor, coetâneo da “lost generation”, elaborava uma ficção de características “europeias”, eminentemente “histórica”, cosmopolita e “culta”, e de costas voltadas para a realidade americana. Segundo o que Thornton Wilder escreveu na suas memórias, o autor deve a “descoberta” desta realidade a Gertrude Stein e, por isso mesmo, ela só adquire maior realce na sua produção dramática, a que o autor se vai dedicar durante a década de trinta, em obras, como Our Twon e The Skin of Our Teeth, que não só obtiveram um tremendo sucesso como hoje são consideradas peças clássicas do repertório contemporâneo americano.

Desse período inicial, o romance agora traduzido, A Ponte de San Luis Rey, foi o mais popular e prestigiado, ganhando o Premio Pulitzer de 1927. A obra desenrola-se durante o séc. XVIII, no Peru, quando uma ponte suspensa, na estrada que liga as duas principais cidades desta colónia espanhola, cai, arrastando para o precipício cinco vitimas. Um frade, Frei Junipero, que assiste ao acidente, entende-o como um claro desígnio de Deus e, por isso, resolve estudar metodicamente a vida dos sinistrados, de forma a conhecer qual a Sua intenção. A obra resultante foi considerada herética e queimada, excepto um exemplar, e o narrador de A Ponte de San Luis Rey decide refazê-la com o intuito de descobrir qual a falha que a deformou.

Esta trama vai servir a Thornton WiIder para construir uma parábola sobre o que de facto motiva a existência e qual o sentido que dela decorre. A descrição da vida daquelas vítimas demonstra que não é tanto um projecto que as encaminha, mas uma espécie de nó obsessivo, resultante de uma situação de desamor bloqueante, em que toda a sua existência se enreda na ânsia de una resolução satisfatória. A morte aparece-lhes quando, pelas circunstâncias, elas abdicaram de ver correspondido o seu afecto, abrindo-se a novas perspectivas. Por isso, parece que a morte vem reforçar, de forma terrífica, a dimensão absurda do seu destino ou, então, assinalar que aquele afecto, mesmo condenando-as ao sofrimento, é a única razão da sua existência. De qualquer modo, é claro para Frei Junipero que estas mortes provam a opacidade da intenção de Deus, originando todas as dúvidas sobre a Sua efectiva presença: é esta descoberta pessimista que irá condenar a obra do frade à fogueira.

O que o narrador de A Ponte de San Luis Rey descobre - e foi esse o erro do frade - é que o sentido dessas vidas não está nelas próprias, mas no seu devir. É a sua morte que transfigura os seus afectos, canalizando-os, como se fosse por vasos comunicantes, para os entes amados que, deste modo, ficam “possuídos” pela intensidade amorosa de que foram objecto. Por isso, eles são impelidos a prolongar esse lastro de que foram depositários, criando um ciclo infinito e universal. Numa última fala, um deles expressa a razão do romance: “Mas em breve morreremos e toda a memória desses cinco terá desaparecido da Terra, e nós próprias seremos amadas por um instante e depois esquecidas. Mas o amor terá sido suficiente; todos esses impulsos de amor regressam ao amor que os criou. Nem mesmo a memória é necessária para o amor. Há uma Terra dos vivos e uma Terra dos mortos e a ponte é o amor, a única sobrevivência, o único sentido.”

Este romance afirma-se, assim, imprevisivelmente, cristão, encarando a “caritas”, no fundo, como a verdadeira substância divina. Mas, abstraindo-se da sua orientação metafísica, convém referir que A Ponte de San Luis Rey revela-se rigoroso na construção da parábola, no encadeamento das diversas biografias das personagens, e esta concisão clássica transforma-o numa leitura fascinante. A tradução portuguesa, galardoada com o Prémio Thornton Niven Wilder de 1990, é, de forma notória, um trabalho de paixão e, talvez por isso mesmo, absolutamente exemplar.

Publicado no Público em 1991.


Titulo: A Ponte de San Luis Rey
Autor: Thornton Wilder
Tradução: Daniel Gonçalves
Editor: Difel
Ano: 1991
112 págs., € 5,71





segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

ANNA SEGHERS





O PODER COMO VÍRUS



O livro A Sétima Cruz é apresentado nos escaparates das livrarias com uma cinta roxa que transcreve uma longa citação de Jorge Amado a salientar a sua importância na resistência ao nazismo. O romance começa também com uma dedicatória “aos antifascistas da Alemanha, mortos ou vivos”. Chega, para quem não conheça a autora (Anna Seghers foi, durante algumas décadas, a escritora mais prestigiada da República Democrática Alemã), para situar esta obra: estamos no reino da literatura realista com intuitos edificantes e de exaltação política.

Os aspectos negativos deste tipo de produção literária já foram bastamente analisados: a omnipresença dos referidos intuitos ideológicos formativos paralisam o desenvolvimento das estruturas narrativas, canalizando-as para caminhos de duvidosa evidência. O próprio modelo, que a sombra tutelar desta literatura, Gyorgy Lukacs (que tanto apadrinhou este romance), se esforçou por conceber, serve como roteiro crítico para a desmontagem desta ficção.

Mas “marcar” esta obra porque oriunda de uma determinada literatura nacional (que tem alguns exemplos de ficcionistas muito interessantes, como é o caso de Christa Wolf), ou “epitetá-la” como pertencente a uma ficção precocemente envelhecida, é demasiado fácil.

É evidente que o espirito “jacobino” de vanguarda política, o morfismo ou amorfismo do povo conforme consegue ascender aos céus da consciência de classe, a presença sempre, sempre libertadora do herói positivo aí estão a revelar a data de um texto.

Mas A Sétima Cruz é também um digno representante de um período importante da história da literatura contemporânea. E não só porque consegue revelar uma capacidade de observação e análise invulgar, que o liberta duma concepção do real demasiado esquemática, como porque possui uma inegável eficácia dramática que, de certo modo, justifica a imediata notoriedade internacional que granjeou, mal apareceu: descrevendo uma fuga de um campo de concentração, o romance desenvolve uma série de fios de enredo directa ou indirectamente relacionáveis com a própria fuga, apresentados de forma sincrónica, o que permite construir um conjunto de quadros que transmite uma imagem facetada do comportamento do povo alemão sob o poder nazi.

Esse conjunto de situações expõe, desse modo, em vários contextos sociais e caracteriais, o resultado da acção dos diversos mecanismos de “irracionalidade” que regimes, como o nazi, em que um aparelho ideológico fechado procura normalizar todos os dinamismos sociais, têm de apelar para manter a “ordem” necessária à sua subsistência. A construção de um “inimigo”, etiquetado uniformemente pela propaganda, e a criação de uma “mimesis” colectiva, de tipo fetichista, pelo poder produzem ou uma falsa concertação em redor desse poder ou um clima de pânico social pelo seu carácter discricionário e pessoal que, por sua vez, origina na população uma busca da sobrevivência através do total alheamento do que se passa na esfera do político.

Mesmo os que se procuram “armar” de um outro poder contra este poder instituído, os “resistentes”, vivem com e no vírus deste, pois que nem conseguem libertar-se do medo, nem do sentimento de culpa pelos diversos graus de compromisso que o poder lhes exige para conseguirem sobreviver (e, de certo modo, continuarem a “resistir”). A Sétima Cruz é, antes do mais, um “tratado” sobre a forma como este sentimento condiciona a aproximação ao outro, no pensamento e na acção, e como motiva em cada um a vergonha de (con)viver com a brutalidade e a barbárie.

Aparentemente, nada parece escapar aos tentáculos desse poder. No entanto, alguns, como o pastor Ernest, conseguem viver uma relação atemporal com os elementos, amando e criando(-se), defendendo-se pelo prazer de viver contra o traumatismo da culpa. São esses - os que não são “tocados” pelo poder - que este mais teme, os que transportam a esperança do esquecimento com que se pode reconstruir uma nação. Os verdadeiros “heróis positivos”.


Publicado no Expresso em 1983.



Título: A Sétima Cruz
Autor: Anna Seghers
Tradução: Marília Vasques
Editor: O Oiro do Dia
Ano: 1983
534 págs., esg.



sábado, 2 de fevereiro de 2013

THOMAS KENEALLY



O TORMENTO DOS INOMINADOS



Uma das mais simples faculdades da criação artística de cariz narrativo - mas que não é, por isso, minimizável - é a sua capacidade de permitir viajar por espaços e tempos que seria de outra forma impensável. Porém, até os leitores menos curiosos por cenários longínquos sabem que a literatura não é só isso: é a sua capacidade de transfigurar lugares e vidas que faz com que um bom romance, mesmo contextualizado em regiões muito localizadas ou exóticas, provoque uma cumplicidade que abre sentidos à existência do leitor e lhe suscita um sentimento de fraternidade na “espécie”. Se não fosse isso, quem se interessaria no nosso país por uma história situada numa pequena cidade do norte da Nova Gales do Sul na passagem deste século? E, contudo, são romances como este Uma Cidade À Beira-Rio de Thomas Keneally que nos fazem lembrar estas considerações basilares, mas determinantes, para compreender as potencialidades (e as especificidades) da produção artística.

A literatura australiana das últimas décadas tem revelado alguns autores que se têm distinguido por uma obra pujante na sua diversidade estilística e temática. Lembro, para só referir os autores que têm obtido reconhecimento internacional, os nomes de Christina Stead, de Frank Moorhouse, de David Malouf (que ganhou o ano passado a primeira edição do Irish Impac Award, o prémio literário internacional para uma obra com maior valor financeiro em todo o mundo), de Peter Carey e de Thomas Keneally. De todos estes, creio que só as obras de Peter Carey e de Thomas Keneally foram traduzidas para português - e o último, seguramente, porque um senhor chamado Steven Spielberg resolveu fazer um grande filme, A Lista de Schindler, a partir de um romance homónimo deste autor.

Creio que, há alguns anos atrás, se afirmasse que um escritor era um excelente profissional, se entenderia isto como uma forma encapotada de diminuí-lo. Sinceramente, espero que isto já não suceda, porque a leitura dos romances de Thomas Keneally deslumbram, antes do mais, pelo cuidado perfeccionista na contextualização e na conformidade estilística que caracterizam um grande profissional. Uma Cidade À Beira-Rio é uma história muito bem contada, através de uma significativa versatilidade estilística, onde a diversificação rítmica da frase atinge inúmeras vezes uma verdadeira dimensão poética, em que a natureza pulsa com um intenso lirismo e onde, por fim, o humor e uma emoção contida em parâmetros expressivos de grande qualidade conseguem fixar, de forma inolvidável, certas situações dramáticas e certas personagens.

Uma classificação apressada situaria Uma Cidade À Beira-Rio como mais um romance de fronteira e de pioneiros, idêntico a muitos que a literatura americana já produziu, mas aqui no contexto geográfico australiano. No entanto, estas regras de subgénero romanesco - claramente assumidas pelo autor - têm uma significação muito peculiar nesta obra. Com um pouco de ironia, pode dizer-se que a personagem principal deste romance é a cabeça de uma rapariga desconhecida que morreu quando fazia um aborto clandestino e que, conservada dentro de um frasco, deambula por toda a narrativa e, em particular, na consciência de um “merceeiro” sem vocação para tal, chamado Tim Shea. E percebe-se que a verdadeira “fronteira” que se questiona neste romance é entre a existência e a inexistência e que ela se situa entre a posse ou não de um “nome”.

Mas a questão não é apenas onomástica. O que significa ter um “nome”? Aqui cruza-se no romance uma outra história muito esclarecedora: a de Lucy, a criança órfã - e a forma como é narrada a morte do seu pai distingue de imediato um grande escritor - cuja vocação suicida é resultante da certeza que a indisponibilidade afectiva dos outros para consigo a torna num ser “inominado”, isto é, de existência insignificante. Percebe-se, assim, que “aquilo que nomeia” é a teia de afectos que nos rodeia, que a questão do nome é uma questão de amor.

É esta identificação da vida com a teia de afectos que define verdadeiramente a linha de fronteira, repudiando todas as presenças tentaculares da morte, apareça ela através de uma anónima cabeça decapitada, de uma criança suicida, da Guerra Anglo-Bóer, da peste bubónica, da hipocrisia social (com o seu cortejo de discriminações sexuais e raciais) ou de formas larvares de fascismo. Por isso, o pioneirismo de Tim Shea afirma-se na simplicidade de quem, como qualquer outro homem comum atento, sabe que, inevitavelmente, esteja onde estiver, está “sempre” na linha de fronteira, defendendo a especificidade cristalina do “nome” contra o desfigurante anonimato da morte.

Por tudo isto, pode afirmar-se que Uma Cidade À Beira-Rio é um belíssimo romance “cristão”, no sentido mais profundo e universalista deste termo, e bastante invulgar na recente literatura contemporânea. Pena é que, mais uma vez, esta tradução seja muito irregular, apresentando um português que exige, em inúmeras páginas, a mão de um bom revisor. Quando será que alguns dos nossos editores se convencem que a defesa de uma obra passa, antes do mais, por uma boa versão em português, mesmo que isso acarrete mais alguns custos? Esperemos que os nossos leitores saibam resistir a “este” português e leiam um romance que merecia um melhor destino no nosso país.


Publicado no Público em 1996.



Título: Uma Cidade À Beira-Rio
Autor: Thomas Keneally
Tradução: Sérgio Fiadeiro
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1996
391 págs., € 19,64