domingo, 13 de julho de 2014

PHILIPPE SOLLERS


 
 
 
 

A ALEGRIA DE VIVER

 
A recepção em Portugal da obra de Philippe Sollers é bem sintomática das mutações que nas últimas décadas se têm manifestado nas relações culturais entre Portugal e França. Apesar de envolto nas críticas e nas acusações mais assombrosas, Philippe Sollers é provavelmente um dos intelectuais que mais influenciou os percursos literários e culturais franceses nos últimos quarenta anos. E, contudo, sendo certo que a sua obra é conhecida e (menos) apreciada no sector universitário e por alguns intelectuais, os seus livros mal foram traduzidos no nosso país. Ora, se compararmos este facto com a situação das obras de alguns escritores (talvez menos influentes) de uma geração anterior à sua - que foram bem traduzidas e divulgadas em Portugal -, torna-se evidente - e por si só demonstrativo - de como a cultura francesa deixou de ter um ascendente significativo na cultura portuguesa.

 
Philippe Sollers publicou o seu primeiro romance, Une Curieuse Solitude, ainda nos finais dos anos cinquenta (tinha apenas 22 anos), tendo sido muito bem recebido pela crítica (segundo rezam as crónicas, com rasgados elogios de François Mauriac e de Louis Aragon, o que levou o autor, anos mais tarde, a afirmar que a sua entrada na literatura fora abençoada pelo Vaticano e pelo Kremlin) e obtendo um expressivo sucesso comercial. Mas já com o seu segundo romance, Le Parc (que ganhou o Prémio Médicis), abandona as opções narrativas da primeira obra e abraça claramente as posições estéticas, então em voga, do “nouveau roman”. Inicia então uma carreira de crescente afirmação nos circuitos literários, muito em consequência da fundação, em plena guerra de Argélia, com alguns amigos (o círculo das suas amizades inclui, nesta altura, a sua mulher, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Louis Althusser, Michel Foucault e Guy Debord), da revista “Tel Quel” - que se transformou num instrumento de reflexão e intervenção das vanguardas filosóficas e literárias da França durante os anos sessenta e setenta - e do seu papel decisivo nos comités editoriais das Editions du Seuil. Participa de um modo empenhado em todos os grandes debates ideológicos desta altura (afasta-se do “nouveau roman”, assume-se marxista, intervem no Maio de 68, defende os maoistas), tornando-se uma presença constante em todos os “media” (situação que mantem até aos dias de hoje), com entrevistas, crónicas, crítica literária, polémicas, enquanto, ao mesmo tempo, vai publicando uma obra ensaística e narrativa com posições cada vez mais radicais, tanto em termos formais como ideológicos (a obra mais marcante desta fase é Paradis, constituída por uma gigantesca frase, sem pontuação, em que se entrecruzam, muitas vezes em forma de “pastiche”, todo o tipo de discursos).

 
Porém, no início dos anos oitenta, sai das Editions du Seuil, extingue a revista “Tel Quel” e entra para os quadros das Editions Gallimard, onde funda a revista “L’Infini” e uma colecção homónima (que ainda hoje existem). Inicia então uma fase de ruptura com os seus amigos do passado, cujo marco principal é, sem dúvida, o romance Femmes, um grande sucesso comercial, e onde, no estilo “roman à clef”, expõe as privacidades e os comportamentos de alguns dos seus amigos de outrora (Alberto Moravia, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, etc.), parecendo abandonar as posições do vanguardismo formal que até aí tinha defendido. Ao mesmo tempo, aproxima-se dos chamados “novos filósofos” (nos quais pontua Bernard-Henri Levy) e das suas posições críticas ao “totalitarismo comunista”. É nesta fase – que, com diversos matizes, se prolonga até aos dias de hoje – que cria um leque amplo e diversificado de inimigos e críticos, alguns deles seus ex-amigos e “compagnons de route”, como Angelo Rinaldi, Regis Debray, Patrick Besson, Pierre Bourdieu, etc., passando a ser uma das figuras de intelectual parisiense mais temída e detestada. Contudo, o seu ascendente nos circuitos literários e editoriais continua a crescer, através da sua rede de amizades, participando, sempre de uma forma frontal e provocatória, em todo o tipo de debates, sejam eles literários ou não, sejam eles sobre o mais pequeno “fait-divers” ou sobre a questão mais transcendente (recordo, por exemplo, a sua defesa de algumas encíclicas de João Paulo II ou as suas posições pró-israelitas no conflito do Médio Oriente). Hoje, há quem o acuse, através de denúncias públicas, de “manobrar” por sistema - em favor das suas posições estéticas e ideológicas e das suas relações de amizade - não só júris de prémios literários (é o caso do Prémio Goncourt) como críticos e suplementos literários (é o caso das acusações de compadrio feitas a Josyane Savigneau e ao “Le Monde des Livres”).

 
Creio que Philippe Sollers é uma figura que permite evidenciar bem a complexidade de relações e teias de poder do que se entende hoje como a “instituição literária” (este termo define o conjunto de circuitos e relações que se estabelecem, interactivamente, entre autores, empresas editoras, crítica literária e meios de comunicação social, academias e outras instituições, públicas e privadas, que promovem a criação literária, a leitura e as relações autor/obra/leitor e, por fim, o fortalecimento do tecido empresarial que sustem a produção e a comercialização do livro). De facto, na proporção da importância crescente que as produções culturais vão tendo na vida social, económica e política das sociedades modernas, mais complexa e envolvente se tornam as instituições que lhe servem de suporte e meio de afirmação. Hoje é uma mera ilusão procurar entender – como pretendem ainda alguns defensores “puristas” do fenómeno literário - a literatura sem a “instituição literária” onde, como linfa vital, aquela circula, permitindo o florescimento e afirmação da “instituição literária” e esta, naturalmente, a projecção social e a “canonização” do texto literário e do autor. Figuras, como Philippe Sollers, serão, por isso, inevitáveis emanações da própria “instituição literária”, cujo ascendente deriva da sua criatividade e capacidade crítica, da sua competência literária e, por fim, como tantas outras coisas na vida, do seu poder de sedução. Por isso mesmo, não é aceitável considerar Philippe Sollers como uma espécie de “aberração”, de “tumor maligno” a eliminar para bem da literatura, porque intelectuais como ele são, como já referi, elementos estruturantes e dinamizadores da “instituição literária”: poderá o leitor estar certo que, todo aquele que afirmar o contrário só o está a fazer com o intuito de protagonizar um papel nos conflitos de poder (que, como é natural, no universo literário, assume muitas vezes a face pública de um conflito geracional) que servem de corrente eléctrica na linha condutora da história literária.

 
De qualquer modo, convém fazer um esforço para destrinçar, na figura de Philippe Sollers, o seu papel como “animador” da “instituição literária” do seu papel estrito de escritor. E, neste aspecto, pode dizer-se que a sua obra, após quase cinquenta anos de carreira, é de facto monumental: excluindo prefácios, participação em obras colectivas ou livros de entrevistas, confinando-nos ao universo da narrativa (romances, novelas e diários) e do ensaísmo, este autor já publicou mais de quarenta obras. Razão mais para estranhar que, em Portugal, após a publicação há décadas de O Lago, só agora se tenha publicado uma nova obra romanesca do autor, intitulada A Estrela dos Amantes.

 
Ao invés do que Philippe Sollers afirmou antes da sua publicação, esta narrativa não efectua nenhuma ruptura com a sua produção literária anterior nem com o meio literário parisiense (o autor considerou, numa das suas típicas “boutades” mediáticas, que este livro era um “11 de Setembro da edição”). Pelo contrário, A Estrela dos Amantes é bem representativa da sua mais recente produção literária e do seu fulgor criativo. No fundo, Philippe Sollers retoma aqui o seu mais fiel fascínio por dois “corpus” filosóficos que só formalmente parecem antagónicos: o “espírito das Luzes” e a defesa incondicional do estatuto de livre-pensador (são fascinantes as suas páginas sobre o modo de estar refractário) e, em paralelo, a “meditação oriental”, nas suas vertentes mais vitalistas e que buscam a articulação harmónica entre homem e Natureza. Ao colocar em situação um casal de amantes – um velho escritor e a sua jovem paixão – numa ilha deserta, vivendo em exclusivo o seu amor e em constante divagação, no jogo de cumplicidades, verbal e físico, dos amantes, Philippe Sollers desenvolve, no seu estilo deambulante, uma reflexão sobre a alegria de viver, principalmente de forma sensorial, na sua combinatória com a leitura - apetece dizer, com este livro, que não há prazer de viver sem prazer de ler -, como se esse fosse o princípio vital (não orgânico) para conseguir escapar à ganga cinzenta do tempo e da morte (é curioso, por exemplo, como Philippe Sollers considera que o elemento visual, na sua tentativa de fixação do momento, pertence às “hostes” da morte). É essa tentativa de repudiar e, ao mesmo tempo, delimitar os campos da morte que leva o autor às critícas mais virulentas contra os meios sociopolíticos e literários parisienses e à sua cómoda ambição de se satisfazer com enredos eroto-políticos e em narrativas que reproduzem, até ao esgotamento da palavra, tramas anacrónicas. Com a sua arte habitual de “curto-circuitar” referências culturais e literárias (aparecem aqui, entre outras, as presenças dialogantes de Shakespeare, Rimbaud, Monteverdi e Baudelaire) e efectuar “jeux de mots”, o que torna, contudo, mais fascinante esta narrativa de Philippe Sollers é a sua liricidade imprevista e a capacidade de fazer cintilar as palavras no jogo libertino dos sentidos e das emoções.

 

Publicado no Público em 2003.

 

Título: A Estrela dos Amantes
Autor: Philippe Sollers
Tradução: Paula Reis
Ano: 2003
Editor: Teorema
151 págs.,  esg.