terça-feira, 19 de novembro de 2013

MICHEL RIO 1

 
 



PRETENSÃO E TEORIAS

 Desde há alguns anos, que se foi generalizando a “imagem” da literatura francesa contemporânea como desinteressante, confusa e maçadora, de um formalismo excessivo, solipsista e de temática medíocre, e tenta justificar-se esta “imagem” pelo facto de os antigos “clercs” do pós-guerra e dos anos sessenta terem desaparecido e não existirem novas figuras que os tenham substituído. Mas quem acompanha de forma atenta o desenvolvimento desta literatura sabe que essa “imagem” é bem injusta e não tem em consideração que a atmosfera cultural do mundo se alterou profundamente nos últimos vinte anos e hoje os ventos sopram de forma hegemónica vindos das terras anglo-saxónicas. E que esta circunstância óbvia não retirou interesse à literatura francesa, só lhe retirou “visibilidade”.

No entanto, qualquer argumentação em favor da cultura e da literatura francesas torna-se sinceramente difícil em presença de livros como este O Princípio da Incerteza de Michel Rio. Este escritor, que começou a publicar nos finais da década de setenta, tem construído uma obra prolífera, mas caracterizada por uma significativa irregularidade: alguns dos seus romances são estimulantes, lembro os casos de Merlim e Tlacuílo (também traduzidos e editados pela Ed. Teorema), ou ainda de Manhattan Terminus e, segundo parece pela recepção que lhe fez a crítica francesa, o muito recente La Statue de la Liberté; outros são, de uma forma quase inexplicável, assombrosamente falhados, como é o caso deste muito breve O Princípio da Incerteza. De qualquer modo, esta irregularidade já permitiu perceber uma das principais tentações em que o autor por vezes cai, fazendo desmoronar alguns dos seus romances: o gosto de Michel Rio pela filosofia e pela teoria em geral faz com que as suas obras sejam muitas vezes uma mera “exposição” de algumas problemáticas da actualidade, sem uma verdadeira e coerente contribuição do autor, nem um elaborado e consistente tratamento narrativo.

 O Princípio da Incerteza inicia-se com uma situação onde um escritor, que desistiu de escrever, deambulando à beira-mar, se sente, de súbito, fascinado por uma paisagem. E, perante a emoção que esta paisagem lhe provoca, torna-se mais convicto no seu cepticismo sobre o sentido do seu trabalho, reforçando-lhe a ideia de que o único sentido para a existência é, depois de fruir o universo como um puro “voyeur”, “se diluir” nele numa comunhão mortal.

 Porém, depois deste princípio relativamente aliciante, Michel Rio resolve efectuar uma viragem no romance e iniciar, à maneira das novelas em diálogo filosófico de Voltaire, um longo debate, entre o escritor e uma outra personagem, um velho actor de cinema em situação de “reforma”, sobre temas como o significado do acto de escrever e da arte, a figura de Deus, a relação entre a filosofia e a ciência, a natureza do tempo, a física de Galileu e Newton e a de Hawking, o pensamento e a matéria, o “Big-Bang” e o destino do universo, o determinismo, o caos e a eternidade, etc., etc., ocupando mais de metade do romance com esta ininterrupta exposição de teorias e ideias. É certo que o sentido deste diálogo é contextualizar a motivação que levou o escritor a deixar de escrever, convencer o leitor da “impotência” da criação humana perante as forças do universo e fundamentar a posição do escritor em assumir-se como uma simples partícula de vida num jogo cósmico que não pode dominar. Mas é necessário confessar que esta opção de Michel Rio não está de modo algum bem resolvida e que O Princípio da Incerteza, durante esta longa parte, mais parece uma obra de divulgação científica e filosófica, vagamente romanceada, onde o autor se deleita em desfigurar-se numa pretensiosa ostentação de saberes. Este pretensiosismo é tanto mais acentuado quanto está associado a uma fácil sofisticação de ambientes, num preciosismo esteticista que torna mais nítida a dimensão artificiosa dos diálogos e das situações.

No final, o romance faz uma nova viragem e, através de uma situação de “rodagem” cinematográfica, em que se está a recriar a situação anteriormente vivida entre as duas personagens principais, procura-se analisar a relação interactiva entre a arte e a vida, voltando-se de novo - mas aqui, sim, de forma romanesca - ao ponto de partida filosófico do início do romance sobre o primado da vida sobre a arte.

 Os aspectos mais interessantes de O Princípio da Incerteza confinam-se a uma certa reflexão sobre o medo do fim (o fim da escrita, o fim dos afectos, o fim da vida) e a uma perturbante associação entre o desejo de “diluição de si na paisagem” como perfeito sentido da existência e o desejo sexual como impulso para a “diluição de si no Outro”, assumindo aqui o Outro uma unicidade cósmica. É evidente que esta concepção da sexualidade, tal como aparece formulada no romance, tem uma excessiva e questionável componente “masculina”. De qualquer forma, é nestas páginas que perpassa uma certa “sensualidade” que faz recordar, neste aspecto, a obra de André Pieyre de Mandiargues, e que evidencia as qualidades estilísticas que Michel Rio já bem explanou noutras obras.

                   
Publicado no Público em 1997.

 

Título: O Princípio da Incerteza
Autor: Michel Rio
Tradutor: Magda Bigotte de Figueiredo
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
101 págs.,  esg.

 

 



segunda-feira, 18 de novembro de 2013

E. L. DOCTOROW 1

 
 
 
 

AS PORTAS DO MUNDO ADULTO

 
Em princípios de setenta, quando apareceu The Book of Daniel de E. L. Doctorow, a crítica americana ficou muito bem impressionada com este romance, porque conseguia colocar implícitas preocupações militantes (o tema era - mais uma vez - o caso Rosenberg) numa perspectiva original. O romance centra-se no filho desse casal de cientistas que resolve encetar, dez anos após o famoso julgamento, uma investigação com o intuito de perceber como é que a argumentação judicial destruiu em termos psicológicos os seus pais. Com esta estratégia, The Book of Daniel transmitia toda a perspectiva “interior” do drama dos Rosenberg, revelando, com maior acutilância, a dimensão brutal da situação sociopolítica que os envolveu. E. L. Doctorow iniciava, desse modo, a fase de maturidade da sua obra, onde, na sequência do trabalho de John Dos Passos, procurava problematizar as relações entre ficção e História. De seguida, vai desenvolver esta problemática em Ragtime, o seu romance mais conhecido, em consequência do filme homónimo de Milos Forman, em que associa personagens de ficção e figuras reais e cria, num jogo desmistificador e humorado, relações plausíveis entre estas, dando, ao mesmo tempo, um retrato inovador e estimulante dos anos vinte americanos. O que se pretendia, era, mais uma vez, “inventar a História” para melhor revelar a verdadeira História.
 
Nos últimos tempos, a obra de E. L. Doctorow tem-se orientado para a tentativa de estabelecer correlações entre história pessoal e história colectiva, fazendo um levantamento diversificado dos parâmetros culturais, das linguagens e dos mitos de várias épocas contemporâneas. É este o sentido de livros como Lives of Poets e, em particular, de Feira Mundial, agora traduzido.

 
Este romance, explicitamente autobiográfico, narra a infância do autor até aos dez anos, terminando quando já é previsível a participação americana na II Guerra Mundial. É, pois, um romance sobre o crescimento e a formação, em que se procura expor as interrogações e a gradual penetração do olhar de uma criança no universo adulto. Por conseguinte, o romance é construído como um diálogo de olhares entre a personagem principal e os seus parentes mais próximos, realçando-se, assim, uma diferença de pontos de vista resultante, antes do mais, de uma nova formulação de regras, de construção de outras linguagens, de identificação com outros mitos. Para esta criança, é a dolorosa confirmação de que uma personalidade distinta só se obtém, como sempre, com a afirmação pública da sua “fala” (a redacção que é premiada com uma menção honrosa no concurso da Feira Mundial), com o desvendamento em si próprio dessa dimensão oculta dos adultos que é a sexualidade e com a consciência eufórica de que se é possuidor de um futuro próprio (é essa a descoberta que a criança faz entre os pavilhões da Feira Mundial).

 
A História aparece aqui como o cenário de um passado pessoal que, ao condicioná-lo, o constrói a seu modo. Por isso, a criança de Feira Mundial entende, por fim, que as pessoas são, antes do mais, resultado do profundo imbricamento da História com a história individual; ninguém em particular pode ser apontado como culpado da inconstância e do aventureirismo do seu pai, da amargura e do desencanto da sua mãe, da frustração e da fuga do seu irmão: cada um deles carrega apenas um destino resultante de circunstâncias, externas e internas, impossíveis - provavelmente - de dominar.

 
Como já era bem notório noutros romances de E. L. Doctorow, como Ragtime, Feira Mundial revela uma enorme sobriedade e elegância de estilo, assim como um admirável saber narrativo em encadear as situações e dar-lhes verosimilhança. Mas, considerando outros aspectos, é inegável que o romance fica bem aquém do que a anterior obra do autor permitia esperar. Admira, por exemplo, que, na sua estrutura, nada transpareça sobre as analogias metodológicas que existem entre a reconstrução do passado pessoal e a da História, nem, em particular, sobre a dimensão que, em qualquer delas, existe de ficção: é já hoje inadmissível um optimismo tão ingénuo sobre o papel da memória. Talvez, por isso, o romance permaneça quase sempre numa certa platitude insignificante que o torna monótono.

 
Publicado no Público em 1991.

 

Titulo: Feira Mundial
Autor: E. L. Doctorow
Tradução: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1991
371 págs., € 13,11