quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ÁLVARO POMBO

 
 
 
 
A IDENTIDADE MATERNA

 
Uma das cíclicas interrogações que aparece nos cenáculos literários, tanto nacionais como internacionais, é sobre a morte da literatura (ou mais especificamente do romance). Colocando já de lado a inutilidade da questão, um dos aspectos que ela evidencia é o gozo (ou, noutros casos talvez, o sincero desespero) apocalíptico de alguns humildes mortais, ligados a estas matérias, se sentirem a “viver” hipotéticas “milenares viragens de páginas da História” e, por isso mesmo, serem os últimos representantes de uma linguagem. O que é de estranhar nesta formulação é os seus autores não desconfiarem de um certo “espírito de época” (nunca se viu, como nos últimos tempos, tantos “fins” - da História, das religiões, das artes), de continuarem, de um modo irreflectido, a associar a morte das línguas com a das linguagens (é possível conceber em termos históricos o fim de uma linguagem?) e de não perceberem que, quando estão a prever a morte da literatura ou do romance, estão, pelo contrário, a prenunciar a sua própria morte como leitores.

 
Porém, tem de se confessar que, por vezes, a leitura de certas obras, como é o caso de Casa das Mulheres de Álvaro Pombo, “parece dar sentido a este receio do fim da literatura e do romance. Álvaro Pombo (n. 1939) é um dos autores mais conceituados da vizinha Espanha, com uma obra já vasta de romancista, e que obteve diversos galardões literários, entre os quais o mais recente Prémio Nacional de Narrativa com este romance agora traduzido. No entanto, Casa das Mulheres, para além de algumas virtualidades que uma leitura cuidada pode esforçar-se por desvendar, dá uma primeira impressão de ser um romance que nasceu “velho”, sem ter adquirido a sabedoria que o tempo traz.

 
É certo que o autor já nos habituou a uma certa argúcia na observação psicológica e a um tratamento particular das personagens, perspectivando-as segundo um prisma pessoal, o que dá origem, aqui e além, a algumas asserções que são preciosidades fulgurantes. Mas nem isso chega para que não fiquemos com a ideia de que Casa das Mulheres não seja uma espécie de teia de aranha, salpicada de cristais de orvalho, mas totalmente esgarçada e onde o próprio autor se enredou.

 
A nossa perplexidade começa logo com o sentido que mobilizou o romance. Tudo leva a crer que o autor pretendeu delimitar, em termos romanescos, uma “especificidade do feminino na Espanha franquista. É esta leitura que consegue dar uma visão mais integrada e significativa desta obra e que o título original (Donde las Mujeres) expressa (note-se que o título português parece-nos uma versão acertada de um título “complicado” para uma tradução literal e sintomático de um trabalho de inegável qualidade). Mas será ainda estimulante e criativo formular nos nossos dias um projecto semelhante?

 
A própria estrutura romanesca transmite ao autor um estatuto ambíguo. Ao colocar, como narradora do seu romance, uma figura feminina que, durante a maior parte da acção dramática, se “identifica” com os valores, as regras e a visão que predominam na “casa das mulheres” onde vive, o autor parece procurar ocultar a sua “visão masculina”, impossível de escamotear, por detrás dela - o que não é muito coerente com a sua visão do romanesco que valoriza a especificidade espaço/tempo como coluna dorsal da formulação narrativa.

 
Casa das Mulheres desenvolve-se sinuosamente através do processo formativo, infantil e adolescêntico, de duas irmãs, confrontando-o com o estádio de maturidade de outras irmãs - a mãe e a tia - pertencentes à geração anterior (excluindo, neste caso, uma terceira que “morre de amor” logo nas primeiras páginas), todas vivendo em duas casas próximas e isoladas num promontório que as marés transformam em ilha. É evidente que estas últimas - uma com um comportamento mais excêntrico e mundano, outra marcada pelo gosto de uma vivência intimista e irrealista e ocultando-se permanentemente sob um manto de veleidades artísticas - estabelecem uma órbita de comportamentos que cerca as “jovens” e se torna a sua constante referência. Mas, tão importante como a interactividade entre estas duas gerações, é a circulação de diversas figuras masculinas que “visitam” de um modo cíclico estas mulheres e que povoam o seu imaginário como entes frágeis, esbatidos e, ao mesmo tempo, determinantes.

 
De facto, essas figuras masculinas (no seu diverso estatuto de pais, maridos, amantes e irmãos), na generalidade mais ausentes do que presentes fisicamente, aparecem como duendes que, com a sua simples presença e com o estatuto que representam, se transformam nas “estacas” por onde tem que passar o sinuoso “slalom” do destino destas mulheres. No fundo, os homens são embaixadores de um universo “exterior” à casa materna que, por um lado, a condiciona com regras, legais e económicas e, por outro, origina um certo fascínio entre os seus habitantes que inevitavelmente leva ao seu desmoronamento. Porém, quando este sucede, o que as sobreviventes fazem (isto é, as representantes da geração mais nova) é “transportar” os elementos identificadores dessa casa materna, fundando uma nova.

 
O que Álvaro Pombo pretende evidenciar, com Casa das Mulheres, é que existe um universo-matriz (“a identidade é sempre maternal”, afirma o autor já para o final do romance) que, ao longo dos tempos, se vai alterando, sem se modificar, em consequência da contingência que é a presença, no seio desse universo, da “figura masculina” - como se esta fosse o grão de areia em redor da qual se forma a pérola da ostra feminina. Por conseguinte, na mulher, tudo se transforma e nada se modifica, já que ela transporta consigo a identidade materna.

 
  Publicado no Público em 1997.

(Foto do Autor de Europa Press). 

 
Título: Casa das Mulheres
Autor: Álvaro Pombo
Tradutor: Luís Filipe Sarmento
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1997
230 págs., € 5,04