segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

CAROL SHIELDS

 
 
 
 

AS PEDRAS DA SALVAÇÃO

 
Será possível caracterizar hoje a literatura canadiana? Não conheço nenhuma tentativa que consiga fugir aos estereótipos que é normal “colar” a tudo o que é originário deste vasto país e estou ciente que qualquer esforço sério para a fazer terá, quase de certeza, um resultado artificioso. Porém, esta literatura tem-se construído ao longo deste século com alguns autores muito relevantes e que obtiveram significativa notoriedade no universo literário em língua inglesa e até francesa. Lembro, por exemplo, e só para referir dentro da anglofonia, nomes como os de Alice Munro, Margaret Atwood, Robertson Davies, Mavis Gallant, John Saul, Carol Shields ou esse fascinante cometa literário que foi Elizabeth Smart. E, mesmo nas gerações mais recentes têm aparecido autores que se destacam nos domínios da ficção: recordo os casos de Anne Michaels, Jane Urquhart, Guy Vanderhaeghe ou essa figura única de escritora - nem que seja pelo tipo de experiência que retrata - que é Evelyn Lau (por exemplo: será determinante, seja em que sentido for, saber que Douglas Coupland, o autor de Geração X, é canadiano?). Esta indefinição da literatura canadiana parece ter uma explicação óbvia: a proximidade socio-económica das populações canadiana e estadunidense tem favorecido, indiscutivelmente, o efeito de rolo compressor que a cultura dos Estados Unidos tem exercido sobre o gigante do Norte, provocando esta descaracterização que a passagem do tempo parece só acentuar. Mesmo a literatura francófona do Québec, que possui alguns autores com uma produção interessante, tem algumas dificuldades em “enfrentar” este efeito da cultura norte-americana e, quando o tenta, tem tendência para “cair nos braços” da cultura francesa.

 
Exemplar desta situação é o caso de Carol Shields, a autora de quem foi agora publicado o romance A Memória das Pedras. Esta escritora, nascida na década de trinta e já com um número significativo de títulos, tem vários romances e “short-stories” passados (pelo menos, em parte) nos Estados Unidos, o que propiciou o seu “perfilhamento” pela cultura norte-americana. Não admira, por isso, por exemplo, que o romance agora traduzido tenha recebido o Governor General’s Award for Fiction (o mais importante prémio literário do Canadá) e, ao mesmo tempo, o Pulitzer Prize, conseguindo, com este último, obter, pela primeira vez, o reconhecimento popular para a sua obra e tornar-se nos Estados Unidos, em consequência do prémio, um "best-seller". A concessão, já no corrente ano, do Orange Prize (o galardão que premeia a obra de autoras que tenham sido publicadas em edição inglesa) ao seu último romance, Larry’s Party, consagrou-a em definitivo e tornou Carol Shields uma das referências fundamentais da literatura contemporânea de expressão inglesa.

 
Deve salientar-se, antes do mais, que A Memória das Pedras é uma espécie de “diário” (esta sua característica é bem evidente no título original: The Stone Diaries) que narra, desde o seu nascimento, no princípio do século, a vida de uma mulher, começando pelo falecimento da mãe (que morreu no parto), atravessando a sinuosa vida do pai, dos sogros, maridos, filhos e netos, enfim, de toda a gente que, de uma forma ou de outra, a obriga a “continuar em frente” até ao fim dos seus dias (com que o romance acaba). Mas um “diário” com um narrador principal distinto da personagem central e que apresenta uma estrutura complexa, repleta de recorrências entre situações, de inúmeros narradores secundários, de imenso material documental (cartas, fotografias, notícias de jornais, discursos, etc.), que manifesta diversos pontos de vista, de quem a rodeia, sobre os acontecimentos e correspondentes estados psicológicos que condicionaram o percurso da sua vida. Percebe-se que Carol Shields pretende demonstrar que a biografia exaustiva de uma figura não é constituída pela simples descrição de um percurso existencial e da visão que dele tem o seu principal agente, mas também do contexto humano que funciona como seu contraponto emocional e afectivo, visto que o “olhar”, expresso ou não, que este último tem dessa figura, condicionará todos os seus actos.   

 
Os elementos que se evidenciam neste romance são, em complemento a um classicismo muito particular de construção, uma invulgar argúcia de observação psicológica e uma belíssima encenação de algumas situações, bem reveladoras do que pode atingir um grande domínio da arte narrativa (estou a recordar, em particular, a memorização que efectua o almocreve judeu albanês ao descobrir, após a morte da mãe no parto da personagem principal, a solidão abissal da criança recém-nascida e como isso o transforma e motiva a dar sentido à vida ou a do velho moribundo que, ao cair de colapso no seu jardim, consegue sentir o calor e a densidade da terra a penetrar na pele das suas costas, antes de morrer). Porém, o que mais impressiona, em A Memória das Pedras, é a perfeita assumpção daquilo que se tornou uma constância no romance contemporâneo: uma obsessiva consciência de que o tempo é não só a “substância” do romance, mas também, como em qualquer manifestação artística, aquilo que o corrói, e que é no seio dessa amálgama que irrompe (ou não) o poder de cristalização da arte narrativa.

 
A forma, contudo, como A Memória das Pedras “trata” o tempo, pretende corresponder, assumidamente, a uma das principais constantes com que o romance americano tem encarado esta problemática. De facto, a ficção americana sempre demonstrou uma magnânima consciência da diversidade da existência humana e uma imperiosa necessidade de testemunhar o carácter épico de qualquer vida. Daí que esta literatura (mais do que qualquer outra) faça ouvir, através das personagens das suas narrativas, um verdadeiro clamor de homens e mulheres, de crianças e velhos que, pelos canteiros deste mundo, amaram e trabalharam, lutaram e sofreram com a dignidade que as circunstâncias lhes fizeram caber em sorte. Talvez que o romance se tenha orientado para este papel de “testemunho” por ser a forma mais “dramática” de reproduzir a imensa diversidade continental do espaço americano; mas por certo que esta orientação o transformou na “pedra” basilar onde se gravam essas existências contra a erosão do tempo: a estratégia narrativa, através da adequação à vida que contém, “endurece-se”, ao mesmo tempo que se torna a “lápide” dessa mesma vida. Neste contexto, o romance de Carol Shields é de uma enorme ambição: A Memória das Pedras, até no seu recurso a um certo classicismo, pretende não só dar continuidade a esta tradição da literatura americana, mas, em particular, construir um modelo narrativo que, de algum modo, dê uma forma “definitiva” a esta concepção do romance.

 
Vive-se, realmente, um século glorioso. Talvez não o seja pelas razões mais previsíveis... mas não há dúvidas que em nenhuma outra época a criação artística – em destaque a literatura, o cinema e a música popular - terá pretendido (e, de certo modo, “conseguido”) dar testemunho de “todos nós”, manifestando o desejo de a todos “salvar” do esquecimento. Estranha época esta em que a literatura se transformou numa das principais vias de “salvação”...

 
Publicado no Público em 1998.

 
Título: A Memória das Pedras
Autor: Carol Shields
Tradução: Maria do Rosário Monteiro
Editor: Editorial Presença
Ano: 1998
317 págs., € 15,86
 
 
 
 
 



terça-feira, 26 de agosto de 2014

PHILIP LARKIN

 
 
 
 
 
 
 
A INTENSIDADE DO TRIVIAL

 
O tempo escoa-se. E, de repente, acreditamos que ”o melhor das nossas vidas” (para parafrasear o título de um conhecido filme de William Wyler) já passou. Quando? Em que momento a vida das pessoas começa a descer a absurda encosta? “Nada se sabe, ou, com um pouco de sorte, julga-se descobrir depois”, responde-nos Philip Larkin. “E o momento é tão subliminar que nem se pode falar de tragédias”. A principal substância das existências está no “inominável” dos quotidianos. ”Como? E a paixão?”, retorquir-lhe-á o leitor. “Pois, essa é a “irrealidade com que preenchemos a nossa realidade”, concluirá o poeta.

 
É esta, em síntese, a convicção que norteia Uma Rapariga no Inverno, a derradeira tentativa romanesca de Philip Larkin, feita ainda ele tinha vinte e seis anos. Depois, a ficção tornou-se, nas próprias palavras do autor, “uma experiência demasiado fatigante e ilusória”. A partir daí, Philip Larkin vai dedicar-se em exclusivo ao trabalho poético.

 
Estava-se em 1947. Os característicos hábitos insulares do povo britânico começavam a recuperar-se, mesmo transformados, da “Batalha do Ar”, da deslocação de milhares de homens para as frentes de guerra, da presença de refugiados oriundos de todos os cantos de Europa continental. Em termos poéticos, a Inglaterra rendia-se aos clamores visionários que Dylan Thomas, o incendiário verbal, o crucificado nas próprias obsessões sexuais e panteístas, declamava por toda a parte, até cair morto por excesso de álcool. Por outro lado, assistia-se à consagração definitiva da obra e da figura de D.H.Lawrence.

 
Neste contexto social e estético, de forma bem silenciosa, começa a erguer-se a obra poética de Philip Larkin e, em paralelo, aparece este romance com sinal explícito de manifesto. Contra o discurso tonitruante dos “apocalipsistas”. Contra os experiencialismos desgastantes dos “modernismos” e “vanguardas” e a sua obsessiva necessidade de “inventar caminhos para parte nenhuma”. E em defesa de um realismo diferente, longe das longas discursividades exaltadas, ajustado às rotinas e hábitos dos dias comuns, contido ao fluir cinzento dos tempos.

 
É óbvio que tal “manifesto” não era motivado por razões primárias de demarcação geracional, mas pela urgência sentida de afirmar uma nova poética que, em moldes clássicos e na aparência simples, fosse atenta à triste ironia dos silêncios, à epicidade dos quotidianos feitos de breves alegrias e desencantos, ao apagamento das existências. E diga-se de passagem, de forma coerente com a sua obra, a vida de Philip Larkin, este poeta que é hoje considerado um dos maiores e dos mais genuinamente britânicos do pós-guerra, foi uma obstinada tentativa de anulação e recuo. A sua biografia confina-se a uma escrita diária (“ao fim do dia, depois de lavar a loiça”, como ele próprio referiu numa entrevista). Para lá disso, sabe-se por algumas declarações públicas, que levou uma existência solitária, exercendo, como a personagem principal de Uma Rapariga no Inverno, actividades de bibliotecário em obscuras cidades de província, que sempre foi conservador (“porque a esquerda é o vicio”), que leu muito (“mas principalmente romances fáceis”) e que a sua grande paixão foi o jazz anterior a Charlie Parker e ao “bop”.

 
Uma Rapariga no Inverno narra, em três partes, dois momentos da humilde existência de uma jovem refugiada de guerra (donde, é coisa que o autor, de forma deliberada, nunca esclarece, dando-lhe uma evidente carga simbólica): um dia de trabalho, na aparência trivial, e as férias que, alguns anos antes, passou em Inglaterra, a convite de um rapaz com quem mantinha uma correspondência regular com vista a aperfeiçoar o domínio do inglês.

 
Esta trama bem vulgar vai, no entanto, servir a Philip Larkin para revelar as intensidades que se ocultam sob as situações triviais, estruturando inteligentemente o romance de modo a tornar bem nítida a força anímica dos processos ilusórios.

 
Assim, na primeira parte, a personagem principal é contextualizada através de várias situações (as conversas banais com as colegas no trabalho, uma discussão com o chefe, o acompanhamento de uma colega ao dentista, etc.) que evidenciam a dimensão de circuito incomunicante, opaco, em que se encerra, de forma quase irremediável, o comum quotidiano. Contudo, percebe-se já aqui que a aparente esterilidade deste quotidiano pode ser transfigurada por breves gestos comunicacionais (o auxílio a uma colega com uma confrangedora dor de dentes) ou pela expectativa de algo (uma carta, no caso do romance) que perspective o retorno a um idílico momento do passado.

 
Na segunda parte, narra-se esse “momento idílico” que, no fundo, funciona como raiz psicológica que permite a subsistência existencial da personagem. E o que se demarca na narração desse momento (as já referidas férias em Inglaterra) é o seu carácter convencional e como as relações que nele se estabeleceram (em particular com Robin, o rapaz que a convidara e de quem, mais tarde, esperará, ansiosa, uma carta) são, antes do mais, um jogo de mal-entendidos e não-ditos. Torna-se, assim, evidente que a sua dimensão idílica nada tem de real, mas que foi originada pela cristalização na memória de uma situação que é encarada, a partir do presente, num contexto determinado de carências.

 
Por fim, na terceira parte, regressa-se ao presente da personagem e a uma aprendizagem e revalorização de todo o real que a rodeia: a descoberta acidental de que a opacidade das existências é sempre ilusória (o seu chefe, até aí a personificação da incomunicabilidade e do estereótipo, transforma-se, de repente, numa perturbante figura que vive uma conflituosa situação afectiva, tendo, por isso, níveis diversos de existência) e que as “exaltadas” comunicabilidades de um encontro no presente ou ainda o carácter idílico de um momento no passado só têm esse sentido num real psicológico.

 
No fundo, de um modo desencantado e com uma amarga ironia, Uma Rapariga no Inverno vem afirmar aquilo que incansavelmente a literatura contemporânea, de uma forma ou de outra, tem repetido: que não existe realidade exterior ao olhar e que este, de um modo inevitável, conflui para o mesmo ponto, tornando-os indissociáveis, verdade e ficção, transformando as existências numa cadeia ininterrupta de convicções e ilusões.

 
Publicado no Expresso em 1990.

 

 
Título: Uma Rapariga no Inverno
Autor: Philip Larkin
Tradução: Ana Maria Chaves
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
248 págs., € 12,59
 
 
 



domingo, 10 de agosto de 2014

LUIS SEPÚLVEDA

 
 
 
 
 

ATREVER-SE A VOAR

 
Há livros que têm a singeleza de procurar responder às necessidades do tempo: é essa a principal qualidade desta fábula que Luis Sepúlveda agora escreveu com o longo título de História De Uma Gaivota E Do Gato Que A Ensinou A Voar. Talvez esta difícil qualidade seja resultante de uma exigência comum às restantes obras deste escritor chileno, que a si próprio se define como escritor militante; mas, como é natural, transparece de uma forma mais nítida numa obra que pretende atingir um público juvenil.

 
A trama deste pequeno livro está quase por completo contida no título. E essa eliminação do efeito surpresa da trama, pela sua enunciação no título, leva forçosamente o leitor a concentrar a sua atenção na fruição estilística, na criatividade dos elementos secundários da narrativa e, em particular, no “ensinamento” da fábula, dando assim realce ao seu valor de parábola.

 
Em termos estilísticos, História De Uma Gaivota... foi nitidamente “trabalhada” para acentuar a função comunicante, neutralizando os seus efeitos simbólicos até ao limite da mais límpida legibilidade. Há que transmitir a urgente consciência de como a tragédia ambiental é já quotidiana do universo infantil e, em paralelo, estimular o espírito de enfrentá-la com um sentido colectivo de entreajuda que auxilie cada um a cumprir o seu lugar no mundo. É esse o objectivo da tolerância - o “ensinamento” principal desta obra, segundo algumas entrevistas do autor. Por isso, o empenhamento do gato do título, em posicionar a gaivota na “ordem das coisas”, só é conseguido porque é assumido pelo “colectivo” dos gatos do porto de Hamburgo e pelo “poeta-humano” que ensina à gaivota a melhor forma de concretizar o seu “sonho”: ousar assumi-lo como destino.

 
No entanto, talvez o melhor “ensinamento” deste livro seja aquele que menos explícito é, mas que mais intimamente está subjacente à sua escrita: como um bom livro sobre gatos, o que nele mais “transpira” é um intenso prazer de viver, onde tudo, desde a aceitação da diversidade dos seres, o afrontamento dos interditos, ou a superação das dificuldades e do sofrimento, parece contribuir para reforçar o júbilo da vida. E talvez seja por isso que esse “gozo” de viver (e, claro, de escrever) transpareça na dimensão lúdica desta pequena obra - é deliciosa a enumeração borgesiana do conteúdo do “Harry - Bazar do Porto” - que consegue colocar nos limites do suportável a sua componente “pedagógica”.

 
Fique clara, porém, uma coisa: este livro não pretende ser mais nem menos do que um livro para a infância. E é um bom livro para a infância. Por isso, parece-nos de uma ridícula e confrangedora banalidade a frase promocional que aparece na cinta que acompanha esta edição. Será que ainda tem algum efeito comercial escrever que um bom livro para a infância é “para jovens dos 8 aos 88”? 

 

Publicado no Público em 1997.

 

 
Título: História De Uma Gaivota E Do Gato Que A Ensinou A Voar
Autor: Luis Sepúlveda
Tradução: Pedro Tamen
Editor: Ed. Asa
Ano: 1997
122 págs.,  € 7,75

 

 



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

WILLIAM TREVOR


 
 
 

O OUTRO SUBLIME

 

Uma tentativa de definição do “mainstream” da ficção irlandesa de expressão inglesa deverá realçar que pretende retratar uma certa rusticidade da ambiência social, das comunidades imobilizadas no tempo, de quotidianos que se prolongam numa apagada mediocridade; e, ao mesmo tempo, que as suas personagens são possuídas por uma permanente ânsia de “fuga”, de procura em contextos sociais alienígenas de condições mais favoráveis à afirmação individual. Esta definição permite talvez perceber a relação de amor/ódio que a maior parte dos autores irlandeses tem com o seu país e que sulca, como uma ferida, toda a sua produção literária. Por outro lado, deixa entender a razão da imediata impressão de “reconhecimento” que o leitor português tem perante os ambientes retratados pelos escritores irlandeses: mesmo com substratos culturais distintos, há, de facto, grandes similitudes entre os actuais contextos socio-culturais dos dois países.

 
Estas constatações são bem nítidas na novela agora traduzida, Noites No Alexandra, de William Trevor, um autor que começou a publicar nos finais da década de sessenta e que, depois de ter obtido vários prémios literários no seu país, tem ultimamente adquirido um grande prestígio além-fronteiras (foi, por exemplo, em 1991, um dos finalistas do Booker Prize, com a sua obra Reading Turgenev).

 
Noites No Alexandra é mais uma narrativa, linear e despretensiosa, sobre a adolescência e o encantamento. O narrador, já com quase sessenta anos, conta como, quando andava no final dos estudos secundários, durante a II Guerra Mundial, se fascinou por uma inglesa, casada com um alemão muito mais velho, “prendendo-se” para o resto da vida. Este adolescente, filho do dono de uma serração numa cidade de província, com o destino já determinado para seguir as pegadas do pai, vislumbra, neste casal, um universo tão fascinante e desconhecido como um “vale encantado”: primeiro, é o seu cosmopolitismo, que lhe dá um comportamento “distinto” e intrigante em relação a comunidade onde se insere; segundo, é a experiência “aventurosa” deste casal,  anómalo em termos históricos, de resistência a animosidade dos respectivos países; terceiro, é a sua relação de afecto, feita de um “jogo” de árduas e radicais dádivas, assente numa “caritas” premente de quem sabe que, a qualquer momento, tudo se interromperá com a descida abrupta dos mantos negros da morte.

 
Ao ficar como herdeiro material deste “ jogo de dádivas”, o narrador sente-se condenado a ser a testemunha ‘fiel” desta “ficção” sublime”. O “Alexandra”, o magnifico cinema que o alemão constrói para oferecer à mulher, permanecerá, ao revelar todas as noites outras “ficções intocáveis”, como o espaço onde “renascerá” o clima mágico e contagiante daquela relação amorosa, como o “vestígio material” do universo que aquele casal veio desvendar no seio daquela comunidade rural.

 
Por contraste, o que mais evidencia esta história simples, de aprazível leitura, de Noites No Alexandra, é a falta de expectativas de uma sociedade - bem encarnada na nostálgica “paixão” do narrador pela relação amorosa de outrem. Ou, noutro registo de leitura, que só há “sublime” na existência dos outros, apreendida, inevitavelmente, como ficção.

 

Publicado no Público em 1993.

 

Titulo: Noites No Alexandra
Autor: William Trevor
Tradução: Emanuel Lourenço Godinho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
113 págs, € 13,12
 
 



domingo, 13 de julho de 2014

PHILIPPE SOLLERS


 
 
 
 

A ALEGRIA DE VIVER

 
A recepção em Portugal da obra de Philippe Sollers é bem sintomática das mutações que nas últimas décadas se têm manifestado nas relações culturais entre Portugal e França. Apesar de envolto nas críticas e nas acusações mais assombrosas, Philippe Sollers é provavelmente um dos intelectuais que mais influenciou os percursos literários e culturais franceses nos últimos quarenta anos. E, contudo, sendo certo que a sua obra é conhecida e (menos) apreciada no sector universitário e por alguns intelectuais, os seus livros mal foram traduzidos no nosso país. Ora, se compararmos este facto com a situação das obras de alguns escritores (talvez menos influentes) de uma geração anterior à sua - que foram bem traduzidas e divulgadas em Portugal -, torna-se evidente - e por si só demonstrativo - de como a cultura francesa deixou de ter um ascendente significativo na cultura portuguesa.

 
Philippe Sollers publicou o seu primeiro romance, Une Curieuse Solitude, ainda nos finais dos anos cinquenta (tinha apenas 22 anos), tendo sido muito bem recebido pela crítica (segundo rezam as crónicas, com rasgados elogios de François Mauriac e de Louis Aragon, o que levou o autor, anos mais tarde, a afirmar que a sua entrada na literatura fora abençoada pelo Vaticano e pelo Kremlin) e obtendo um expressivo sucesso comercial. Mas já com o seu segundo romance, Le Parc (que ganhou o Prémio Médicis), abandona as opções narrativas da primeira obra e abraça claramente as posições estéticas, então em voga, do “nouveau roman”. Inicia então uma carreira de crescente afirmação nos circuitos literários, muito em consequência da fundação, em plena guerra de Argélia, com alguns amigos (o círculo das suas amizades inclui, nesta altura, a sua mulher, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Louis Althusser, Michel Foucault e Guy Debord), da revista “Tel Quel” - que se transformou num instrumento de reflexão e intervenção das vanguardas filosóficas e literárias da França durante os anos sessenta e setenta - e do seu papel decisivo nos comités editoriais das Editions du Seuil. Participa de um modo empenhado em todos os grandes debates ideológicos desta altura (afasta-se do “nouveau roman”, assume-se marxista, intervem no Maio de 68, defende os maoistas), tornando-se uma presença constante em todos os “media” (situação que mantem até aos dias de hoje), com entrevistas, crónicas, crítica literária, polémicas, enquanto, ao mesmo tempo, vai publicando uma obra ensaística e narrativa com posições cada vez mais radicais, tanto em termos formais como ideológicos (a obra mais marcante desta fase é Paradis, constituída por uma gigantesca frase, sem pontuação, em que se entrecruzam, muitas vezes em forma de “pastiche”, todo o tipo de discursos).

 
Porém, no início dos anos oitenta, sai das Editions du Seuil, extingue a revista “Tel Quel” e entra para os quadros das Editions Gallimard, onde funda a revista “L’Infini” e uma colecção homónima (que ainda hoje existem). Inicia então uma fase de ruptura com os seus amigos do passado, cujo marco principal é, sem dúvida, o romance Femmes, um grande sucesso comercial, e onde, no estilo “roman à clef”, expõe as privacidades e os comportamentos de alguns dos seus amigos de outrora (Alberto Moravia, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, etc.), parecendo abandonar as posições do vanguardismo formal que até aí tinha defendido. Ao mesmo tempo, aproxima-se dos chamados “novos filósofos” (nos quais pontua Bernard-Henri Levy) e das suas posições críticas ao “totalitarismo comunista”. É nesta fase – que, com diversos matizes, se prolonga até aos dias de hoje – que cria um leque amplo e diversificado de inimigos e críticos, alguns deles seus ex-amigos e “compagnons de route”, como Angelo Rinaldi, Regis Debray, Patrick Besson, Pierre Bourdieu, etc., passando a ser uma das figuras de intelectual parisiense mais temída e detestada. Contudo, o seu ascendente nos circuitos literários e editoriais continua a crescer, através da sua rede de amizades, participando, sempre de uma forma frontal e provocatória, em todo o tipo de debates, sejam eles literários ou não, sejam eles sobre o mais pequeno “fait-divers” ou sobre a questão mais transcendente (recordo, por exemplo, a sua defesa de algumas encíclicas de João Paulo II ou as suas posições pró-israelitas no conflito do Médio Oriente). Hoje, há quem o acuse, através de denúncias públicas, de “manobrar” por sistema - em favor das suas posições estéticas e ideológicas e das suas relações de amizade - não só júris de prémios literários (é o caso do Prémio Goncourt) como críticos e suplementos literários (é o caso das acusações de compadrio feitas a Josyane Savigneau e ao “Le Monde des Livres”).

 
Creio que Philippe Sollers é uma figura que permite evidenciar bem a complexidade de relações e teias de poder do que se entende hoje como a “instituição literária” (este termo define o conjunto de circuitos e relações que se estabelecem, interactivamente, entre autores, empresas editoras, crítica literária e meios de comunicação social, academias e outras instituições, públicas e privadas, que promovem a criação literária, a leitura e as relações autor/obra/leitor e, por fim, o fortalecimento do tecido empresarial que sustem a produção e a comercialização do livro). De facto, na proporção da importância crescente que as produções culturais vão tendo na vida social, económica e política das sociedades modernas, mais complexa e envolvente se tornam as instituições que lhe servem de suporte e meio de afirmação. Hoje é uma mera ilusão procurar entender – como pretendem ainda alguns defensores “puristas” do fenómeno literário - a literatura sem a “instituição literária” onde, como linfa vital, aquela circula, permitindo o florescimento e afirmação da “instituição literária” e esta, naturalmente, a projecção social e a “canonização” do texto literário e do autor. Figuras, como Philippe Sollers, serão, por isso, inevitáveis emanações da própria “instituição literária”, cujo ascendente deriva da sua criatividade e capacidade crítica, da sua competência literária e, por fim, como tantas outras coisas na vida, do seu poder de sedução. Por isso mesmo, não é aceitável considerar Philippe Sollers como uma espécie de “aberração”, de “tumor maligno” a eliminar para bem da literatura, porque intelectuais como ele são, como já referi, elementos estruturantes e dinamizadores da “instituição literária”: poderá o leitor estar certo que, todo aquele que afirmar o contrário só o está a fazer com o intuito de protagonizar um papel nos conflitos de poder (que, como é natural, no universo literário, assume muitas vezes a face pública de um conflito geracional) que servem de corrente eléctrica na linha condutora da história literária.

 
De qualquer modo, convém fazer um esforço para destrinçar, na figura de Philippe Sollers, o seu papel como “animador” da “instituição literária” do seu papel estrito de escritor. E, neste aspecto, pode dizer-se que a sua obra, após quase cinquenta anos de carreira, é de facto monumental: excluindo prefácios, participação em obras colectivas ou livros de entrevistas, confinando-nos ao universo da narrativa (romances, novelas e diários) e do ensaísmo, este autor já publicou mais de quarenta obras. Razão mais para estranhar que, em Portugal, após a publicação há décadas de O Lago, só agora se tenha publicado uma nova obra romanesca do autor, intitulada A Estrela dos Amantes.

 
Ao invés do que Philippe Sollers afirmou antes da sua publicação, esta narrativa não efectua nenhuma ruptura com a sua produção literária anterior nem com o meio literário parisiense (o autor considerou, numa das suas típicas “boutades” mediáticas, que este livro era um “11 de Setembro da edição”). Pelo contrário, A Estrela dos Amantes é bem representativa da sua mais recente produção literária e do seu fulgor criativo. No fundo, Philippe Sollers retoma aqui o seu mais fiel fascínio por dois “corpus” filosóficos que só formalmente parecem antagónicos: o “espírito das Luzes” e a defesa incondicional do estatuto de livre-pensador (são fascinantes as suas páginas sobre o modo de estar refractário) e, em paralelo, a “meditação oriental”, nas suas vertentes mais vitalistas e que buscam a articulação harmónica entre homem e Natureza. Ao colocar em situação um casal de amantes – um velho escritor e a sua jovem paixão – numa ilha deserta, vivendo em exclusivo o seu amor e em constante divagação, no jogo de cumplicidades, verbal e físico, dos amantes, Philippe Sollers desenvolve, no seu estilo deambulante, uma reflexão sobre a alegria de viver, principalmente de forma sensorial, na sua combinatória com a leitura - apetece dizer, com este livro, que não há prazer de viver sem prazer de ler -, como se esse fosse o princípio vital (não orgânico) para conseguir escapar à ganga cinzenta do tempo e da morte (é curioso, por exemplo, como Philippe Sollers considera que o elemento visual, na sua tentativa de fixação do momento, pertence às “hostes” da morte). É essa tentativa de repudiar e, ao mesmo tempo, delimitar os campos da morte que leva o autor às critícas mais virulentas contra os meios sociopolíticos e literários parisienses e à sua cómoda ambição de se satisfazer com enredos eroto-políticos e em narrativas que reproduzem, até ao esgotamento da palavra, tramas anacrónicas. Com a sua arte habitual de “curto-circuitar” referências culturais e literárias (aparecem aqui, entre outras, as presenças dialogantes de Shakespeare, Rimbaud, Monteverdi e Baudelaire) e efectuar “jeux de mots”, o que torna, contudo, mais fascinante esta narrativa de Philippe Sollers é a sua liricidade imprevista e a capacidade de fazer cintilar as palavras no jogo libertino dos sentidos e das emoções.

 

Publicado no Público em 2003.

 

Título: A Estrela dos Amantes
Autor: Philippe Sollers
Tradução: Paula Reis
Ano: 2003
Editor: Teorema
151 págs.,  esg.
 
 

 
 
 
 



sábado, 24 de maio de 2014

SÁNDOR MÁRAI


 
 
 
A NOSTALGIA DO ROSTO

 

Com amarga ironia, pode afirmar-se que uma certa internacionalização da produção literária deste século foi provocada pelas atitudes persecutórias dos regimes totalitários contra os criadores que não acatavam as suas “normas” políticas ou apenas estéticas. A literatura húngara, por exemplo, desde a I Guerra Mundial e a fracassada República dos Conselhos de Bela Kun, foi particularmente condicionada por regimes políticos, de coloração antagónica, que empurraram muitos dos seus escritores para o exílio. Se esta situação é comum a inúmeras literaturas, no caso da húngara, este período, excepcionalmente prolongado, deu origem a uma autêntica “cisão” e à existência de duas literaturas distintas que, com inúmeras dificuldades, foram procurando “dialogar” entre si. Por isso, os seus escritores de exílio, afastados das “realidades” que lhes serviam de natural “fonte” temática ou cénica, foram impelidos a elaborar obras que utilizam com frequência arquétipos literários e culturais universais, contribuindo desse modo para realçar a vertente cosmopolita da produção narrativa húngara contemporânea.

 
Sándor Márai, o autor do romance A Conversa de Bolzano, é um caso exemplar desta situação: nascido no final do século passado, adquiriu, no seu país, grande prestígio, durante as décadas de trinta e de quarenta, com uma obra narrativa, já na época, extensa e diversificada. No entanto, com o endurecimento das posições ideológicas e estéticas do regime comunista, Sándor Márai, em 1948, foi obrigado a exilar-se, primeiro em Itália, depois nos Estados Unidos, onde veio a morrer, em 1989, já com noventa anos: a maior parte da sua obra está assim marcada pela dolorosa certeza do autor de que nunca mais poderia voltar ao seu país.

 
A Conversa de Bolzano, publicado em 1940 - ainda quando o autor vivia na Hungria –, é bem característico da referida vertente cosmopolita da literatura húngara, visto que Sándor Márai, colocando de novo o pensamento libertino no eixo de uma reflexão sobre a problemática amorosa, resolve “recriar” uma peripécia “vivida” por essa figura paradigmática que é Giacomo Casanova.

 
É sabido que os libertinos entendiam a existência como um gratuito - e, por isso, soberano -  jogo da Razão. Bataille e Klossowski, no seu tempo e a seu modo, provaram bem como os libertinos, no seu individualismo indócil, foram os últimos verdadeiros aristocratas, já que se imaginavam águias de plumagem reluzente a pairar sobre a planície dos sentimentos e dos poderes públicos e a hipnotizar fáceis presas. Num “arranque” prolongado e minucioso, que se estende por mais de metade do romance, Sándor Márai contextualiza o pensamento libertino, realçando como o uso da Razão era entendido como uma esgrima que necessariamente punha em “risco” tudo o que se tinha e era.

 
No entanto, “este” Giacomo Casanova é um homem no início da velhice: tem quarenta anos e não pode recuar, mesmo receando que exista a possibilidade de ter desperdiçado a vida num código de fidelidade a princípios abstractos que pouco mais lhe deu do que venturas físicas e o sulfuroso deleite de manipular as suas vítimas.

 
É precisamente com esta acusação que o conde de Parma o vem alarmar. A entrada em “cena” do conde e da sua mulher, Francesca, desencadeia uma nova dinâmica no romance que se espelha na sua economia narrativa e em outro fulgor estilístico. O contrato, que aquele vem propor a Giacomo Casanova, representa um outro uso da Razão que já não visa encandear na paixão potenciais vítimas, mas antes gerir a dádiva total e inamovível do amor. Porque, segundo uma extensa e fascinante exposição do conde de Parma ao libertino, este sentimento pode ficar esvanecido sob o carácter ofuscante da paixão, já que ela dilui tudo o que lhe é exterior. Por isso, só a arma subtil da Razão pode lancetar a paixão, supurando essa “doença” da alma e deixando o convalescente gradualmente receptivo ao apoio constante do amor.

 
É contra esta pretensa omnisciência da Razão que se rebela a condessa de Parma. Para ela, os “negócios” dos homens esquecem que o impulso amoroso se gera “noutro lugar”, onde não tem sentido a vontade e o querer individuais: é a obsessiva necessidade de complemento que recria o andrógino primordial, onde os papéis sexuais são intermutáveis até se fundirem no ovo gerador da vida. Por isso, recusar-se a esse impulso, é ferir-se de morte, é condenar-se a nunca descobrir o próprio rosto, negando-se à transcendência do destino.

 
Porém, é esta “demasia” (para utilizar um termo de forte conotação de uma resposta de Giacomo Casanova à condessa) que remete para a utopia o lugar do amor. Como confirma a magnífica encenação da entrevista da condessa de Parma ao libertino, haverá sempre uma “máscara” sobre o “rosto” inacessível do amor. O rosto não é senão uma infinitude de “máscaras” sobrepostas: só pela imperfeita linguagem (pela fragilidade dos códigos) se poderá, de forma nostálgica, caminhar para essa vida que desde sempre se perdeu.

 
Publicado no Público em 1993.

 
Título: A Conversa de Bolzano
Autor: Sándor Márai
Tradutor: Miguel Serras Pereira
Editor: Teorema
Ano: 1993
255 págs., esg.
 
 



segunda-feira, 17 de março de 2014

CHRISTINA SCHWARZ

 



SOB A SUPERFÍCIE GELADA DA MORTE

 
Há já algum tempo que os estudos literários convencionaram que existe, na literatura narrativa americana, uma linha mais subterrânea, definida pelas obras de Hawthorne, Melville e Faulkner, que, pela sua tipificação, funcionaria como uma espécie de contraponto ao “mainstream” mais visível, marcado pelas obras de Twain, Crane e Hemingway. O que é certo, e regressando à primeira linha referida, é que hoje, passados mais de oitenta anos da publicação das primeiras obras de William Faulkner, parece que as obras que balizaram esta linha, anteriores à produção deste autor, não passaram de humús sedimentado que alimentou a frondosa árvore da sua actividade romanesca; e que, por outro lado, toda a criação literária nesta linha que, nos anos precedentes, foi aparecendo pela pena de diversos autores, nada mais fez do que evidenciar a espessa sombra tutelar do escritor de Oxford, Mississipi.
 
Estas considerações vêm a propósito da publicação no nosso país do primeiro romance de uma recente autora norte-americana, Christina Schwarz, intitulado A Noite Em Que Me Afoguei (o título original é Drowning Ruth). De facto, desde as suas primeiras páginas que o leitor pressente nelas o perfil fantasmagórico de Faulkner... E, o que é mais interessante, não tanto devido a aspectos superficiais, como, por exemplo, os cénicos (o romance desta autora desenrola-se no frio Wisconsin e não no ancestral Sul) ou os relacionados com os conflitos raciais (A Noite Em Que Me Afoguei passa-se numa comunidade rural exclusivamente branca nas primeiras décadas do século XX), mas devido a alusões mais complexas: o aproveitamento de um universo claustrofóbico, uma perspectiva invía na caracterização das personagens, o desenrolar da trama através de um “sopro” que ascende ao registo mítico (para não dizer bíblico...), etc.
 
Gostaria de afirmar, antes do mais, que há já algum tempo que o autor destas linhas não lia uma primeira obra que, de imediato, o impressionasse de forma tão positiva, tendo em consideração o domínio das técnicas narrativas que a autora revela, mas, em particular, pela forma como as coloca ao serviço de uma obra inquestionavelmente poderosa pela caracterização das personagens e pela dimensão trágica que envolve o seu destino. Por outro lado, A Noite Em Que Me Afoguei integra-se numa constante da literatura americana que, goste-se ou não, lhe deu algumas das suas obras-primas: a narrativa de percursos de personagens que, contra a factuidade adversa, se conseguem transcender em termos éticos.

Mesmo para quem minimize este tipo de etiquetas, é importante salientar que este primeiro romance de Christina Schwarz é inegavelmente feminino. E tal não se deve tanto ao facto desta obra se centrar em quatro mulheres, mas mais porque toda a sua problemática é resultante de uma reflexão dramática sobre a maternidade e qual a sua relação com a sexualidade, a reprodução e a morte. De certo modo, a enfermeira Amanda Starkey (uma personagem arquitectada de uma forma memorável), iniciada no terrível esplendor da Morte ao tratar dos feridos e dos estropiados da Grande Guerra, irá perceber que esta pode exigir-lhe compromissos éticos que a irão enredar num novelo que lhe condicionará toda a existência. De facto, esse “esplendor” estigmará o corpo desta personagem (tocando-o com o dedo da loucura, mas, em especial, punindo-lhe o desejo amoroso com uma gravidez indesejada e condenável em termos sociais) e irá vinculá-lo à maternidade de uma “filha” que a própria Morte lhe deixou nos braços.

 A Morte, a personagem nuclear deste romance, coisifica-se no lago Nagawaukee -  quase sempre gelado, engolindo corpos e fazendo emergir espectrais rostos - em redor do qual se vai desfiando e desfibrando a existência destas mulheres. Mais: a presença deste lago é tão forte que as suas águas parecem constantemente galgar as suas margens, banhando e introduzindo-se nos interstícios e nas “dobras” do destino destas personagens, “afogando-as” e impondo-lhes atitudes e pensamentos que se apresentam como que submersos na superfície de gelo da Morte.
 
 Os sinais de redenção com que acaba A Noite Em Que Me Afoguei parecem resultar, curiosamente, da descoberta, por parte das personagens femininas sobreviventes, de um circuito, cheio de escolhos e de sentimentos contraditórios, de cumplicidades e dependências que, transmitido, de geração para geração, entre as mulheres, funcionaria como um elo comprometido com a espécie - de forma a garantir a sua sobrevivência - e que, no fundo, daria sentido à instituição familiar.
 
 Por fim, deve ser salientada a originalidade da construção “gestáltica” das personagens deste romance (em particular, a já referida Amanda e a sua sobrinha Ruth), a forma, na aparência, fragmentária e sinuosa como se desenrola a narrativa – sempre contrapontada por “olhares introspectivos” das personagens que, ao mesmo tempo, desfiguram e clarificam os acontecimentos – e principalmente a forma como a autora sustenta toda a narrativa até à revelação – apenas no final - da tragédia que determinou o destino das personagens, conseguindo, com esse efeito, transmitir-lhes uma auréola que as transfigura, carregando-as de um valor simbólico que as transforma em arquétipos de todas as mulheres cuja existência se sujeitou ao seu papel materno.

 

Publicado no Público em 2003.

 
(Foto da Autora de Deone Jahnke)
 

Título: A Noite Em Que Me Afoguei
Autor: Christina Schwarz
Editor: Editorial Notícias
Tradutor: José Luís Luna
331 págs.,  esg.





domingo, 2 de março de 2014

NATSUME SOSEKI





QUASE INÚTIL

 
Na segunda metade do séc. XIX, o Japão, na sequência de um atribulado processo social e político, que provocou a desagregação da antiga ordem feudal, abriu-se aos “encantos” do Ocidente: inicia a sua revolução industrial, cria um frágil parlamentarismo, consolida a sua abertura comercial e reforça o seu ascendente económico e político em todo o Extremo Oriente. A era Meiji - nome por que ficou conhecido este período – marca também, em termos culturais, o início do desaparecimento do Japão tradicional. Os escritores deste período, como Ogai Mori, Katai Tayama e Natsume Soseki – de quem uma nova editora traduziu a obra Através da Vidraça -,  com o  intuito de conseguir um estatuto mais digno para o romance, dedicam-se a estudar e a traduzir a literatura europeia, procurando “importar’ uma maior maleabilidade narrativa: foram estes os primeiros escritores a aproximar a sua produção das formas literárias ocidentais, caminho esse que, mau grado, bom grado, se prolongou até aos nossos dias e que permitiu que a geração seguinte, a de Ryunosuke Akutagawa, de Junichiro Tanizaki e Yasunari Kawabata, fosse mais facilmente reconhecida e consagrada no Ocidente.

 
Natsume Soseki, depois de ter estudado língua e literatura inglesas, vive alguns anos em Londres, a aprofundar os conhecimentos da literatura europeia e das recentes ciências humanas. De regresso ao Japão, ingressa na Universidade de Tóquio, onde elabora algumas obras sobre teoria e crítica literária. Publica a sua primeira narrativa em 1905-06, obtendo uma enorme popularidade (que ainda hoje parece perdurar); porém, é depois de abandonar o ensino que Soseki inicia a fase mais produtiva e conseguida da sua criação romanesca. De saúde frágil, vive os últimos anos com cíclicas crises gástricas que o deixam incapaz para trabalhar, morrendo em 1916, com menos de cinquenta anos.
 
As sua obras, publicadas quase todas em folhetim, foram sempre orientadas segundo uma exigência de sinceridade que motivou o autor a um permanente confronto com os modelos narrativos convencionais e com as técnicas estilísticas tradicionais: o resultado é, muitas vezes, um conjunto heteróclito de formas e estilos, desde o “haiku” ao monólogo, amalgamados na mesma obra. Não é estranha a estas experiências -  que se equilibram na fase de maturidade de Soseki -  a circunstância da profissionalização do escritor ser adquirida (como era habitual, nesta época, no Japão) através da colaboração jornalística. Muitas vezes, esta colaboração alternava entre o folhetim romanesco e a crónica, e este facto tem, na literatura japonesa e na obra de Soseki, uma importância que não é apenas anedótica: é que a crónica, pela forma pessoalizada como reflectia assuntos íntimos e públicos, contribuiu para dar uma nova capacidade expressiva à subjectividade e, por outro lado, para introduzir uma estética naturalista na abordagem das problemáticas da realidade social.

 
Através da Vidraça é um livro de crónicas. Mas crónicas que, como Soseki expõe no inicio da obra, são originadas por vivências pessoais: enclausurado pela doença, o autor busca, na memória ou em acontecimentos banais do presente, situações que exemplifiquem ou contribuam para reflectir sobre algumas das inquietações constantes e comuns a qualquer homem (o amor e o tempo, a amizade e a solidão, o envelhecimento e a infância, a doença e a morte).

 
Através da Vidraça está bem longe de ser uma das obras mais importantes de Soseki. E aqui tem de se salientar que os “vícios”, que enfermam esta edição, fazem dela um aberrante equívoco: primeiro, não só esta obra foi mal escolhida para introduzir o “interesse” por Soseki em Portugal, como a sua publicação, sem qualquer tipo de enquadramento, pouco ou nenhum sentido terá para o leitor português; segundo, é lamentável que não exista nenhuma referência sobre qual a língua que serviu de base à tradução; por fim, a indicação de género “romance”, na capa de uma colectânea de crónicas, faz desta edição uma condenável mistificação. Não há dúvida que é um lamentável começo para uma editora.
 

Publicado no Público em 1993.

 

 
Título: Através  da Vidraça
Autor: Natsume Soseki
Tradução e Notas: José Caselas
Editor: Usus Editora
133 págs.,  esg.