segunda-feira, 17 de março de 2014

CHRISTINA SCHWARZ

 



SOB A SUPERFÍCIE GELADA DA MORTE

 
Há já algum tempo que os estudos literários convencionaram que existe, na literatura narrativa americana, uma linha mais subterrânea, definida pelas obras de Hawthorne, Melville e Faulkner, que, pela sua tipificação, funcionaria como uma espécie de contraponto ao “mainstream” mais visível, marcado pelas obras de Twain, Crane e Hemingway. O que é certo, e regressando à primeira linha referida, é que hoje, passados mais de oitenta anos da publicação das primeiras obras de William Faulkner, parece que as obras que balizaram esta linha, anteriores à produção deste autor, não passaram de humús sedimentado que alimentou a frondosa árvore da sua actividade romanesca; e que, por outro lado, toda a criação literária nesta linha que, nos anos precedentes, foi aparecendo pela pena de diversos autores, nada mais fez do que evidenciar a espessa sombra tutelar do escritor de Oxford, Mississipi.
 
Estas considerações vêm a propósito da publicação no nosso país do primeiro romance de uma recente autora norte-americana, Christina Schwarz, intitulado A Noite Em Que Me Afoguei (o título original é Drowning Ruth). De facto, desde as suas primeiras páginas que o leitor pressente nelas o perfil fantasmagórico de Faulkner... E, o que é mais interessante, não tanto devido a aspectos superficiais, como, por exemplo, os cénicos (o romance desta autora desenrola-se no frio Wisconsin e não no ancestral Sul) ou os relacionados com os conflitos raciais (A Noite Em Que Me Afoguei passa-se numa comunidade rural exclusivamente branca nas primeiras décadas do século XX), mas devido a alusões mais complexas: o aproveitamento de um universo claustrofóbico, uma perspectiva invía na caracterização das personagens, o desenrolar da trama através de um “sopro” que ascende ao registo mítico (para não dizer bíblico...), etc.
 
Gostaria de afirmar, antes do mais, que há já algum tempo que o autor destas linhas não lia uma primeira obra que, de imediato, o impressionasse de forma tão positiva, tendo em consideração o domínio das técnicas narrativas que a autora revela, mas, em particular, pela forma como as coloca ao serviço de uma obra inquestionavelmente poderosa pela caracterização das personagens e pela dimensão trágica que envolve o seu destino. Por outro lado, A Noite Em Que Me Afoguei integra-se numa constante da literatura americana que, goste-se ou não, lhe deu algumas das suas obras-primas: a narrativa de percursos de personagens que, contra a factuidade adversa, se conseguem transcender em termos éticos.

Mesmo para quem minimize este tipo de etiquetas, é importante salientar que este primeiro romance de Christina Schwarz é inegavelmente feminino. E tal não se deve tanto ao facto desta obra se centrar em quatro mulheres, mas mais porque toda a sua problemática é resultante de uma reflexão dramática sobre a maternidade e qual a sua relação com a sexualidade, a reprodução e a morte. De certo modo, a enfermeira Amanda Starkey (uma personagem arquitectada de uma forma memorável), iniciada no terrível esplendor da Morte ao tratar dos feridos e dos estropiados da Grande Guerra, irá perceber que esta pode exigir-lhe compromissos éticos que a irão enredar num novelo que lhe condicionará toda a existência. De facto, esse “esplendor” estigmará o corpo desta personagem (tocando-o com o dedo da loucura, mas, em especial, punindo-lhe o desejo amoroso com uma gravidez indesejada e condenável em termos sociais) e irá vinculá-lo à maternidade de uma “filha” que a própria Morte lhe deixou nos braços.

 A Morte, a personagem nuclear deste romance, coisifica-se no lago Nagawaukee -  quase sempre gelado, engolindo corpos e fazendo emergir espectrais rostos - em redor do qual se vai desfiando e desfibrando a existência destas mulheres. Mais: a presença deste lago é tão forte que as suas águas parecem constantemente galgar as suas margens, banhando e introduzindo-se nos interstícios e nas “dobras” do destino destas personagens, “afogando-as” e impondo-lhes atitudes e pensamentos que se apresentam como que submersos na superfície de gelo da Morte.
 
 Os sinais de redenção com que acaba A Noite Em Que Me Afoguei parecem resultar, curiosamente, da descoberta, por parte das personagens femininas sobreviventes, de um circuito, cheio de escolhos e de sentimentos contraditórios, de cumplicidades e dependências que, transmitido, de geração para geração, entre as mulheres, funcionaria como um elo comprometido com a espécie - de forma a garantir a sua sobrevivência - e que, no fundo, daria sentido à instituição familiar.
 
 Por fim, deve ser salientada a originalidade da construção “gestáltica” das personagens deste romance (em particular, a já referida Amanda e a sua sobrinha Ruth), a forma, na aparência, fragmentária e sinuosa como se desenrola a narrativa – sempre contrapontada por “olhares introspectivos” das personagens que, ao mesmo tempo, desfiguram e clarificam os acontecimentos – e principalmente a forma como a autora sustenta toda a narrativa até à revelação – apenas no final - da tragédia que determinou o destino das personagens, conseguindo, com esse efeito, transmitir-lhes uma auréola que as transfigura, carregando-as de um valor simbólico que as transforma em arquétipos de todas as mulheres cuja existência se sujeitou ao seu papel materno.

 

Publicado no Público em 2003.

 
(Foto da Autora de Deone Jahnke)
 

Título: A Noite Em Que Me Afoguei
Autor: Christina Schwarz
Editor: Editorial Notícias
Tradutor: José Luís Luna
331 págs.,  esg.





domingo, 2 de março de 2014

NATSUME SOSEKI





QUASE INÚTIL

 
Na segunda metade do séc. XIX, o Japão, na sequência de um atribulado processo social e político, que provocou a desagregação da antiga ordem feudal, abriu-se aos “encantos” do Ocidente: inicia a sua revolução industrial, cria um frágil parlamentarismo, consolida a sua abertura comercial e reforça o seu ascendente económico e político em todo o Extremo Oriente. A era Meiji - nome por que ficou conhecido este período – marca também, em termos culturais, o início do desaparecimento do Japão tradicional. Os escritores deste período, como Ogai Mori, Katai Tayama e Natsume Soseki – de quem uma nova editora traduziu a obra Através da Vidraça -,  com o  intuito de conseguir um estatuto mais digno para o romance, dedicam-se a estudar e a traduzir a literatura europeia, procurando “importar’ uma maior maleabilidade narrativa: foram estes os primeiros escritores a aproximar a sua produção das formas literárias ocidentais, caminho esse que, mau grado, bom grado, se prolongou até aos nossos dias e que permitiu que a geração seguinte, a de Ryunosuke Akutagawa, de Junichiro Tanizaki e Yasunari Kawabata, fosse mais facilmente reconhecida e consagrada no Ocidente.

 
Natsume Soseki, depois de ter estudado língua e literatura inglesas, vive alguns anos em Londres, a aprofundar os conhecimentos da literatura europeia e das recentes ciências humanas. De regresso ao Japão, ingressa na Universidade de Tóquio, onde elabora algumas obras sobre teoria e crítica literária. Publica a sua primeira narrativa em 1905-06, obtendo uma enorme popularidade (que ainda hoje parece perdurar); porém, é depois de abandonar o ensino que Soseki inicia a fase mais produtiva e conseguida da sua criação romanesca. De saúde frágil, vive os últimos anos com cíclicas crises gástricas que o deixam incapaz para trabalhar, morrendo em 1916, com menos de cinquenta anos.
 
As sua obras, publicadas quase todas em folhetim, foram sempre orientadas segundo uma exigência de sinceridade que motivou o autor a um permanente confronto com os modelos narrativos convencionais e com as técnicas estilísticas tradicionais: o resultado é, muitas vezes, um conjunto heteróclito de formas e estilos, desde o “haiku” ao monólogo, amalgamados na mesma obra. Não é estranha a estas experiências -  que se equilibram na fase de maturidade de Soseki -  a circunstância da profissionalização do escritor ser adquirida (como era habitual, nesta época, no Japão) através da colaboração jornalística. Muitas vezes, esta colaboração alternava entre o folhetim romanesco e a crónica, e este facto tem, na literatura japonesa e na obra de Soseki, uma importância que não é apenas anedótica: é que a crónica, pela forma pessoalizada como reflectia assuntos íntimos e públicos, contribuiu para dar uma nova capacidade expressiva à subjectividade e, por outro lado, para introduzir uma estética naturalista na abordagem das problemáticas da realidade social.

 
Através da Vidraça é um livro de crónicas. Mas crónicas que, como Soseki expõe no inicio da obra, são originadas por vivências pessoais: enclausurado pela doença, o autor busca, na memória ou em acontecimentos banais do presente, situações que exemplifiquem ou contribuam para reflectir sobre algumas das inquietações constantes e comuns a qualquer homem (o amor e o tempo, a amizade e a solidão, o envelhecimento e a infância, a doença e a morte).

 
Através da Vidraça está bem longe de ser uma das obras mais importantes de Soseki. E aqui tem de se salientar que os “vícios”, que enfermam esta edição, fazem dela um aberrante equívoco: primeiro, não só esta obra foi mal escolhida para introduzir o “interesse” por Soseki em Portugal, como a sua publicação, sem qualquer tipo de enquadramento, pouco ou nenhum sentido terá para o leitor português; segundo, é lamentável que não exista nenhuma referência sobre qual a língua que serviu de base à tradução; por fim, a indicação de género “romance”, na capa de uma colectânea de crónicas, faz desta edição uma condenável mistificação. Não há dúvida que é um lamentável começo para uma editora.
 

Publicado no Público em 1993.

 

 
Título: Através  da Vidraça
Autor: Natsume Soseki
Tradução e Notas: José Caselas
Editor: Usus Editora
133 págs.,  esg.