sábado, 31 de outubro de 2015

MARIANNE FREDRIKSSON


 
 

HISTÓRIAS SENTIMENTAIS

 
Quem tem acompanhado o percurso no último século da literatura sueca sabe que a sua narrativa, durante os anos cinquenta a setenta, foi dominada por preocupações sociais e políticas. Essa corrente, habitualmente conhecida, talvez com um pouco de ironia, com o nome de “literatura proletária”, teve tal ascendente neste país (pode dizer-se que não houve literatura de nenhum outro país do Ocidente onde estas preocupações fossem tão hegemónicas) que levou, os mais pessimistas, a recear que a literatura, na sua concepção mais abrangente, tivesse definhado de todo na Suécia. É evidente que esta obsessão literária com as questões sociais e políticas tem razões culturais e geoestratégicas; porém, deixando de lado a questão falaciosa de compreender a motivação desta atitude ideológica e estética, é inquestionável que corresponde à generosidade e abertura que o povo sueco tem revelado, na segunda metade do séc. XX, em favor dos que, por razões políticas, têm sido oprimidos e perseguidos em todo o mundo. De qualquer modo, foi só a partir dos finais da década de setenta que apareceu uma geração literária com outros interesses temáticos, retomando a tónica de uma maior reflexão sobre as especificidades do discurso literário e mais empenhada na compreensão das complexidades dos universos sensíveis do homem contemporâneo.

 
Marianne Fredriksson, a autora de Duas Mulheres, Um Destino (versão portuguesa, francamente banal, de um título, cuja tradução literal teria, na nossa opinião, mais intensidade poética), pertence - a autora começou já tarde, com perto de sessenta anos, a sua actividade literária - à transição entre as duas gerações referidas. Depois de uma vida dedicada ao jornalismo, Marianne Fredriksson conseguiu obter na última década um inegável sucesso popular e crítico com a sua produção romanesca. Hoje, com mais de doze títulos publicados, a autora não só é considerada uma das figuras de maior relevo editorial e literário no seu país, como a que tem maior projecção internacional, estando já traduzida e publicada em cerca de 150 países.

 
Este enquadramento talvez ajude a compreender a obra desta autora, em particular o seu interesse pelo percurso histórico das mulheres na sua luta pela emancipação e pela afirmação cultural, social e política: saliento, por exemplo, o seu romance mais conhecido (e também já editado pela Presença), As Filhas de Hannah. O presente romance, Duas Mulheres, Um Destino, apresenta-se, de certo modo, como uma pequena variante à problemática do anterior. Aqui, as personagens centrais são duas mulheres, já na terceira idade, vivendo sozinhas na Suécia, mas que têm uma origem geográfica e um universo cultural bem distintos: uma, como a autora, é sueca, vivendo da sua produção literária; a outra, chilena, exilada, depois de ter fugido às perseguições políticas perpetradas no seu país após o golpe militar que derrubou Salvador Allende.

 
Este esquema narrativo, simples e já muito visto, permite a autora demonstrar duas coisas na aparência contraditórias: por um lado, revelar que existe uma certa “malaise de vivre”, resultante do actual estatuto da condição feminina, seja quais forem as circunstâncias históricas, económicas e culturais que condicionam as experiências de vida e as atitudes comportamentais; por outro, que a História, de forma inevitável, irrompe na esfera do privado, condicionando afectos, originando obsessões e fobias, arrastando para profundas mágoas ou propiciando comoventes alegrias. No fundo, é como se os fluxos da história social e da história pessoal fossem as duas faces do mesmo manto de água, correndo para a inevitável foz da morte e tornando qualquer existência ao mesmo tempo única e irrelevante.

 
Aparentemente, portanto, parece que a obra de Marianne Fredriksson se enquadra na chamada literatura feminina (ou, aceitando um jargão demasiado conotado, femininista). Porém, creio que não é neste facto que assenta o sucesso editorial desta autora. Os motivos deste sucesso prendem-se, a nosso ver, com a tentativa da autora em definir as suas personagens, numa perspectiva estritamente emotiva e sentimental, apegada à sua experiência privada e como, nesta esfera, se “defendem” dos condicionalismos, mais ou menos violentos, da História, soberanizando-se em termos emocionais. No fundo, a escritora parte da convicção – bastante generalizada na sua geração – de que só existe progresso social resultante do conjunto das “libertações individuais” e do afrouxamento das diversas dependências pessoais, num quadro ideológico que é uma resultante hibrida de progressismo social e político e de ética cristã.

 
É inquestionável que Marianne Fredriksson consegue transmitir alguma convicção romanesca nesta sua tentativa de “olhar” a História, sem nunca abandonar o nível das histórias pessoais. Simplesmente, nesta tónica de definir as suas personagens pelos seus contornos sentimentais e emotivos existe o perigo da sua produção narrativa resvalar para uma “pieguice” ludibriante (em Duas Mulheres, Um Destino, sem dúvida um dos menos conseguidos desta autora, há, por vezes, algumas situações que raiam o mau-gosto e que parecem entrar nos parâmetros do subproduto narrativo a que os norte-americanos chamam as “romance novels”). Daí, o esforço da autora, nas suas melhores páginas, em conter-se, em termos estilísticos, num registo sóbrio e seco, pouco adjectivado, e, paralelamente, em estruturar a narrativa em graduações de doseamento dramático que permitam reter a atenção do leitor.

                                                          
Publicado no Público em 2002.
 
 
(Foto da Autora de Anne Fredriksson)
 

Título: Duas Mulheres, Um Destino
Autor: Marianne Fredriksson
Tradução: Margareta Ek Lopes
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
211 págs., esg.

 





sexta-feira, 30 de outubro de 2015

BODO KIRCHHOFF


 
 
AS VIAGENS IMPOSSÍVEIS
 
A produção da literatura de viagens ou apenas “exótica” sempre respondeu a um sentimento de cristalização da significação ontológica, que a “desterritorialização” provoca, e à necessidade de eliminar a indiferenciação emocional através da deslocação para Outro Lugar do sujeito que está e vê. No entanto, hoje, este tipo de literatura parece assinalar cada vez mais a uniformidade dos territórios e a impossibilidade de escapar ao Mesmo: o viajante deixou de o ser e transformou-se num deambulante que persegue, em todos os lugares, a sombra da sua anulação de sentido e o tédio resultante de descobrir, por todo o mundo, uma simples “arqueologia das diferenças”.
 
Esta constatação é desesperantemente nítida no romance Infanta de Bodo Kirchhoff, um autor alemão que, nos últimos tempos, tem obtido alguma evidência internacional com os seus relatos de viagens.
 
O cenário deste romance é as Filipinas, no período pré-revolucionário do derrube de Ferdinando Marcos. É nesta, ainda latente, efervescência social e política que “desembarca” um “alemão de Roma”, não se sabe porquê e vindo não se sabe de onde. Perante a sua situação de “desamparo”, um membro de uma pequena comunidade de jesuítas, oriunda de diferentes nações, estabelecida na ilha de Infanta, resolve dar-lhe guarida e favorecer, deste modo e intencionalmente, a relação amorosa deste “estrangeiro” com a jovem e bela filipina que serve de governanta.
 
De imediato, se percebe que o “alemão de Roma” viaja com um estatuto “inverso” ao de turista: ele deixou de ser aquele que vê para se tornar naquele que é visto. O único elemento de “exotismo” (se considerarmos este conceito como a caracterização de um Outro ainda não compreendido) que subsiste nesta obra é resultante da presença desta personagem na paisagem social de Infanta. Por isso, ela absorve o olhar dos outros como um “buraco negro”, transformando-se num “continente” vazio perante o qual as restantes personagens sentem a necessidade de “verter” o testemunho das suas existências. A intencionalidade deste estatuto toma-se ainda mais óbvia quando se vem a saber que a actividade profissional desta personagem, até à chegada à ilha, foi a de modelo.
 
A actividade profissional de Kurt Lucas, a personagem principal, contribui também para caracterizar o seu tipo de (mal-)estar: existindo só no “presente” em que o seu corpo se expõe, ele deambula, momento a momento, por paisagens e corpos - é este o sentido da magnífica epígrafe do poeta Edmond Jabès com que abre Infanta. Vivendo na “pose”, ele protagoniza aquilo que o olhar dos outros quer que seja. A comunidade de jesuítas, por exemplo, vivendo entre “presentes” já passados e um futuro que é somente a crença numa plenitude transcendente adiada para os fins do tempo, transfere para o presente de Kurt Lucas a intensidade dos seus desejos insatisfeitos.
 
É também este estar apenas no “presente” que aproxima a personagem principal de Mayla, a jovem governanta da comunidade de jesuítas. É que Mayla é uma “sobrevivente” e, por isso, alguém para quem também só conta o presente. O que Kurt Lucas descobre nela é a densidade específica que tem o corpo e que ele se habituou a reconhecer no seu através do olhar dos outros. A sua relação amorosa, construída com a substância de cada momento e na superfície dos corpos, parece-lhe, por isso, o Lugar onde é impossível haver “perca” da intensidade do presente. Tanto para mais que a própria relação amorosa parece estar na mais adequada sintonia com a efervescência social que se vive naquele momento nas Filipinas.
 
Porém, a corrupção e a violência em que a sociedade filipina imediatamente se afunda, após o “momento” revolucionário, e a descoberta de que Mayla, apesar da paixão, tem um passado que lhe reveste o corpo, dando-lhe um conjunto de desejos que ultrapassa o presente, levará Kurt Lucas a perceber que é impossível fugir ao Mesmo e à inevitável desagregação. No fundo, a personagem principal pressentiu numa miserável mulher - um autêntico vegetal humano que vive deitado numa lixeira e lhe “oferece” o filho recém-nascido - aquilo que sempre temeu: nada mais ser do que um corpo, um dejecto do tempo.
 
Em princípio, este conjunto das ideias narrativas poderia fazer deste romance uma obra interessante; mas a inépcia na construção de inúmeras situações dramáticas e a falta de sentido da economia narrativa mergulham Infanta num discurso palavroso (que as irregularidades da tradução ainda mais acentuam), estilisticamente bastante monótono, e que retira qualquer dimensão estimulante que o leitor procure vislumbrar na sua trama.
 
Publicado no Público em 1993.
 
Título: Infanta
Autor: Bodo Krichhoff
Tradutor: Maria Augusta Júdice e António HaIl
Editor: Edições Asa
Ano: 1993
389 págs., 16,62 €
 
 
 




quarta-feira, 28 de outubro de 2015

ALBERTO VÁZQUEZ-FIGUEROA





UM INCONSEQUENTE DR. FAUSTO

 
 
Alberto Vázquez-Figueroa, o autor espanhol de quem foi agora editado no nosso país o romance O Senhor das Trevas, foi, durante várias décadas, um repórter respeitado, que testemunhou inúmeros conflitos e catástrofes, principalmente em África e na América do Sul. Em paralelo, e de forma exclusiva nos últimos anos, dedicou-se a uma prolífera carreira de romancista (já com mais de seis dezenas de livros publicados), de guionista e de realizador cinematográfico. Vizinho de José Saramago (é o outro escritor que reside na pequena ilha de Lanzarote), Alberto Vázquez-Figueroa é um autor muito popular em Espanha, constantemente solicitado pelos “media”, devido às expressivas vendas dos seus livros (Manaos, Anaconda, Tuareg, El Inca, etc.) e em especial ao sucesso cinematográfico de alguns dos seus títulos e guiões (que, por vezes, foram produzidos em Hollywood).
 
Creio que se dá uma imagem fiel da obra deste escritor, ao afirmar-se que procura apresentar certas problemáticas (no essencial, de carácter ético e político), utilizando as estratégias narrativas do chamado “romance de aventuras”, onde aparecem sempre inúmeras peripécias rocambolescas e perigosas, personagens intrigantes, corajosas e rudes, e ambiências exóticas e inóspitas. Por outras palavras, há aqui uma opção clara do autor em cativar amplos públicos, em detrimento, se necessário for, de estratégias narrativas mais complexas (e possivelmente mais criativas), mas que poderão provocar maiores dificuldades em termos de acessibilidade. No fundo, a obra de Alberto Vásquez-Figueroa enquadra-se num tipo de produção romanesca, já secular (basta recordar os nomes de Dumas, Verne, Stevenson, Wells ou, nos dias de hoje, de Arturo Pérez-Reverte), e que, por si só, nada tem de desprezível.

 
Contudo, mesmo tendo em conta estes objectivos, O Senhor das Trevas parece um romance equivocado. Será, por exemplo, que ainda se justifica - se a recriação literária não é a preocupação dominante – retomar o mito do Dr. Fausto, como faz este romance, depois de tudo o que a história da literatura já produziu em redor deste tema?
 
A ideia de “arranque” do romance parece revestir, mesmo assim, algumas potencialidades narrativas: desta vez o Mefistófeles procura arrebatar a alma de um médico-investigador espanhol, para a mergulhar, após a sua morte, no martírio eterno do Inferno, com a promessa de, em troca, dar-lhe as pistas necessárias para a descoberta da cura do cancro. De facto, esta “retomada” do mito do Dr. Fausto, ao colocar nos pratos da mesma balança, a tentação diabólica e uma ambição altruísta que trará gigantescos benefícios para a humanidade, intrinca os caminhos do Bem e do Mal, permitindo questionar a configuração habitual destes valores. Além disso, ao considerar que a concessão deste auxílio humanitário apenas será nefasto para a Morte e que, pelo contrário, será benéfico para o Diabo (pois que o carácter prolongado do cancro, e a confrontação constante com a morte, leva muitos pacientes, durante a doença, a tentar resolver os seus diferendos com Deus e a ansiar salvar a sua alma), o autor desloca o registo do Mal para um universo questionável da vontade e da intenção, em que as almas, apenas optariam por abraçar Lucifer em vez de Deus, sem que isso tivesse inevitáveis efeitos malignos na Terra e nos Homens.

 
Porém, a partir desta questionação, todos os sentido se confundem no romance. Será que o objectivo fundamental do Diabo - a conquista de almas para o Inferno – ainda poderá ser entendida como a essência do Mal, em particular distinguindo-se esta do reino da Morte? Não será que para nós, simples mortais, os efeitos mais radicais do Mal estão na panóplia gigantesca das manifestações da Morte que caracteriza o nosso tempo e que leva a própria personagem principal (e até o Diabo) de O Senhor das Trevas a argumentar que a Humanidade vive presentemente um estádio de orfandade de Deus? Será que ainda se justifica reclamar sobre a ausência de Deus? Será que se obtém alguma maior compreensão significativa sobre a natureza do Mal, ao personalizá-la e ao demarcá-la dos seus efeitos terrenos?
 
Saliente-se ainda que O Senhor das Trevas parece sofrer em excesso os defeitos de uma “mão” demasiado condicionada pelo guionismo. Até cerca de metade do romance, os diálogos são ininterruptos (perdendo-se, muitas vezes, a explicar o óbvio e contaminados de uma “literatice” que os torna inverosímeis) e as situações e as personagens caracterizadas por meras pinceladas rápidas e sem preocupação de detalhe. É só nessa altura que, de súbito, e de uma forma muito pouco consistente, aparecem as “aventuras”, aqui situadas na recôndita floresta amazónica do Equador, ganhando então o romance alguma qualidade em termos de descrição e pitoresco. Desequilibrado, revelando fragilidades narrativas e insustentabilidade argumentativa, O Senhor das Trevas é, de facto, uma obra falhada e pouco interessante.

 

Publicado no Público em 2002.

 

 
Título: O Senhor das Trevas
Autor: Alberto Vázquez-Figueroa
Tradutor: Armando Pereira da Silva
Editor: Difel
Ano: 2002
241 págs., esg.

 

 



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

EDITH WHARTON

 
 



A ALTERNATIVA DA FUGA

 
Um dos factos sintomáticos e determinantes da cultura americana foi a “fuga”, desde os finais do século passado até à II Guerra Mundial, de várias gerações de intelectuais e escritores para a Europa. É evidente que a motivação para esta “fuga” nasceu do fascínio pelos “pergaminhos” culturais do Velho Continente por parte desses intelectuais e escritores; mas convém associar a esta motivação a convicção generalizada entre eles de que a América não passava de um deserto inóspito e asfixiante.

 
Porém, deve salientar-se que essa motivação determinou “destinos” distintos de geração para geração: enquanto a partir da geração de um Hemingway e de um Fitzgerald (e até mesmo da sua “mãe literária”, Gertrud Stein), o que esses intelectuais procuravam, ao deslocarem-se para estas bandas, era adquirir uma distanciação que lhes permitisse compreender melhor a realidade americana, o que impeliu escritores de gerações anteriores, como Henry James ou Edith Wharton, a autora de quem foi agora traduzido este A Casa da Alegria, a virem para a Europa, foi o procurarem uma outra ambiência criadora, mais em consonância com os seus gostos estéticos e literários, e daí que a sua “fuga” se tenha convertido em definitivo exílio.
 
Edith Wharton, discípula e amiga de Henry James, pertencia, tal como este, à alta burguesia americana; mas foi em França, onde, por razões de sensibilidade cultural, se exilou, um ano após ter publicado A Casa da Alegria (1905), que realizou uma significativa obra romanesca em que, minuciosamente, analisa os comportamentos da sua originária classe social.

 
Sendo hoje considerada uma autora clássica da literatura americana, a sua obra não teve, contudo, seguidores significativos: os seus parâmetros estéticos e literários, muito influenciados pelos de Henry James, eram, talvez, excessivamente novecentistas para serem compreendidos pelas futuras gerações de romancistas e a sua linguagem estava bem afastada da oralidade que vai determinar, em termos estilísticos, a posterior produção romanesca americana.

 
A Casa da Alegria, um dos seus mais importantes romances, é bem característico de toda a ficção de Edith Wharton: um enredo banalíssimo, de um sentimentalismo quase raiando o patético, mas que uma particular sagacidade de caracterização e observação psicológica, aliada a uma rigorosa, e muitas vezes original, construção romanesca, transforma numa obra notável.

 
Tudo se resume à história de uma jovem em idade casadoira, órfã de uma “boa família” falida, que se vê impelida entre, por um lado, tentar manter, a custo de dívidas e dependências ambíguas, um estatuto de luxo que lhe permita continuar num circuito social que propicie um casamento que lhe resolva os seus problemas financeiros, e, por outro, abandonar tudo isto, abrindo-se a uma relação onde só prevaleça “a palavra que tudo torna claro”.

 
Mas a leitura do romance vai, a pouco e pouco, dando consciência ao leitor de que este enredo não passa de um logro, de um artifício, para transmitir, nas suas entrelinhas, um “excedente”: a convicção de que o confronto, entre um indivíduo desprovido de “poderes” sobre os códigos sociais estabelecidos e a própria sociedade, está condenado ao malogro, desde que seja unicamente conduzido por uma imperativa obstinação; e que só a produção de códigos alternativos, resultantes de premissas distintas, é que pode transformar esse confronto numa afirmação individual. É esta a legibilidade possível dos constantes “pecados”, segundo os códigos sociais então vigentes, em que vai caindo a personagem principal de A Casa da Alegria, Lily Barth, ao tentar, de forma ansiosa, brilhar na alta sociedade nova-iorquina do princípio do século. E é também este o sentido do discurso alternativo, assente numa paixão com a capacidade de despistar os referidos códigos sociais, que lhe contrapõe a única personagem que poderia salvar Lily Barth do ciclo destrutivo em que se encontra.

 
Vemos, portanto, que Edith Wharton não faz mais do que inscrever na sua produção romanesca aquilo que já assinalámos como uma constante cultural americana: a necessidade do indivíduo, para existir na sociedade americana, de fugir, de ”desterritorializar-se” (nem que seja para descobrir na Europa o “oxigénio” necessário para um possível regresso). Por outro lado, ao centrar esta problemática numa figura feminina, percebe-se por que razão a obra desta autora foi encarada como um marco fundamental para a formulação de uma sensibilidade feminina que se procurava libertar das condicionantes de uma sociedade acentuadamente victoriana.
 
Por fim, convém realçar que consideramos corajosa esta edição em português de uma obra de Edith Wharton, uma autora inegavelmente importante, e, contudo, não muito conhecida, nem vocacionada para ter no nosso país uma enorme popularidade. Mas, ao mesmo tempo, parece-nos quase suicida que não se tenha feito um esforço para acompanhar esta edição de uma sucinta apresentação que situe a autora e a sua obra. Além disso, é também lamentável que esta tradução cuidada seja tantas vezes ensombrada por um número exagerado de gralhas.
 
Publicado no Expresso em 1987.

 

 

Título: A Casa da Alegria
Autor: Edith Wharton
Tradutor: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1987
289 págs., esg

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sexta-feira, 16 de outubro de 2015

ANNIE ERNAUX

 
 
 
DAR VOZ
 
Numa recente entrevista, a escritora Annie Ernaux, de quem foi agora publicado no nosso país, em edição conjunta, duas curtas obras, Um Lugar Ao Sol e Uma Mulher, afirmou: “Se escrevo, é para salvar o que já passou, fazer com que exista pela escrita, tentar compreender, explorar o que vivi sem o conhecer.” Talvez esta frase possa parecer, à primeira vista, uma afirmação de circunstância. Mas quem tiver lido os textos agora publicados, ou mesmo qualquer outra obra desta autora, sabe que nela está rigorosamente contida todo o seu projecto literário.
 
Foi em 1974 que Annie Ernaux publicou o seu primeiro romance, Les Armoires Vides, referenciado, de imediato, pela crítica como uma obra consistente e inovadora. Mas é só em 1984, com a sua quarta obra, Um Lugar Ao Sol (cujo título original é La Place, vencedora do prémio Renaudot desse ano), um dos textos agora publicados, que o seu projecto literário assume com precisão os presentes contornos.
 
O aspecto que mais se realça do conjunto da obra desta escritora (que hoje já consta mais de dez títulos) é a sua radical coerência, a sua recusa de, em qualquer circunstância, abandonar o percurso definido (ao ponto de, alguns críticos, um pouco depreciativamente, falarem de um “método” Ernaux de escrita). Essa coerência parte do princípio de que toda a obra literária deve servir para evocar momentos ou figuras do seu passado pessoal que, por razões éticas e de perturbação traumática, deverão ter uma “real e definitiva” existência pela escrita. Por isso mesmo, esses momentos ou figuras do passado aparecem sempre à escritora com uma obcessiva necessidade de serem escritos, já que o seu silenciamento assume, perante a consciência da escritora, as características de um crime. Além disso, a marca traumática desses momentos ou figuras advém-lhes, em grande parte, do seu carácter de inexplicado ou de não-verbalizado, e, por conseguinte, a sua passagem a acto de escrita, contribuí, de certo modo, para os compreender e “resolver”.
 
Repare-se, por exemplo: Um Lugar Ao Sol e Uma Mulher são, respectivamente, a evocação das vidas do pai e da mãe da escritora, elaboradas a partir da sua morte. Gente humilde (o pai iniciou a sua vida como camponês, depois operário e, por fim, dono daquilo que, em genuíno português, se chamaria uma “tasca”; a mãe foi operária e mais tarde merceeira), a passagem das suas vidas a escrito tem, como objectivo essencial, testemunhar a existência dos que não ascenderam ao estatuto de ter “voz”, de ter uma língua própria: há, portanto, para além de uma exigência ética, a necessidade de, com alguma fragilidade, completar, pelo acto de escrita, o “handicap” primordial das suas vidas e de dar “eco” à dimensão de mágoa e sofrimento que este destino de silêncio lhes provoca. Como a própria Annie Ernaux anota no final de Uma Mulher, a morte da sua mãe só se concretiza em definitivo após a redacção do livro que lhe dedicou.
 
Percebe-se, rapidamente, que o que está em jogo na obra de Annie Ernaux arrasta consigo um enorme turbilhão de emoções. Não admira por isso, que a autora, por esse motivo, mas também por razões morais, por respeito por aquilo que narra e, além disso, por necessidade de compreender com objectividade os fundamentos traumáticos do narrado, se sinta impelida a optar por um estilo de “relatório”, onde, na aparência, se abdica de qualquer “efeito” literário. Como afirmou por diversas vezes, a sua obra não pretende “fazer literatura” e a própria Annie Ernaux tem alguma dificuldade em a classificar; segundo ela, situar-se-ia “abaixo da literatura”, entre um estudo de carácter sociopsicológico e a narração memorialista.  
 
Porém, o leitor não se iluda com esta posição anti-literária da autora: sob as exigências éticas que a motivam, há opções estéticas bem claras; e, sob o esforço tirânico da autora em arquitectar um texto “seco e objectivo”, irrompe constantemente a emoção de quem escreve. De facto, em todos os seus textos está bem expresso o intenso (e até tenso) envolvimento da autora no que é escrito, a sua ânsia quase crispada de compreender e perceber a motivação do sucedido e do narrado. Seja a sua vida conjugal (La femme gelée), a relação com um amante casado (Passion simple), a doença de Alzheimer da mãe (Je ne suis pas sortie de ma nuit), a ruptura com a sua origem social humilde (Ce qu’ils disent ou rien) ou um aborto clandestino (L’événement), tudo pode ser objecto de reflexão e análise para Annie Ernaux, ao ponto de se poder afirmar que existe, pelo grau de exposição da sua própria vida, uma atitude de imolação da sua existência através da escrita. 
 
Pela sua radicalidade e exigência, a obra de Annie Ernaux é, inequivocamente, uma das mais importantes e interessantes que nos dias de hoje tem origem nas letras francesas (basta só dizer que a crítica reconhece que a obra de Annie Ernaux dá uma continuidade muito peculiar à obra de três “monstros sagrados” da literatura francesa: Simone de Beauvoir, Jean Genet e Marcel Proust). Por isso mesmo, é doloroso ver a sua obra maltratada como acontece na edição portuguesa. De facto, não só a capa da presente edição revela mau gosto e desadequação ao conteúdo do livro, como a tradução, associada a falhas de revisão, aparece com muitas construções frásicas duvidosas.
 
Publicado no Público em 2007.
 
 
Título: Um Lugar Ao Sol seguido de Uma Mulher
Autor: Annie Ernaux
Tradução: Eduardo Saló
Editor: Livros do Brasil
119 págs., € 7,57   


 

    
 



PETER HANDKE


 
 
 

O Homem Invisível
 
Continuar. Deixar ser. Deixar passar. Representar. Transmitir. Continuar a trabalhar o mais fugidio dos materiais: a tua respiração. Ser o seu artificie.”, Peter Handke em A Tarde de um Escritor.
 
Já li em qualquer lado que a fortuna da obra de Peter Handke é ela ser a mais sintomática de uma época que viu o fim das utopias. E, se tal é certo, pode afirmar-se que o percurso ideológico deste autor é o de alguém que, a seu modo, esgotou os sentidos do discurso utópico até ao despojamento: as duas últimas fases da produção literária de Peter Handke, nas quais se situa A Hora da Sensação Verdadeira, são bem características desta obsessiva preocupação em eliminar o acidental e em silenciar o alarido das convicções excessivas com que o próprio autor viveu a utopia.
 
Um homem deambula por Paris, registando, quase fotograficamente, pequenos gestos das pessoas, objectos, estados do tempo, a luz que enche tudo. Esse homem acordou de manhã, depois de ter sonhado que era um assassino, e percebeu que qualquer coisa, em qualquer lado, tinha cortado as reduzidas pontes que o ligavam aos outros, que o ligavam a si próprio e colocara-o num deserto.
 
A personagem principal de A Hora da Sensação Verdadeira percebe, certo dia, que os outros se revelam como insuportáveis. Mas esta sensação é principalmente resultante de uma “terra gasta”, de um espaço onde é impossível o desejo, porque este desliza de forma demasiado fácil até sempre se esboroar. É este “fascismo do quotidiano” que ele recusa, recolhendo-se: ninguém já nos vê ou, o que é a mesma coisa, toda a gente nos observa esmiuçadamente até uma dolorosa translucidez.
 
Para lá das constantes temáticas das últimas fases da sua obra, que de facto são sintomáticas dos tempos presentes, uma das dimensões mais criativas da obra de Peter Handke está na forma como ele, intrincadamente, relaciona exterior/interior, sendo, neste aspecto, um dos mais notáveis exemplos A Hora da Sensação Verdadeira. Inúmeras personagens de Peter Handke deambulam como Gregor Keuschnig, o adido de imprensa da Embaixada de Áustria em Paris, deste romance. Mas esta “dérive” constante é uma espécie de reflexo físico do delírio psíquico em que as personagens vivem: como se fosse impossível detectar qualquer ponto fixo onde se pudesse ancorar o espírito, como se a devastação sentida se prolongasse na desolação da paisagem. Na obra de nenhum escritor, provavelmente, se conseguiu, de um modo tão contundente, eliminar a fronteira interior/exterior, desvendando a presente platitude existencial. Quando Keuschnig, em A Hora da Sensação Verdadeira, resolve escrever sobre a imagem existente da Áustria em França (e que aqui serve como visão microcósmica da realidade), descreve-a como um décor interior, nu, onde as personagens, sem história, falam como se recitassem um papel aprendido de cor...
 
Mas a perca dos outros é também a perca de si mesmo: o amor torna-se uma mecânica carnal e anónima, uma violação repulsiva, e os outros repudiam a própria ausência de si que a imagem física de Keuschnig revela. E é à beira do suicídio que a existência da personagem principal de A Hora da Sensação Verdadeira se transfigura num “sentido mínimo”: a convicção de que há sempre um real a descobrir, uma emoção que o espera. A obra de Peter Handke afirma-se então como um discurso contra-utópico que é uma forma de utopia: a subsistência só é admissível num sereno desvendamento íntimo do existir.
 
Publicado no Expresso em 1988.

(Foto do Autor de Lillian Birnbaum).
 
Título: A Hora da Sensação Verdadeira
Autor: Peter Handke
Tradutor: Adélia Silva Melo
Editor: Difel
Ano: 1988
137 págs., 10,57 €
 
 


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

JEAN ECHENOZ

 


AS IMAGENS REFLECTIDAS
 
Quando apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz em França, Le Méridien de Greenwich (1979), começava a vislumbrar-se os primeiros sinais de que se tinha iniciado o ocaso de um ciclo literário. De facto, existia uma certa saturação, principalmente entre o leitor comum, por uma produção narrativa que pretendia corresponder a uma exaustiva reflexão teórica sobre a literatura (de origem académica em grande parte, mas não só: quem se recorda ainda da avidez com que se liam revistas como a “Tel Quel” ou a “Change”?) e que, nos domínios da ficção, questionava os modelos clássicos do romance do séc. XIX, levando à desagregação dos seus pilares fundamentais: o narrador omnisciente, a coerência e a verosimilhança das personagens, as unidades de espaço e tempo, a capacidade de efabulação, etc., etc.. Todo este processo de questionamento, no lastro de grandes inovadores formais que foram Proust e Joyce, se tinha iniciado ainda na década de cinquenta, com o chamado “nouveau roman” (Claude Simon, Robbe-Grillet, Sarraute, Ollier, Pinget, Duras da primeira fase, etc.) e, lateralmente, com a publicação sistemática da obra narrativa de Samuel Beckett; isto é, tudo autores de uma frágil, exigente e rigorosa casa editora, “Les Editions de Minuit” (ainda hoje, sem sombra de dúvida, uma das editoras com maior prestígio literário em França), que, desse modo, se tinha tornado a referência paradigmática de uma certa concepção da literatura e, em particular, da narrativa. Ora, foi precisamente nesta editora que apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz e onde se publicaram, de seguida e até aos dias de hoje, as suas restantes obras.
 
Esta circunstância tinha um particular significado literário: é que este romance de Jean Echenoz, e, em especial, o segundo, Cherokee (que obteve o Prix Médicis. isto é, o prémio que, por tradição, galardoava em França a ficção mais experimental), voltava a redimir algumas componentes consideradas como convencionais da narrativa clássica (a última obra referida é - característica que na altura parecia quase escandalosa - um romance policial). De facto, a obra de Jean Echenoz visava (e visa), de um modo equilibrado, integrar, por um lado, a reflexão discursiva de Samuel Beckett em situações de efabulação na aparência tradicionais, e, por outro, conciliar algumas das preocupações formais dos autores habituais de “Les Éditions de Minuit” (um sentido de observação minucioso, uma verosimilhança das situações e das personagens que se sustenta apenas na coerência interna da trama) com uma estratégia romanesca assente na exploração dos géneros narrativos.
 
Tudo isto é já um pouco história da literatura: a prova é que Jean Echenoz ganhou com o seu último romance, Vou-me Embora! (publicado no nosso país ao mesmo tempo que o penúltimo, Um Ano), o anteriormente vilipendiado Prémio Goncourt, que era apontado pelos autores “experimentais” como o instrumento dilecto das grandes editoras para “coroar” as obras novelísticas mais convencionais e comerciais. Nos dias de hoje, este autor, já com nove títulos publicados, é, por consenso, considerado como um sólido romancista, possuidor de uma poderosa carga imaginativa, de um estilo literário versátil e capaz de potencializar as capacidades expressivas da língua francesa.
 
Ambas as obras têm todos os ingredientes dos “livros de aventuras”. Muito em particular, em Vou-me Embora!, onde aparece um assassínio, um roubo, uma viagem a um mundo exótico (ao Ártico), a descoberta de um “tesouro” num barco encalhado nos gelos polares, investigações policiais, síncopes cardíacas, etc., desenrolando-se tudo no universo peculiar dos galeristas e da arte contemporânea. Mas também em Um Ano aparece um morto, fugas pela estrada, tentativas de violação, pessoas desaparecidas, etc. No fundo, parece existir em Jean Echenoz um particular deleite em manipular o leitor, arrastando-o para situações estranhas e a tocar as raias do inverosímil, comprovando deste modo as potencialides quase absolutas da arte de narrar.
 
De facto, a sustentabilidade das obras deste autor parte, por um lado, de aplicar, com alguma ironia, um conjunto diversificado de instrumentos narrativos, e, por outro, de um sentido agudo do pormenor e da descrição. No caso da estrutura mais complexa de Vou-me Embora!, refira-se, por exemplo, o jogo espácio-temporal que, alternando de capítulo para capítulo, encaminha a trama para desfechos imprevisíveis; ou o aparecimento subtil de vários sujeitos narrativos, criando cumplicidades específicas com o leitor em cada momento da acção; ou ainda a visibilidade que, em certas alturas, o autor transmite ao narrador, permitindo-lhe comentar as situações ou as características comportamentais das personagens.
 
Existem nestas duas obras, com acções e universos bem distintos, uma ambiência que lhes transmite, no entanto, alguma unidade. Essa unidade parece resultar da errância destas personagens e das componentes fantasmagóricas (particularmente visíveis em Um Ano, onde a personagem principal se vê perseguida por figuras que aparecem e desaparecem de um modo quase inexplicável, nunca se sabendo se existem de facto ou se são meras criações de uma mente perturbada pelo medo) que as envolvem. De certo modo, as personagens dos romances de Echenoz, sujeitas às intempéries do destino, aceitando-as com a resignação do inevitável, são seres com a fragilidade de imagens reflectidas que a todo o momento podem desaparecer do espelho da consciência em que o leitor se sente difusamente retratado.
 
Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: Vou-me Embora!
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
179 págs., € 10,58
 
 
Título: Um Ano
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
97 págs.,   esg.
 
 



terça-feira, 13 de outubro de 2015

HERMANN HESSE


 
 
 
 

UMA OUTRA ORDEM
 
Uma das evidências da biografia de Hermann Hesse é o carácter dilacerante que sempre teve nele a mudança dos tempos e o devir; e, talvez por isso mesmo, poucas obras da literatura contemporânea conseguiram, como a deste autor, desvendar os sinais do tempo, sintonizar com as questões essenciais que eles levantam, obtendo, assim, a tão falada dimensão visionária e profética. As obras fundamentais de Hermann Hesse (Peter Camezind, Demian, Siddharta, O Lobo das Estepes e O Jogo das Contas de Vidro) são, por isso, verdadeiros pontos de rotação num percurso que, afinal, revela uma extraordinária coerência. E, no entanto, toda a sua obra remete para uma concepção artística que não faz a mais pequena cedência a um intimismo imediato; pelo contrário, ele procura, em cada romance, definir um universo autónomo, em que as situações, e, em particular, as personagens, sejam elaboradas corporizações das inquietações do autor e da época.
 
As constantes desta obra revelam-se com uma linearidade assombrosa nessa “suma” de uma reflexão e de uma potencialidade criativa crescente que é O Jogo das Contas de Vidro. Aí encontramos a rejeição de uma civilização dominada por princípios materiais e técnicos e pela mediocridade burguesa, o louvor de uma espiritualidade que é apanágio de uma elite intelectual (que, por isso mesmo, se torna o bastião de um inadiável e alternativo percurso civilizacional), a exaltação de um posicionamento contemplativo face ao aparente racionalismo ideológico e activista e, por último, a defesa do individualismo perante os colectivismos massificadores e descaracterizantes. Por tudo isto, esta obra, que não tem entre nós a popularidade de O Lobo das Estepes ou de Siddharta, tem sido considerada como uma das obras essenciais da literatura contemporânea europeia, ao nível, e sem sair do mesmo espaço linguístico, de O Doutor Fausto de Thomas Mann, de O Homem Sem Qualidades de Robert Musil ou de Morte de Virgílio de Hermann Broch.
 
O Jogo Das Contas de Vidro é a descrição de uma Ordem que forma, desde a mais tenra idade, um escol de intelectuais, dedicando-se aos mais variados domínios científicos e artísticos, em total independência económica, e vivendo à margem da sociedade (note-se que a formação desta elite nada tem a ver com a actividade escolar e académica que visa preparar quadros técnicos e intelectuais para a restante sociedade), e que, através do estudo e da contemplação, procura, sem preocupações de aplicação prática, aprofundar os conhecimentos humanos. Cada área de conhecimento tem, em Castália (o lugar abstracto onde se situa a Ordem), as suas escolas e arquivos, assim como o seu Director de Estudos ou Magister. Mas a área mais caracterizante do espírito da Ordem é a do Jogo das Contas de Vidro, um jogo que é, ao mesmo tempo, uma arte e um método e que, através da contemplação, pretende estabelecer uma imagem da “harmonia mundi”, contemporizando e justapondo o maior número possível de saberes. Para a exposição da organização e da história da Ordem, Hermann Hesse resolveu, por estratégia, narrar a vida de um Mestre do Jogo das Contas de Vidro, Josef Knechet.
 
A questão imediata, que esta obra levanta, refere-se à situação temporal desta utopia. De facto, esta utopia não se situa nem no futuro nem num passado desconhecido, mas num “presente oculto” (à margem?) e num “espaço insituável” (na Alemanha?). Os dados para esta definição temporal estão principalmente na Introdução, onde Hermann Hesse estabelece uma espécie de genealogia da Ordem (é bem curiosa a caracterização da “Idade do Folhetim”, isto é, a era histórica anterior à fundação de Castália), nas referências aos grandes vultos da história da cultura, em particular da música (as mais recentes são as dos Grandes Românticos), e a presença de certas inovações técnicas (a rádio, o telégrafo, etc.).Mas, por outro lado, despista-se esta cronologia com elementos medievalizantes (o tempo da duração das viagens, a ambiência dominantemente rural, a concepção da organização da Ordem segundo o modelo das corporações, etc.). Ora, este jogo dialético, entre a História como Presente e o Presente como História, é importante porque revela o essencial da técnica com que Hemann Hesse constitui a “realidade” deste romance.
 
Através dos confrontos, que o “Magister Ludi” Josef Knechet se vê obrigado a efectuar em defesa de Castália, vão aparecendo as questões que Hermann Hesse considerava determinantes no processo civilizacional: a necessária autonomia da vida espiritual em relação a religiosidade, mantendo, no entanto, esta um constante papel vivificador dos valores éticos e metafísicos; a integração dos princípios do pensamento oriental no do Ocidente (e saliente-se que a própria obra de Hermann Hesse é provavelmente uma das que consegue uma mais perfeita e elevada fusão destes pensamentos); a adequação entre ordem e hierarquia e poder criador; as relações árduas entre espiritualidade e vida material. Note-se que este último conjunto de questões é que vai levar Josef Knechet a compreender que a sua Castália não é um paradigma inalterável mas um projecto em mutação, necessariamente contingente e transformável em consequência da intervenção vital do “século”. Daí que esta utopia de Hermann Hesse esteja em permanente evolução, ao contrário das utopias tradicionais que são estáticas, levando Ernest Bloch a situá-la como um exemplo determinante das “utopias modernas históricas”.
 
Perante um livro tão difícil e denso, e que levanta uma problemática na aparência distante, talvez o leitor actual se sinta desmotivado. Mas, se tal acontece, só se pode lamentar, porque é não só um dos livros mais empolgantes ultimamente publicados, nem que seja pela beleza estilística com que o autor pondera algumas questões que têm cada vez maior acuidade, como pela soberba (e árdua) tradução de Carlos Leite.
 
Publicado no Expresso em 1989.
 
 
Título: O Jogo das Contas de Vidro
Autor: Hermann Hesse
Tradutor: Carlos Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
445 págs., 21,90 €