domingo, 27 de setembro de 2015

STIG DAGERMAN 1

 
 
 
 
 

O MEDO DO MEDO

 
Quando se procura situar, cultural e literariamente, um escritor como Stig Dagerman, é forçoso esboçar uma geografia literária que não se tem muitas vezes em consideração. É evidente que este autor, em termos de sensibilidade e tipificação estilística, vai “beber” a uma tradição literária sueca que desemboca no ponto de charneira que é a figura de August Strindberg. Porém, esse caudal literário, em muitas das suas variantes, aparece como uma ponta estrelar de uma constelação que tem o seu centro nas manifestações mais salientes da cultura literária alemã, situadas entre os finais do séc. XIX e o início da década de cinquenta do séc. XX - e que, de certo modo, vive sob ou em redor da sombra tutelar dessa outra personagem determinante da cultura ocidental contemporânea que é Friedrich Nietszche.

 
Situando-se nesta tradição, deve ter-se também em consideração o perfil dos autores suecos mais significativos pertencentes à geração anterior ou mesmo coevos de Stig Dagerman (Pär Lagerkvist, Hjalmar Bergman, Agnes von Krusenstjerna, Arthur Lundkvist, Harry Martinson, Eyvind Johnson e Gunnar Ekelöf), onde já perpassa uma profunda inquietação com o sentido da condição humana, resultante quer da angustiante confrontação com a morte e, por consequência, com a presença ausente de Deus, quer na relação com o Outro, e com uma crescente preocupação com a problemática social, para pereceber a experiência literária, excepcionalmente radical, que é a obra deste autor.

 
Antes de se avançar para a análise de A Serpente, a primeira obra de Stig Dagerman, publicada em 1945, e a última a ser traduzida e editada no nosso país, é de toda a justiça realçar o trabalho da editora “Antígona”. De facto, não é vulgar no nosso meio observarmos o esforço de um editor em publicar a obra ficcionista de um autor pouco conhecido de uma literatura periférica e, ainda por cima, não só com traduções cuidadas, como é o caso da obra agora publicada, mas também acompanhadas de estudos contextualizadores de inegável qualidade (o Posfácio de C. G. Bjurström desta edição de A Serpente é um excelente estudo interpretativo de toda a obra de Stig Dagerman, imprescindível para quem por ela se interessa). É, sem dúvida, um caso de paixão - como deveria sempre ser tudo o que é edição, se o mundo dos livros não fosse, helas!, também um comércio. Mas, de qualquer modo, reflecte também um dado conhecido: a obra de Stig Dagerman costuma originar estes casos de paixão, existindo quase um “clube de iniciados” que a divulga aos amigos como se fizesse dessa informação um acto de dádiva e afecto.

 
Um factor que contribuiu para a auréola mítica de Stig Dagerman foi a velocidade-relâmpago da sua carreira literária. De facto, com 22 anos, publicou a sua primeira obra e, em 1950, o seu derradeiro livro. Depois de quatro anos quase estéreis e improdutivos, suicidou-se. Tinha 31 anos. E, mal se começa a ler a sua obra, percebe-se que existia qualquer coisa de irremediável neste destino, dada a sua coerência radical.

 
A Serpente é uma obra híbrida e um pouco inclassificável. Aparentemente, parece tratar-se de uma colectânea de contos, iniciada com uma novela longa. Mas, na sequência da sua leitura, percebe-se que algumas personagens, a ambiência e alguns elementos simbólicos aparecem como obsessões recorrentes de narrativa para narrativa. Em resumo, A Serpente é um romance que, aproveitando-se, da maleabilidade do conto, permite fragmentar a unidade temporal, desenvolver personagens que noutras histórias tinham um papel secundário ou elementos simbólicos que apareciam primeiramente com uma importância lateral.

 
Esta própria estrutura(?) romanesca permite evidenciar aquilo que parece ser uma característica de toda a obra de Stig Dagerman: o seu carácter obsessivo. De facto, quem já leu os romances e as peças de teatro deste autor percebe que a culpa, a angústia, o desespero e - no caso concreto de A Serpente - o medo, como manifestações da desagregação de sentido para a existência, aparecem como destroços que emergem, de forma constante, na ondulada maré do(s) texto(s). Por outro lado, as próprias características estilísticas do autor - bem evidenciadas em A Serpente - reforçam esta componente obsessiva: o enfâse constante no encadeamento das metáforas, criando uma ambiência fantasmagórica, desfigurada, de intenso simbolismo, e anulando as fronteiras entre a realidade e a subjectividade, permite tipificar o estilo de Stig Dagerman como uma variante de “expressionismo tardio” e que ele “serve” para realçar a dimensão trágica do deambular existencial das suas personagens.

 
É evidente que a imediata tendência dos comentaristas foi associar o ambiente concentracionário de caserna militar de A Serpente à II Guerra Mundial. No entanto, é também claro que este motivo visa atingir um objectivo mais amplo: o de transmitir uma imagem ontológica em que os contornos da existência aparecem como um espaço fechado donde toda a fuga é efémera e ilusória. E para a caraterização deste sentimento, decisivo para a cultura europeia contemporânea, a obra de Stig Dagerman é um inquestionável marco.

 

Publicado no Público em 2000.

 
(Foto do Autor de Tore Falk).
 
Título: A Serpente
Autor : Stig Dagerman
Tradução: Ana Diniz
Editor: Antígona
Ano: 2000
332 págs., € 7,50

 
 
 

 
 
 



quinta-feira, 24 de setembro de 2015

THOMAS MANN 2


 
 
 
 
O HÚMUS DO MAL
 
Desde a publicação de Os Buddenbrook, no início do século, que Thomas Mann foi encarado como um dos mais genuínos representantes do “génio” literário alemão. Contudo, este escritor teve sempre uma relação tempestuosa com o seu país, principalmente com os aspectos mais salientes da sua evolução cultural e política: lembremo-nos das críticas à política da República de Weimar e ao expressionismo em Considerações de um Apolítico, ou mais tarde, sob o nazismo, a atitude acusatória que Thomas Mann, a partir do exílio, vai assumir perante aquele aberrante regime.
 
Doutor Fausto (1947) é considerado um dos mais importantes romances da primeira metade deste século, no quadro das literaturas da Europa Central, e pode ser entendido como uma tentativa ficcionista de compreender a evolução cultural, a partir dos finais do séc. XIX, de uma “certa” Alemanha que permitiu a ascensão ao poder de Adolfo Hitler.
 
Através da biografia de um músico dodecafónico imaginário, Adrian Levekühn, feita por um amigo deste, Thomas Mann vai retomar o velho mito do séc. XVI (e que já tinha sido glorificado por Goethe, o intelectual alemão que ele mais admirava) do Dr. Fausto. Mas aquela personagem, que tem, contudo, uma consistência psicológica bem caracterizada, personaliza a Alemanha com o seu entrechocar de contradicções, e o pacto diabólico, que efectua, simboliza o logro em que a nação alemã caiu ao fascinar-se pelo canto de sereia da barbárie nazi.
 
É, portanto, sobre a decadência colectiva que este romance se debruça ao analisar a ascensão das tendências irracionalistas e vitalistas da cultura alemã (o seu conservadorismo anti-humanista, o primado do estético sobre o ético, a sujeição do Espírito ao sensorial e às pulsões de dominação e submissão, o pendor para o sofrimento e para o isolamento, etc.) e que, nalguns aspectos, o próprio Thomas Mann tinha perfilhado anteriormente.
 
É por causa desta dimensão de confronto doutrinário consigo mesmo que Thomas Mann fala do Doutor Fausto como de uma “autobiografia radical”. Mas, numa perspectiva actual, o que mais se realça neste romance é o seu carácter de acto de conhecimento e de saber (note-se que semelhante atitude perante o romance, comum a Broch e a Musil, ao tentar fundir ficção e ensaio, pretende ser uma ultrapassagem das limitações estéticas a que, segundo estes autores, o género chegou no final do século), e, por outro lado, reflectir o empenho de Thomas Mann em elaborar urna retórica (é esta, segundo ele, a tarefa fundamental da burguesia) que condicione e dê sentido cultural aos impulsos e às energias vitais.
 
Publicado na revista Ler em 1996.
 
 
Título: Doutor Fausto
Autor: Thomas Mann
Tradutor: Herbert Caro
Revisor: José Jacinto da Silva Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1996
696 págs., € 25,00
 




RENÉ CREVEL


 
 
 
UM SURREALISTA (POUCO) EXEMPLAR
 
 Um conhecimento, mesmo que superficial, dos princípios estéticos e éticos do surrealismo, tal como foram formulados nos seus “Manifestos” e pelos grupos iniciais de André Breton, permite compreender como eram antagónicos ao modelo clássico do romance, arquitectado no séc. XIX, e como refutavam qualquer tipo de narrativa convencional. Basta recordar a importância dada à “escrita automática”, como veículo de manifestação do inconsciente e de libertação individual, para perceber a que ponto se tornava difícil conciliar esta sensibilidade estética com as formas estruturadas (conto, novela ou romance) da narrativa. É natural, por isso, que, em forma de balanço simples, a narrativa apareça, em comparação com a poesia ou com as chamadas artes plásticas, como uma expressão artística com menor projecção no quadro da produção surrealista (mesmo tendo em consideração que alguns textos fundamentais de Breton, Soupault e Aragon tenham sido redigidos em prosa).
 
Porém, hoje é inquestionável que foi esta refutação e a necessidade de conceber um modelo narrativo alternativo que originaram a introdução de elementos que tornaram a narrativa muito mais maleável e adequada à sensibilidade contemporânea (recordo, por exemplo, a introdução do absurdo e do “non-sense” ou a exaustiva utilização da metáfora e da metonímia como meios de reforçar a intensidade poética da narrativa). E, se, actualmente, parece evidente o papel desempenhado pelo surrealismo para revolucionar os modelos da narrativa, e se, por outro lado, ao longo do séc. XX, não poucos escritores reconheceram a importância do seu legado estético, numa primeira fase, a relação entre surrealistas e romancistas assentou bastante em acusações mútuas, desconfiança e “partis pris”.
 
Nem que fosse pela circunstância histórica de ser um dos poucos surrealistas que utilizou quase exclusivamente o romance como expressão artística, a figura de René Crevel merece e deve ser lembrada. Mas, para além disso, pela sua atitude de afrontamento das convenções burguesas e pela coragem interior com que assumiu e procurou superar as contradições ideológicas da sua geração, foi um caso invulgar de coerência revolucionária (no sentido mais genuíno - e surrealista - do termo). A sua vida breve e acidentada e, até mesmo, a sua morte foram, para lá das motivações subjectivas e da doença, o resultado dramático de uma busca incessante por viver de acordo com uma nova ética que libertasse o homem e respeitasse os seus desejos e natureza.
 
René Crevel nasceu, com o século XX, em Paris e teve uma adolescência relativamente desafogada. Em 1920, ao entrar na Sorbonne, conhece alguns colegas que se vão tornar figuras importantes do meio literário francês (Marcel Arland, Georges Limbour, mas, muito em especial, o futuro dramaturgo Roger Vitrac, seu parceiro no movimento surrealista). Só no ano seguinte é que Crevel conhece os dadaistas, em particular, Tristan Tzara, de quem se tornou grande amigo, Louis Aragon e André Breton. A partir desse momento, passa a participar no movimento surrealista, colaborando nas suas revistas e tomando parte activa nas inúmeras querelas que, de um modo constante, dividiram os seus membros. Em 1924, publica o seu primeiro livro (Détours) e, nos anos seguintes desta década, edita à média de uma obra por ano. Porém, as suas relações com o grupo surrealista não são fáceis: primeiro, porque manifesta, em termos públicos, as suas dúvidas em relação à importância da “escrita automática”; segundo, porque são conhecidas as suas relações homossexuais (que André Breton condena expressamente em 1927). Em 1926 e 27, conhece e convive com Gertrud Stein e H. G. Wells (por ocasião de uma viagem a Inglaterra, onde se fascina pela obra das irmãs Brontë, sobre as quais escreveu), que o estimulam a continuar a sua obra romanesca.
 
Entretanto, é-lhe diagnosticado uma tuberculose pulmonar. Começa a passar algumas temporadas em sanatórios e a sua saúde nunca mais se irá recompor. No entanto, uma enorme ansiedade de viver leva-o a não ficar parado, desdobrando-se em projectos e numa vida amorosa e social frenética. Projecta ir a Marrocos, mas desloca-se para Berlim, onde inicia uma relação amorosa com uma alemã, Théa Sternheim (e com quem, mais tarde, iniciará uma relação a três, uma vez que ambos se apaixonam por um pintor austríaco, Rudolf Ripper). 
 
Em 1929, os surrealistas, a pedido de André Breton, resolvem tomar posição sobre o exílio de Léon Trotsky. René Crevel subscreve a posição dos surrealistas e, a partir deste momento, ainda se empenha mais nas suas actividades (participa em reuniões, dirige revistas, com Paul Éluard e René Char, redige artigos sobre psicanálise e sobre Salvador Dali). Em 1932, em conjunto com Breton, Éluard e Char, adere à AEAR (Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários), organização intelectual próxima do PCF. Porém, ao participar em reuniões e assembleias, desilude-se com a falta de abertura da organização. No ano seguinte, por ocasião de uma posição crítica relativamente à U.R.S.S., desencadeia-se a ruptura entre os surrealistas e os comunistas e Crevel, em parte também por razões amorosas e de saúde, não só se afasta da organização pró-comunista como dos surrealistas. Mas, ao mesmo tempo, tenta sensibilizar Tzara e Char para a necessidade do movimento surrealista se empenhar mais em termos políticos.
 
Em 1935, Crevel afasta-se em definitivo do movimento surrealista, por reacção à exclusão de Dali, proposta por Breton, e volta a aderir à AEAR. Inicia então um período de grande militância na organização, preparando o Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura, e procurando, por todas as vias, que este integre os surrealistas. Mas as crispações entre comunistas e surrealistas são muito violentas, e o Comité organizador, tendo autorizado a sua participação, não permite que os surrealistas possam nele ter palavra. Esta decisão foi tomada no dia 17 de Junho; entretanto, no dia anterior, Crevel tomou conhecimento que tinha contraído uma tuberculose renal. Na noite de 17 para 18, Crevel suicidou-se com gaz.  
 
Pode dizer-se que a obra de Crevel, no curto período de pouco mais de dez anos de produção, dividiu-se em três fases, correspondentes a diversas obsessões e problemáticas nucleares na reflexão do autor.
 
Numa primeira fase (correspondente às obras Détours, Mon Corps et moi e La Mort difficile), num esforço de autoconhecimento, de exorcizar alguns fantasmas e de compreender a sua atracção homossexual, Crevel centra-se na infância, através da invenção de personagens que são verdadeiros “alter-egos” do autor, procurando perceber até que ponto a sua família (e, em particular, a mãe) afectou a sua sensibilidade (convém recordar que o seu pai enforcou-se quando ele tinha 14 anos e que a mãe o obrigou a ver o pai enforcado, ao mesmo tempo que imprecava contra o cadáver, acusando-o de cobarde e de dissoluto; o que é certo, é que esta situação terá, talvez, originado em Crevel uma acentuada propensão suicida, espelhada na sua obra e em diversos depoimentos, ao ponto de, no seu primeiro romance, descrever, como a forma mais “decente e limpa” de morrer, aquela por que vai optar dez anos mais tarde).
 
Numa segunda fase (correspondente às obras Babylone e Etes-vous fous? e ao período de maior empenhamento no movimento surrealista), procura responder a certas questões levantadas pelo surrealismo nas suas tentativas de conseguir exprimir as manifestações do inconsciente. De facto, Crevel tinha criticado a “escrita automática” e as sessões de “sono hipnótico” (protagonizadas em particular por Robert Desnos, com quem Crevel teve várias polémicas ao longo da sua curta vida) como veículos de expressão fiel do inconsciente, considerando mesmo que a consciencialização dessas manifestações (e, por consequência, a sua transmissão “artística”) as deformava e deturpava. Por isso mesmo, estas obras de Crevel são verdadeiros “pastiches” da actividade onírica, construindo, através de imagens que se encavalitam de forma ininterrupta, personagens que aparecem e desaparecem, objectos que se humanizam e lideram a acção, saltos bruscos no espaço ou descaracterização integral deste, numa verdadeira torrente verbal que não só rompe de todo com a narrativa convencional, como pretende, em particular, “revelar” a dinâmica conflituosa e dilacerante das pulsões oriundas do inconsciente.
 
Numa terceira fase (correspondente às obras Les Pieds dans le plat e Le Roman cassé e a um período de maior empenhamento político e social), o trabalho narrativo de Crevel tem menor interesse artístico. No entanto, a radicalidade e a ombridade com que afronta o capital, e o modelo social que o sustenta, tem origem numa atitude ideológica consistente e vigilante, sem pactuações, e é expressa numa retórica panfletária de modelar qualidade literária.
 
Para o leitor actual, os textos de René Crevel poderão parecer demasiado experimentais e envolvidos nas contradições estéticas, éticas e políticas da época que os viu nascer. Porém, sobre este facto, nada pode ser apontado (nem exigido) a René Crevel e à sua obra como a nenhum outro autor que pretende ser genuinamente criativo e empenhado: a resistência do cristal que fica - o rasto de textos que se desprendem das mãos – vai-se configurando ou desfigurando pela acção devastadora do tempo. E, sobre este, o estatuto demiúrgico do autor pouco pode. 
 
Por fim, a título de informação, saliento que só tenho conhecimento da existência em língua portuguesa de duas obras de René Crevel: O Meu Corpo e Eu (Hiena) e Filhas do Vento (& Etc.). Na língua original, a maioria das suas obras encontra-se publicada em edição de bolso (Le Livre de Poche/Col. Biblio ou Gallimard/Col. L’Imaginaire) ou nas edições Pauvert.
 
 
Redigido em 2004 para uma edição comemorativa do Público da publicação de Os Manifestos Surrealistas que não se chegou a concretizar.
 
 


 
 
 


 
 
 



 
 







quarta-feira, 23 de setembro de 2015

PATRICK SÜSKIND

 
 
 
 
 

A ARTE COMO BLOQUEIO SUÍCIDA

 

O autor alemão Patrick Süskind tornou-se um dos mais recentes mitos do mundo literário, não só pelo enorme sucesso editorial que obteve, em toda a Europa, com o seu romance O Perfume, mas também pelo seu comportamento misantropo e avesso à comunicação social. Naturalmente, o destino das suas obras transformou-se de um modo radical, e daí que O Contrabaixo, anterior à publicação daquele romance, fosse depois editado em diversos países, e que a encenação deste monólogo dramático, como refere Anabela Mendes, a tradutora e apresentadora da versão portuguesa, resultasse num expressivo êxito teatral nas duas Alemanhas.

 
O Contrabaixo é unicamente constituído pela alocução de um contrabaixista, feita no seu quarto a um público imaginário, e por algumas indicações cénicas sobre a acção da personagem ou sobre a música que ouve ou toca. Nessa alocução, que se inicia por um elogio às virtualidades musicais do seu instrumento, o que se vai espelhar, é a intensa solidão do contrabaixista por se dedicar à execução de um instrumento tão grande e produtor de tão estranhas sonoridades. E, além disso, como a sua execução o obriga a um esforço físico que lhe deforma o corpo, como os seus hábitos se tiveram de condicionar àquela presença imensa e como os seus desejos ficaram bloqueados com as notas de um instrumento que afasta automaticamente a musicalidade dos outros para o seu polo oposto.

 
O contrabaixista vive, por isso, com o seu instrumento, uma relação de exclusividade, obcecante e frustrante, porque, dadas as características do contrabaixo (e também por ser terceiro nível de uma orquestra nacional), nunca poderá ter o reconhecimento público pelo seu esforço, nem receberá um olhar empolgado pela sua música. Percebemos, assim, que todo o enaltecimento minucioso do músico no início do monólogo, sobre a importância do contrabaixo na história da música, não passa de uma forma de tentar escamotear, perante si e os outros, a esmagadora depressão que a sua existência lhe provoca por estar na dependência daquele instrumento. E o monólogo atinge a tonalidade do desespero, quando o contrabaixista confessa a sua paixão por uma soprano de quem sabe que não se poderá aproximar, visto que, em consequência da posição subalterna do seu instrumento na orquestra, ela nunca reparará nele e sentir-se-á sempre solicitada por outros músicos, tocando instrumentos de musicalidade mais fascinante.

 
A relação do contrabaixista com o seu instrumento é, por isso, dúplice de amor e ódio: tanto a sua violência como o seu erotismo têm que se resolver com o contrabaixo. E, dada a estabilidade que lhe concede o seu cargo de membro vitalício da orquestra e da impossibilidade de se dedicar a outra actividade, o contrabaixista percebe que a sua relação é definitiva e angustiantemente suicida.

 
Este texto de Patrick Süskind é, por isso, uma parábola sobre as dificuldades comunicantes de quem se dedica a um instrumento de comunicação que, impondo uma exigente e constante presença, lhe envolve a vida e a transforma num inferno de solidão. No fundo, a arte aparece, não tanto como um veículo de comunicação e de busca de afecto, mas, pelo contrário, como uma redoma inibidora, dado o seu carácter absorvente e radicalmente existencial.

 
Convém, por fim, referir, para melhor o situar, que existem notórias semelhanças, pela sua temática e pelo seu carácter de monólogo dramático, entre O Contrabaixo e algumas obras de Samuel Beckett e Thomas Bernhard, sem, contudo, atingir a concisão estilística e o rigor verbal da produção destes autores.

 
Saliente-se ainda a boa qualidade da transcrição para português feita por Anabela Mendes.

 

 
Publicado no Expresso em 1987.

 
(Foto do Autor de Philipp Keel)
 

Título: O Contrabaixo
Autor: Patrick Süskind
Editor: Difel
Tradutor: Anabela Mendes
Ano: 1987
66 págs., esg.
 
 

 
 


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

FRANCISCO COLOANE

 
 
 
UM ESCRITOR DE OUTRO MUNDO
 
Costuma afirmar-se que Francisco Coloane, o escritor que se tornou internacionalmente conhecido com as suas histórias passadas no Chile austral, pertence à estirpe de autores como Stevenson, Conrad, London ou até mesmo Hemingway. Quer isto dizer, que se considera que integra uma linhagem de escritores com uma vida aventurosa (e isto, pretende, por sua vez, caracterizar uma vida passada em regiões inóspitas, onde os autores afrontaram situações mais ou menos duras e violentas) e que essa vida serviu de fonte inspiradora à sua obra romanesca. De uma forma mais analítica, poder-se-á tipificá-los como autores que reflectiram, de um modo obsessivo, sobre o confronto homem/Natureza, uma vez que consideravam que era desse confronto que irrompia a “força moral” que personaliza o homem e lhe dá o conjunto de valores necessários para o dignificar na sua relação com o seu semelhante e com o meio envolvente. Por isso, a sua obra espelha uma visão passional, tingida de amor e ódio, pela Natureza, habitualmente “coisificada” no mar ou na floresta. Neste sentido, por exemplo, poderá classificar-se Francisco Coloane como um escritor do mar.
 
Porém, quando se analisa a obra dos autores desta estirpe, à luz da actual literatura mundial (e convém distinguir a obra destes escritores da presente literatura de viagens, já que esta é desencadeada por um “acto voluntário” que, de imediato, a coloca em parâmetros distintos), a sensação com que ficamos é que ela já morreu. Provavelmente, porque comecem a rarear as tais regiões inóspitas, ou porque o modelo de Natureza (associado ao Mal e à Morte), que lhes serviu de fonte inspiradora, já não tenha sentido, ou ainda porque já não seja possível uma vida aventurosa tal como eles a viveram. E, por isto mesmo, hoje, a formulação da relação homem/Natureza em termos literários já está muito distante da obra destes autores e só a reflecte como uma mediação referencial.
 
A obra de Francisco Coloane teve o seu período de maior pujança criativa nas décadas de quarenta e cinquenta. De facto, foi nessas décadas que publicou a sua trilogia de colectâneas de contos (Cabo de Hornos, Golfo de Penas e Terra do Fogo) que, no seu país natal, lhe granjeou o prestígio de exímio escritor de narrativas breves. Porém, é só tardiamente, na década de noventa, em consequência da acção generosa de divulgação da sua obra por parte do escritor seu conterrâneo Luis Sepúlveda, que o trabalho de Francisco Coloane começa a ser conhecido em termos internacionais. Para isso, muito deve também a consagração que lhe foi realizada no Festival “Étonnants Voyageurs”, dirigido por Michel Le Bris, em Saint-Malö, em 1995.
 
As memórias agora publicadas no nosso país, com o título de Os Passos do Homem, têm o principal mérito de ser um testemunho de um mundo que, por diversos motivos, já não existe. De facto, os costumes e as gentes aqui retratados, das longínquas terras de Chiloé, parecem vir de um “outro tempo”, em particular, pela forma como vivem a sua relação com a Natureza: há um respeito temeroso, embebido ao mesmo tempo de uma comovida ternura, e uma sintonia com o pulsar silencioso dos amplos espaços que, nos dias de hoje, já pertencem quase apenas a uma inevitável arqueologia dos sentimentos. Mesmo quando Francisco Coloane descreve situações mais recentes, envolvendo intelectuais ou figuras de um universo urbano, a memória, que os reconstrói e modela os seus intervenientes, vem da sua infância e de um “teatro de sombras” de personagens (pastores, pescadores, caçadores ou mesmo exploradores) que, ao transmitir-lhe os valores que estruturaram o autor, o prenderam definitivamente a um mundo já extinto.
 
Deve-se, por certo, a esta recorrência constante à infância, o carácter “desarrumado” destas memórias, onde o único fio tenuemente condutor parece ser o gosto particular do autor pelas viagens. Quem se habituou à fina arquitectura das narrativas breves de Francisco Coloane ficará impressionado de um modo negativo com o aspecto caótico de Os Passos do Homem. Além disso, o pincel intenso, com que o autor conseguiu colorir as paisagens onde deambulavam as personagens dos seus contos, parece ter perdido vigor, o que leva a evidenciar-se uma adjectivação e uma imagética que sofrem de um gongorismo excessivo. Restam, por isso, de Os Passos do Homem, algumas passagens que fazem recordar o “antigo” Francisco Coloane: relembro, por exemplo, a narração do momento de falecimento de seu pai e que aparece na obra como motivo recorrente.
 
Publicado no Público em 2001.
 
 
Título: Os Passos do Homem
Autor: Francisco Coloane
Editor: Teorema
Tradução: Serafim Ferreira
Ano: 2001
267 págs., € 15,90
 
   



terça-feira, 8 de setembro de 2015

ZOÉ VALDÉS



 
 


CUBA, ANOS NOVENTA
 
A Cuba pós-queda do Muro de Berlim é um dos casos que mais tem contribuído nos dias de hoje para uma certa turbulência nos campos ideológicos. Para alguns sectores de esquerda, representa o mais perfeito exemplo dos perigos sociais que pode originar a prática política de discursos utopistas, apontando-a como uma fortaleza de miséria, de repressão “popular”, de mediocridade quotidiana, de rasteirismo cultural. Por isso, é considerada uma criminosa aberração, só explicável pela obstinação tirânica de Fidel Castro e de alguns títeres que o apoiam. Paralelamente, certos sectores mais conservadores dessa mesma esquerda enaltecem Cuba pela sua fidelidade a um modelo social e político, pela sua resistência a uma “ordem universal” estabelecida pelos Estados Unidos, pela coragem e criatividade com que afronta um “bloqueio” que pretende vergá-la a aceitar a “normalidade” capitalista. Para cúmulo de hipocrisia, a própria situação de estagnação económica - que se considera resultante de um regime comunista imobilista - voltou a fazer de Cuba, entre o mundo ocidental, um dos locais importantes do circuito turístico internacional: hoje, procura-se nesta ilha, para além das praias tropicais, da sensualidade e da “salsa”, a Cuba de Hemingway que ainda, de um modo lamentável, subsiste. Além disso, o próprio mundo capitalista transformou o seu herói nacional, Che Guevara, que apenas pretendeu ser um obstinado guerrilheiro do comunismo internacional, numa figura de charme, numa espécie de mártir romântico e puro que dá, com a sua imagem, um suave toque “trágico” no universo sedutor da moda. No meio destas contradições, encontra-se um povo que é forçado a viver na total escassez, em nome de “futuros radiosos”, ou a fugir desesperadamente em balsas feitas de pneus e pedaços de madeira, vivendo décadas e décadas de exílio, mas sempre obcecado por esse “buraco negro” que é a “sua” Cuba.
 
E, entretanto, a literatura? Como se encontra a soberba literatura de Piñera, de Lezama Lima, de Carpentier? Ter-se-á tornado toda trânsfuga como a de Cabrera Infante e de Reinaldo Arenas? Por causa dos “bloqueios”, interiores ou exteriores, ou talvez não, muito pouco se conhece da literatura que hoje se faz em Cuba. Os poucos casos de autores que se conhecem no estrangeiro são os que, em confronto com o regime castrista, se exilaram. É o caso recente de Zoé Valdés, uma autora que obteve algum sucesso em França e, em particular, em Espanha (o seu último romance foi finalista do Prémio Planeta), e de quem agora a Ed. Teorema publicou o seu primeiro romance, O Nada Quotidiano.
 
Costuma dizer-se que, com bons sentimentos, não se faz boa literatura. É caso para se afirmar que também é muito difícil fazer boa literatura com maus sentimentos. E o que ressalta, de imediato, neste romance de Zoé Valdés é uma enorme amargura por partilhar o destino de um povo que, pelo menos parte dele, sente que foi condenado a viver abaixo dos limites mínimos da dignidade. É certo que também é esse sentimento que foi sobressaindo cada vez mais na obra de um Guillermo Cabrera Infante; mas, neste caso, estamos em presença de um genial malabarista da palavra que conseguiu “assimilar” em profundidade - e transfigurar em ambiências de uma magia desesperada - a tragédia de um povo que é castrado, dia após dia, na sua alegria e criatividade. Não é esse o caso, pelo menos nesta obra, de Zoé Valdés.
 
Não se entenda com isto que não existam méritos significativos em O Nada Quotidiano. A obra revela inegáveis potencialidades estilísticas da autora, principalmente pela capacidade de utilização de diversas matizes, que vão desde o aproveitamento de um registo muito oral, que consegue dar uma toada musical à frase, à manifestação, muitas vezes conseguida, de uma sentida exaltação lírica ou o uso do humor como forma de dissecação da mediocridade de situações tanto pessoais como sociais. Além disso, existe uma inequívoca coragem da autora em ultrapassar, com uma linguagem desempoeirada, mas bem ajustada ao clima da obra, a convencionalidade de certas situações, expondo-se de uma forma arrojada e íntegra. O Nada Quotidiano revela, portanto, fluidez de escrita; e a irregularidade, que a este nível também se detecta, é muito resultante daquilo que se chama uma “mão fácil” e à existência, em diversas passagens, de uma notória incontinência verbal. 
 
O romance, confessadamente autobiográfico, gira em redor dos amores e desamores de uma mulher - a quem o pai deu o nome de Pátria porque nasceu na sequência de um “meeting” do Primeiro de Maio - com o marido e o amante, o Traidor e o Niilista, e nas relações de cumplicidade com dois amigos exilados. Porém, muito mais importante do que esta trama, que é quase só esboçada no romance, é o retrato da presença abusiva do Estado num quotidiano já de si sofredor de enlouquecedoras carências de tudo. Um Estado que, em nome da justiça social, actua com uma arbitrária injustiça, reprimindo, espoliando, disseminando um medo larvar ou alimentando hipócritas cumplicidades em troca de medíocres benefícios, isto é, asfixiando de todas as formas a vida das populações. Um Estado que, além disso, nas áreas onde, de um modo legítimo deveria intervir, o não faz por estar totalmente depauperado, iludindo as pessoas com falsas expectativas ou com actividades de “fachada”. Neste aspecto, é bem exemplar a imagem que se transmite da Casa da Cultura, uma instituição que teve uma particular importância cultural em todo o mundo latino-americano nas décadas de sessenta e setenta, e que, hoje, parece só subsistir para dar no exterior uma ténue ideia de que o Estado cubano ainda tem algum respeito pela cultura.
 
Não ficam dúvidas de que existe uma dimensão tragicamente vivida nas inúmeras circunstâncias de uma miséria absurda em que as personagens de O Nada Quotidiano se enleiam. Mas talvez seja essa dimensão, ainda demasiado dolorosa na memória da autora, que a tenha condicionado a não superar a tónica de um simples libelo acusatório contra o regime castrista, a que se resume, de facto, este romance. No entanto, é justo afirmar-se que O Nada Quotidiano, sem ser uma grande obra literária, faz pressentir uma autora a quem será interessante observar o percurso.
 
Deve ser assinalada, por fim, a muito boa qualidade da tradução.
                                                                      
Publicado no Público em 1997
 
Título: O Nada Quotidiano
Autor: Zoé Valdés
Tradução: Serafim Ferreira
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
167 págs., esg.
 
 
    


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MICHAEL COLLINS

 
 
 
 
 
 

NENHURES
 
Uma das vertentes mais destacáveis da literatura norte-americana do último século caracteriza-se por espelhar uma atitude radicalmente crítica (para não afirmar de quase rejeição) da sociedade que a viu nascer. Esse “olhar” devastador sobre a sociedade americana, na maioria dos casos, tem origem numa concepção de vida obcecadamente individualista e num repúdio da massificação social, na denúncia de uma estratégia de resignação a uma existência devorada pelo “sentido” do todo social, eliminante das diferenças, que as instituições com papel na formação ideológica (a família, a escola, as “igrejas”, a comunicação social, o Estado) têm incutido na população. De facto, o que une escritores tão díspares como Thomas Wolfe ou John dos Passos, Henry Miller ou Nelson Algren, Jack Kerouac ou James Baldwin, ou, para nos aproximarmos das gerações mais recentes, Don DeLillo e Philip Roth, é esta visão da sociedade americana como um imenso deserto urbano, ácido e poluido, onde parece que só por milagre é possível irromper a “flor” da criatividade e da inovação.
 
É na continuidade desta tradição literária que Michael Collins, um recente autor, de origem irlandesa (será por mero acaso que este autor assina de forma homónima a um grande herói nacional irlandês?), mas radicado há muitos anos nos Estados Unidos, escreve o seu romance, agora traduzido no nosso país, intitulado Os Guardiões da Verdade. E a tradição é tão fortemente assumida que algumas páginas deste livro parecem reproduzir, como autêntico “pastiche”, a visão apocalíptica dos Estados Unidos que encontramos em obras, por exemplo, dos autores acima citados.
 
Numa primeira leitura, este obra retoma os ingredientes do romance negro. De facto, toda a trama se desenrola a partir de um caso sinistro de possível parricídio, que sucede numa diminuta povoação do “Middle West”, e que a personagem principal, um jovem redactor trabalhando num pequeno diário local, começa a investigar. E, despoletado por este brutal incidente, lá vão aparecendo – como já se tornou tradicional na literatura e cinematografia americanas que utilizam este tipo de ingredientes - todas as perturbações que, de uma forma larvar, minam aquela reduzida comunidade que, no momento em que se desencadeia a acção narrativa, está a viver um período marcadamente post-industrial (alguns dos trechos mais interessantes de Os Guardiões da Verdade são as descrições da cintura de fábricas abandonadas que rodeiam a cidade e que criam uma peculiar ambiência fantasmagórica) e que, por isso mesmo, segundo a personagem principal, de uma intensa abulia e desnorteio. É sobre essa pacata comunidade que tomba uma tétrica visibilidade (é necessário referir que o corpo da vítima, à excepção de um dedo, e algumas semanas depois, a cabeça, nunca chega a aparecer) com a chegada de equipas de televisão regionais e nacionais, fazendo não só que as suas perturbações assumam a desproporção dada pelos holofotes, mas também que pressione a personagem principal a uma obsessiva reflexão sobre o carácter ultrapassado e envelhecido da sua profissão.
 
Mas numa segunda leitura, introduzida pela análise constante que a personagem principal efectua do seu percurso e do momento que vive, percebe-se que Os Guardiões da Verdade pretende ser uma espécie de alegoria sobre a actual realidade americana. De facto, a personagem principal começa a encaixar, como num “puzzle”, a vivência pessoal (ele é filho de um industrial falido que, ao descobrir que a sua empresa não tem condições de competir com as congéneres que, no Terceiro Mundo, exploram uma mão de obra miserável, se suicida), a vivência dos seus vizinhos (que, embrutecidos pelo consumo e pelo espectáculo, navegam, entre os destroços das suas famílias, numa permanente deriva afectiva e sexual) e o estádio socioeconómico dos Estados Unidos. Neste cenário, todas as personagens começam a assumir um valor simbólico, em particular, as fulcrais da tragédia: o pai/vitíma, com o seu corpo desaparecido, transfigura-se numa realidade, diacronicamente sedimentada por valores de produtividade e de trabalho, mas violenta e rude, que foi desagregada por uma “outra” realidade, personalizada pelo indiciado/filho (traumatizado pelas mortes do irmão no Vietname e da mãe - abandonada em termos afectivos até à desistência de viver - e com os abusos sexuais perpetrados sobre a sua idiotizada mulher), construida pela actual geração americana, que se encontra afundada no meio de uma panóplia de solicitações e instrumentos de fascínio, a impingir-lhe códigos de conduta estereotipados, e se autodestrói, sem conseguir descobrir qualquer sentido harmónico para a existência. É, no fundo, esta a “mensagem” da tatuagem dos dedos do pretenso assassino: numa mão tem inscrita a palavra “Now”, noutra a palavra “Here”, e juntas escrevem a palavra “Nowhere”.
 
Mas este acontecimento horrendo, e a forma como é enquadrado pela comunicação social, vai servir também para que a personagem principal reflita, de um modo questionável, sobre o conflito imprensa escrita/imprensa televisiva. De facto, a personagem principal de Os Guardiões da Verdade entende que, perante uma realidade concreta e física decomposta (o corpo do cadáver que nunca aparece), o jornalismo impresso ainda poderá funcionar, através da interpretação, como instrumento de integração, de reconstrução da “verdade” (repare-se que o jornal local se chama “Truth”), enquanto a outra imprensa (a televisiva) oculta o vazio da realidade concreta através do “fabrico”, com um enorme poder de sedução, de uma outra realidade, transformando os seus consumidores em “zombies”, sem espaço nem lugar, perdidos numa éterea neblina, mas convencidos que estão a presenciar a “verdadeira” realidade. No entanto, este papel da imprensa escrita é também entendido como uma peça arqueológica e condenada ao fracasso: não é por acaso que o proprietário do jornal, por fim, se suicida e que o outro membro da redacção, o fotógrafo, é, de certo modo, parcial cúmplice do assassínio perpetrado. Resta à personagem principal (o redactor), entre dois infernos reais, o caminho da fuga – seguindo as pegadas de muitos outros homens de letras, ao longo da história da cultura americana, que se sentiram impelidos a afastar-se de uma realidade inóspita e que os repudia.
 
Creio que se torna evidente que Michael Collins pretendeu escrever com Os Guaridões da Verdade uma obra ambiciosa e, ao mesmo tempo, pessimista em relação à realidade americana. Como todas as obras deste género, é muito polémica – o que traz sempre a vantagem de contribuir para que o leitor reflita sobre os tempos que passam e os caminhos que se avizinham. Só é pena que, nalguns aspectos, este romance ainda revele algumas fragilidades na arquitectura das personagens e na consistência e verosimilhança das situações.
                                                                                        
Publicado no Público em 2001.
 
Título: Os Guardiões da Verdade
Autor: Michael Collins
Tradução: Alda Balsa Rodrigues
Editor: Gradiva
Ano: 2001
313 págs., € 5,00