segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

CAROL SHIELDS

 
 
 
 

AS PEDRAS DA SALVAÇÃO

 
Será possível caracterizar hoje a literatura canadiana? Não conheço nenhuma tentativa que consiga fugir aos estereótipos que é normal “colar” a tudo o que é originário deste vasto país e estou ciente que qualquer esforço sério para a fazer terá, quase de certeza, um resultado artificioso. Porém, esta literatura tem-se construído ao longo deste século com alguns autores muito relevantes e que obtiveram significativa notoriedade no universo literário em língua inglesa e até francesa. Lembro, por exemplo, e só para referir dentro da anglofonia, nomes como os de Alice Munro, Margaret Atwood, Robertson Davies, Mavis Gallant, John Saul, Carol Shields ou esse fascinante cometa literário que foi Elizabeth Smart. E, mesmo nas gerações mais recentes têm aparecido autores que se destacam nos domínios da ficção: recordo os casos de Anne Michaels, Jane Urquhart, Guy Vanderhaeghe ou essa figura única de escritora - nem que seja pelo tipo de experiência que retrata - que é Evelyn Lau (por exemplo: será determinante, seja em que sentido for, saber que Douglas Coupland, o autor de Geração X, é canadiano?). Esta indefinição da literatura canadiana parece ter uma explicação óbvia: a proximidade socio-económica das populações canadiana e estadunidense tem favorecido, indiscutivelmente, o efeito de rolo compressor que a cultura dos Estados Unidos tem exercido sobre o gigante do Norte, provocando esta descaracterização que a passagem do tempo parece só acentuar. Mesmo a literatura francófona do Québec, que possui alguns autores com uma produção interessante, tem algumas dificuldades em “enfrentar” este efeito da cultura norte-americana e, quando o tenta, tem tendência para “cair nos braços” da cultura francesa.

 
Exemplar desta situação é o caso de Carol Shields, a autora de quem foi agora publicado o romance A Memória das Pedras. Esta escritora, nascida na década de trinta e já com um número significativo de títulos, tem vários romances e “short-stories” passados (pelo menos, em parte) nos Estados Unidos, o que propiciou o seu “perfilhamento” pela cultura norte-americana. Não admira, por isso, por exemplo, que o romance agora traduzido tenha recebido o Governor General’s Award for Fiction (o mais importante prémio literário do Canadá) e, ao mesmo tempo, o Pulitzer Prize, conseguindo, com este último, obter, pela primeira vez, o reconhecimento popular para a sua obra e tornar-se nos Estados Unidos, em consequência do prémio, um "best-seller". A concessão, já no corrente ano, do Orange Prize (o galardão que premeia a obra de autoras que tenham sido publicadas em edição inglesa) ao seu último romance, Larry’s Party, consagrou-a em definitivo e tornou Carol Shields uma das referências fundamentais da literatura contemporânea de expressão inglesa.

 
Deve salientar-se, antes do mais, que A Memória das Pedras é uma espécie de “diário” (esta sua característica é bem evidente no título original: The Stone Diaries) que narra, desde o seu nascimento, no princípio do século, a vida de uma mulher, começando pelo falecimento da mãe (que morreu no parto), atravessando a sinuosa vida do pai, dos sogros, maridos, filhos e netos, enfim, de toda a gente que, de uma forma ou de outra, a obriga a “continuar em frente” até ao fim dos seus dias (com que o romance acaba). Mas um “diário” com um narrador principal distinto da personagem central e que apresenta uma estrutura complexa, repleta de recorrências entre situações, de inúmeros narradores secundários, de imenso material documental (cartas, fotografias, notícias de jornais, discursos, etc.), que manifesta diversos pontos de vista, de quem a rodeia, sobre os acontecimentos e correspondentes estados psicológicos que condicionaram o percurso da sua vida. Percebe-se que Carol Shields pretende demonstrar que a biografia exaustiva de uma figura não é constituída pela simples descrição de um percurso existencial e da visão que dele tem o seu principal agente, mas também do contexto humano que funciona como seu contraponto emocional e afectivo, visto que o “olhar”, expresso ou não, que este último tem dessa figura, condicionará todos os seus actos.   

 
Os elementos que se evidenciam neste romance são, em complemento a um classicismo muito particular de construção, uma invulgar argúcia de observação psicológica e uma belíssima encenação de algumas situações, bem reveladoras do que pode atingir um grande domínio da arte narrativa (estou a recordar, em particular, a memorização que efectua o almocreve judeu albanês ao descobrir, após a morte da mãe no parto da personagem principal, a solidão abissal da criança recém-nascida e como isso o transforma e motiva a dar sentido à vida ou a do velho moribundo que, ao cair de colapso no seu jardim, consegue sentir o calor e a densidade da terra a penetrar na pele das suas costas, antes de morrer). Porém, o que mais impressiona, em A Memória das Pedras, é a perfeita assumpção daquilo que se tornou uma constância no romance contemporâneo: uma obsessiva consciência de que o tempo é não só a “substância” do romance, mas também, como em qualquer manifestação artística, aquilo que o corrói, e que é no seio dessa amálgama que irrompe (ou não) o poder de cristalização da arte narrativa.

 
A forma, contudo, como A Memória das Pedras “trata” o tempo, pretende corresponder, assumidamente, a uma das principais constantes com que o romance americano tem encarado esta problemática. De facto, a ficção americana sempre demonstrou uma magnânima consciência da diversidade da existência humana e uma imperiosa necessidade de testemunhar o carácter épico de qualquer vida. Daí que esta literatura (mais do que qualquer outra) faça ouvir, através das personagens das suas narrativas, um verdadeiro clamor de homens e mulheres, de crianças e velhos que, pelos canteiros deste mundo, amaram e trabalharam, lutaram e sofreram com a dignidade que as circunstâncias lhes fizeram caber em sorte. Talvez que o romance se tenha orientado para este papel de “testemunho” por ser a forma mais “dramática” de reproduzir a imensa diversidade continental do espaço americano; mas por certo que esta orientação o transformou na “pedra” basilar onde se gravam essas existências contra a erosão do tempo: a estratégia narrativa, através da adequação à vida que contém, “endurece-se”, ao mesmo tempo que se torna a “lápide” dessa mesma vida. Neste contexto, o romance de Carol Shields é de uma enorme ambição: A Memória das Pedras, até no seu recurso a um certo classicismo, pretende não só dar continuidade a esta tradição da literatura americana, mas, em particular, construir um modelo narrativo que, de algum modo, dê uma forma “definitiva” a esta concepção do romance.

 
Vive-se, realmente, um século glorioso. Talvez não o seja pelas razões mais previsíveis... mas não há dúvidas que em nenhuma outra época a criação artística – em destaque a literatura, o cinema e a música popular - terá pretendido (e, de certo modo, “conseguido”) dar testemunho de “todos nós”, manifestando o desejo de a todos “salvar” do esquecimento. Estranha época esta em que a literatura se transformou numa das principais vias de “salvação”...

 
Publicado no Público em 1998.

 
Título: A Memória das Pedras
Autor: Carol Shields
Tradução: Maria do Rosário Monteiro
Editor: Editorial Presença
Ano: 1998
317 págs., € 15,86