segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

D. H. LAWRENCE 1

 
 
 
 

A Natureza e o Poder
 
Um dos aspectos fundamentais da actividade artística é o seu carácter de síncrese, isto é, de reprodução de diversas componentes que, mantendo uma situação conflitual na obra, são, também, por si, reprodutoras.
 
Uma dessas componentes (que só teoricamente podemos tentar demarcar em consequência da referida relação conflitual) é a inevitável componente ideológica. Tão inevitável e tão importante que é muitas vezes ela, com a intrincada componente estética, que maior peso tem na caracterização da constante modernidade de uma obra.
 
A publicação de um livro de contos de D. H. Lawrence, Amor No Feno e Outros Contos, permite-nos realçar essa componente na obra deste autor, não só porque os textos agora publicados são neste aspecto bem esclarecedores (para lá de serem dos mais admiráveis que lhe conhecemos, em particular esses dois fabulosos textos que concluem o presente livro: “O Homem Que Amava Ilhas” e “O Homem Que Morreu”), como por consideramos que certas linhas da sua reflexão podem ser revisitadas em termos conceptuais e revelarem-se muito interessantes nos dias de hoje.
 
D. H. Lawrence é um dos pontos de passagem dessa corrente mais subterrânea do pensamento ocidental que sistematicamente prevalece o individual contra o social, o afectivo e a sua racionalidade contra a racionalidade da razão, a natureza contra o institucional/civilizacional, a ânsia de nomadismo e fuga contra a ambição de território e poder.
 
Mas na produção literária deste autor nunca tal reflexão procurou estabelecer-se como um sistema ou construir-se numa ética, pretendendo mais ser possuída por uma visão cósmica do que ser uma cosmovisão. Para isso, D. H. Lawrence coloca-se numa atitude limite (e mítica) de captação da afirmação “natural” da vida ou, se se quiser, da afirmação do Ser na Natureza.
 
A Natureza
 
Neste sentido, para este autor, o Homem só “vive” se conseguir afirmar em si a Natureza que nele existe. Mas esta só se afirmará se se atingir uma sintonia perfeita entre Ser e Natureza.
 
Ora tal sintonia só é total no acto de amor. Só com ele se regressa a esse Paraíso perdido. Porque o Homem sofreu um corte original que afastou os seus complementos (homem/mulher) e fez aparecer um outro continente compensatório constituído pela Sociedade/Razão. O social/racional é a Terra para onde o Homem, fragmentado, foi “desterrado”.
 
Logo, para D. H. Lawrence, esse continente compensatório só deve ser encarado como um lugar de passagem que facilite o “regresso” ao acto de amor. Encarado sem esse objectivo, como um valor em si, leva ao estiolamento da afirmação da Natureza, sendo, por isso, mortal.
 
A Natureza é, portanto, a vida (“como um cão molhado enroscado na sua depressão, ou uma cobra que não está desperta nem a dormir”). E é, por isso, atemporal: isto é, está contida nela o tempo, vivendo aquela da morte que este produz (“um mundo escuro infinito em que viviam as almas todas de todas as noites passadas”). Parte desta consciência o verdadeiro sentido e dimensão do (nosso) viver: sermos um grão de areia face a infinitude da Natureza, estando, ao mesmo tempo, em nós toda a vida, porque única.
 
Mas tal consciência só se tem em lugares privilegiados, onde a interferência do social e do civilizacional seja mínima, como, no, exemplo do conto “O Homem Que Amava Ilhas”, uma ilha deserta:”(...) quando nos isolamos numa ilha pequena no mar do espaço e o momento começa a inchar e a expandir-se em grandes círculos, vai-se a terra sólida e a nossa alma escura, nua, escorregadia, acha-se no mundo intemporal, onde os carros da chamada morte se precipitam pelas velhas ruas dos séculos e as almas se apinham nos caminhos a que nós, no momento, chamamos anos passados. As almas dos mortos estão vivas, de novo, e pulsam activamente em redor de nós. Estamos perdidos no outro infinito.”
 
A cidade, o lugar das “polainas brancas”, da paisagem concentrada do civilizacional e do institucional, transmite, pelo contrário, um sentimento de competição, uma ânsia de poder e uma rede de “obrigação” que fazem com que o temor da morte torne opaca a nossa “alma” à presença da Natureza e à infinitude do tempo.
 
Pode-se, por isso, vincando os traços, dizer que, para D. H. Lawrence, o Homem não passa de uma “concha” que se alimenta da energia vinda do sol, das árvores, da terra, sinais de uma “fala” da Natureza onde a “voz” principal é, como vimos, o amor (a lenta ressurreição da personagem principal do conto “O Homem Que Morreu” caracteriza bem a importância vital destes elementos). Mas também pode tornar-se uma “concha” oca, espécie de cadáver móbil, se, por razões caracteriais ou institucionais, se “ensurdecer” a essas “vozes” (é o caso de Robert do conto “A Senhora Formosa”, cujo comportamento tímido e fraco não é mais do que as “sobras” resultantes da voracidade da mãe e, indirectamente, da instituição familiar).
 
A presença do institucional e da sua dimensão diacrónica, o civilizacional, podem tornar-se, portanto, perniciosas para a revelação do amor. Porque se o carácter fusional do amor não permite que se reconheça a independência dos seus complementos, a imposição de relações de dependência e de poder, por parte do institucional, só institui a morte.
 
O amor é assim fundamental como reafirmação da Natureza, da vida perante a morte. E a energia, que ele transmite, transforma-nos numa bandeira contra a relatividade desse continente compensatório do social/racional, do institucional/civilizacional, conscientes que ficamos da possibilidade de dele nos libertarmos.
 
No entanto, se é este o posicionamento do social e do institucional na reflexão de D. H. Lawrence, não se pode dizer que ele seja puramente anti-social: as situações demissionárias face ao social são acusadas de fraqueza, de impotência, de cobardia (repare-se, por exemplo, na caracterização do marido de Lydia no conto “O Amor No Feno”), e também, a seu modo, consideradas como uma dissolução mortal na Natureza.
 
Portanto, a presença do social é necessária como uma vertente fundamental para o equilíbrio do Homem, como uma espécie de “vida menor” (para aplicar os termos da reflexão da personagem principal de “O Homem Que Morreu”), fornecedora dos elementos básicos materiais, alimentares e sexuais, e quadro limite onde decorre a existência da maioria dos homens. É esta que serve de sustentáculo da “vida maior”, somente alcançada por aqueles que tomaram consciência do lugar do Ser na Natureza.
 
O Poder
 
Para D. H. Lawrence, o amor define-se numa permuta em pé de igualdade. A existência de qualquer desequilíbrio nessa relação de dar/receber cria uma hierarquia nefasta, originadora de excessos fatais.
 
Dar mais do que receber é assumir um lugar de sacrifício, cristão, produto de um puro acto de vontade, descarnado. Daí que haja em D. H. Lawrence uma clara rejeição de qualquer atitude de militância ou missão social. Um dos fios condutores do belíssimo conto “O Homem Que Morreu” é este mesmo: a lenta libertação pela morte de um homem que, embrenhado numa missão de salvação, só tinha chamado a si a traição, fazendo com que os outros amassem como cadáveres o seu cadáver: “De repente, percebeu: pedi a todos que me servissem com o cadáver do seu amor. E, no fim, ofereci-lhes apenas o cadáver do meu amor. Este é o meu corpo - tomai e comei - o meu corpo morto…(…)”Afinal”, pensou, “quis que eles amassem com os corpos mortos. Se eu tivesse beijado Judas com amor vivo, talvez ele nunca me tivesse beijado com a morte. Talvez ele me amasse na carne e eu quis que me amasse desprezando a carne, com o cadáver do amor...
 
Receber mais do que dar é ocupar um lugar de poder, que possibilita “alimentar-se” com a vida dos outros: mas também esse “alimento” se revelará “terrestre”, ilusório, conduzindo a um inevitável envenenamento de quem o recebe (é este um dos sentidos do conto “A Senhora Formosa” e também o traço fundamental na caracterização de Madalena de “O Homem que Morreu”: “A nuvem da necessidade estava nela: de ser salva da velha Eva caprichosa, que abraçara tantos homens e recebera mais do que dera. Agora, abatera-se sobre ela a outra perdição. Queria dar sem receber. E também isso é duro e cruel para o corpo quente.”)
 
É com base nesta reflexão sobre o carácter pernicioso de um desequilíbrio no amor que D. H. Lawrence, principalmente no conto “O Homem Que Amava Ilhas”, procura caracterizar o desejo de poder face à Natureza e aos outros e o comportamento que ele determina.
 
Porque o pensamento de poder pretende-se, antes do mais, amoroso: ama o que procura dominar e por amor o domina. Só que este “amor” é consequência de uma fraqueza caracterial, em que se anseia mais por se ser reconhecido do que em (re)conhecer: o poder busca sempre no rosto dos outros o resultado da sua acção e, por fim, a sua própria imagem. É esta a razão por que o desejo de poder cria a necessidade de um território, isto é, de lugares e de outros como lugares a habitar (ou, como diz D. H. Lawrence, “para podermos ter a sensação de que esta cheia da nossa personalidade”).
 
Pode dizer-se, por isso, que este “amor” é narcísico, já que, partindo de um lugar de dominação, se torna um “amor” de posse que procura corporizar nele o outro.
 
Por outro lado, o poder pretende afirmar-se numa praxis de perfeição que dome a Natureza a uma imagem de Paraíso. Mas, como imagem reflexa de uma subjectividade, o resultado é a tentativa de reordenamento da Natureza segundo a vontade de um Senhor inconsciente da infinitude dela.
 
Assim, o poder é dominado por uma vontade utópica, por uma vertigem totalitária: a construção de um Paraíso. E o objectivo dessa construção é o reconhecimento por parte da Natureza e dos outros de que esse construtor é o Senhor, não o Senhor A ou B, isto é alguém que necessite de uma nomeação circunstanciada (“Ele era o Senhor. (...) Assim, o ilhéu já não era o Sr. Tal-e-Tal”). O Senhor passa a ser a personificação da Criação (“o poeta”) e da Ordem que aquela instaura: como tal é “a fonte da sabedoria sobre tudo”.
 
Por isso, é também o lugar do Pai: o Senhor nunca pertence à nossa condição, descendo somente a ela, complacente e terno, como o criador se debruça sobre aquilo que cria. Mas essa condição de excepção é também motivo da sua fragilidade, fazendo dele um eterno solitário: é-lhe impossível amar os homens e a Natureza como homem, isto é, como ser criado. Os outros encaram-no então com ironia, conscientes da desmesura e da insensatez do seu projecto.
 
A dessintonia com a Natureza e a inconsciência da sua infinitude criaram assim no poder a necessidade de lhe impor um modelo. Mas a Natureza irá rebelar-se contra essa pretensão, destruindo-lhe o querer, quebrando a sua vontade e absorvendo-o. E os homens, a quem o poder bondosamente oferecia o Paraíso, vão revoltar-se também contra ele: ninguém cabe no lugar que outro criou para ele.
 
Nasce também aqui, para D. H. Lawrence, a sociabilidade: do conflito entre os desejos de Paraíso que cada um traz dentro de si. E a história da civilização é a narrativa do sistemático desequilíbrio produzido por esse conflito.
 
São estas, em linhas muito genéricas, algumas das pontas da reflexão de D. H. Lawrence que atravessa os textos de Amor No Feno e Outros Contos. Mas, como já referimos, a sua própria construção narrativa é tecida por uma malha de situações, metáforas e símbolos que têm um valor conceptual especifico, difícil de autonomizar do seu contexto como um eventual sistema. E é dessa tessitura cerrada e elíptica que brota a intensidade poética e o fascínio mágico que a elas nos prendem.
                                                                                         
Publicado no JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1982.
 
 
Título: Amor No Feno e Outros Contos
Autor. D. H. Lawrence
Tradutor: Maria Teresa Guerreiro
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 1982
220 págs., € 9,45
 


ÁLVARO MUTIS 1

 
 
 
 

O HERÓI IMPOSSÍVEL
 
 A pouco e pouco, sem atingir a ribalta das grandes tiragens, vão sendo traduzidos e publicados no nosso país os fragmentos da peregrinação por terras deste mundo dessa personagem, única na literatura contemporânea, que dá pelo nome de Maqroll o Gajeiro. Para quem não saiba, esta personagem é o “rosto duplo” de Álvaro Mutis, um escritor colombiano de setenta e cinco anos que já ganhou quase todos os prémios literários importantes de língua espanhola, e a figura central de um dos projectos mais peculiares da actualidade literária.
 
Há cerca de quarenta anos, apareceu pela primeira vez o nome de Maqroll num poema de um autor desconhecido, funcionário de uma companhia de aviação e obcecado viajante. Era o segundo poema publicado por Álvaro Mutis e a partir desse momento, não mais editou texto algum, de cariz poético ou narrativo, em que a figura de Maqroll não pairasse: construiu assim uma máscara impossível de descolar, um “quase heterónimo. Saliente-se ainda que esta figura, durante décadas, foi simplesmente o elo de ligação de um amplo ciclo poético; só no início dos anos oitenta, quando Álvaro Mutis resolveu afrontar a narrativa, esta personagem transitou para o universo romanesco, tornando-se então, de uma forma mais explícita, a presente figura errante, sofrendo mais do que vivendo, aventuras pelos quatro cantos do mundo.
 
Referi acima que Maqroll o Gajeiro era um “quase” heterónimo de Álvaro Mutis. É certo que o autor foi delineando, fragmentariamente, o percurso, os afectos e as “atribulações” desta personagem, forjando, para isso, documentos, testemunhos, polémicas sobre os seus indícios e presenças com outros literatos e aventureiros pelo autor também inventados (e que, a seu modo, são também semi-heterónimos). Porém, Maqroll nunca chegou ao ponto de substituir o autor: Álvaro Mutis sempre se assumiu como o cronista silencioso da sua personagem. Por outro lado, - e convém esclarecer isto quando se escreve a palavra heterónimo na terra de Fernando Pessoa - a genealogia desta heteronomia nada tem a ver com o nosso poeta: ela deriva da obra de Valery Larbaud e das obras completas de A. O. Barnabooth.
 
Ainda quanto a genealogias, deve-se também referir que a simples abertura de qualquer novela de Álvaro Mutis (como, por exemplo, esta Un Bel Morir, agora publicada pela Dom Quixote, numa excelente tradução de Maria do Carmo Abreu) revela com nitidez os antepassados de Maqroll: estão todos na obra de Joseph Conrad. Diga-se de passagem que Álvaro Mutis, ao contrário do que é comum, sempre se orgulhou das suas “influências” e dos autores cuja leitura contribuiu para delimitar com nitidez o seu “território” literário; esses autores chamam-se Marcel Proust, Joseph Conrad e André Malraux. É a partir deles que Álvaro Mutis recria o seu estilo, o tratamento nuanceado e subtil da sua personagem, a ambiência das aventuras, o “tipo” de heroicidade trágica de Maqroll. Estamos, portanto, longe do “realismo mágico” que o seu conterrâneo Gabriel García Marquez universalizou e que Álvaro Mutis respeita (a cumplicidade dos dois autores vai ao ponto de García Marquez afirmar publicamente que Mutis é o seu “primeiro leitor”) sem, contudo, perfilhar.
 
Na personagem “conradiana” de Maqroll também quase nada existe das tragédias éticas que envolvem os antepassados criados pelo escritor-marinheiro polaco de nacionalidade inglesa. O pouco que existe deriva do facto de o “coração das trevas” se ter expandido para todo o planeta, obrigando Maqroll a encarar a sua vida como uma errância nostálgica em busca de um mundo já volvido. O seu olhar sobre este mundo só consegue ver uma paisagem tingida de cores elegíacas, onde o amor ou a grandeza de um espírito se transfiguram sempre em ambições funestas e em ilusões que realçam a precaridade de um destino gratuito. A morte, desdobrada até ao infinito na mediocridade dos dias e nos enredos do negócio, paira como uma nuvem cinzenta sobre a luz fugaz das paixões e dos amores que ainda impelem Maqroll a viver os dias, sobre a cumplicidade acolhedora das amizades que desaparecem, sobre a beleza das paisagens prestes a ser consumidas pela poluição e pela voracidade humana: a única heroicidade possível está no esforço de manter incólume a esperança de acreditar.
 
Exemplar do desespero desta personagem é o fragmento da sua vida que Álvaro Mutis intitulou de Un Bel Morir. Glosando com ironia um verso de Petrarca (“Un bel morir tutta una vita onora”), a novela narra o possível fim de Maqroll: perdido no porto fluvial de um qualquer país miserável sul-americano, Maqroll vai viver a sua última história de amor (intensa, fugaz e funesta como todas as outras que consegue relembrar através dos inconfundíveis contornos da sua amada) e a sua última aventura. E essa aventura é um logro em que a sua “esperança de acreditar” mais uma vez caiu: contratado para uma tarefa de caravaneiro, vê-se envolvido na teia que uns contrabandistas de armas lhe criam, perseguido pelo exército e por aqueles que o contrataram e deixando um rasto de morte entre quem lhe é querido.
 
A amargura da obra de Álvaro Mutis nada nos ensina porque tudo ensina. A verdade desta obra - que se assume como eminentemente literária, recusando qualquer compromisso com um “social” referenciável - é que, na sua aparência de história de aventuras, se transfigura num grito lancinante de dor por um mundo derrotado.  
 
 Publicado no Público em 1998.
                                                                                             
Título: Un Bel Morir
Autor: Álvaro Mutis
Tradução: Maria do Carmo Abreu
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
133 págs., € 14,13
 
 


HERMANN UNGAR

 
 
 
UNGAR, O ESQUECIDO
 
O meio editorial europeu, há quatro ou cinco anos, começou a reeditar um escritor em língua alemã, cujas obras nunca mais vieram a público desde que morrera em 1929. E, um pouco por todo o lado, a crítica literária ficou tão impressionada com a sua importância que o referenciou como sendo um Kafka esquecido. Esse autor era Hermann Ungar.
 
Era fácil a comparação, visto que este escritor era um judeu checo, contemporâneo de Kafka e com uma temática onde era possível estabelecer correlações com a obra deste. Sucede, porém, como refere a breve nota que acompanha esta edição de Meninos e Assassinos, Hermann Ungar morrera ainda novo e no preciso momento em que tinha decidido dedicar-se em exclusivo à literatura, tendo, por isso, publicado poucas obras: algum teatro (que viu ainda encenado), dois romances e duas colectâneas de novelas. Este rápido percurso literário, mesmo que assinalado por algumas personalidades (Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertolt Brecht), deu origem a um total esquecimento.
 
A produção literária deste autor é facilmente enquadrável na tendência do expressionismo alemão que se dedicava a analisar as “almas perversas e doentias”, de forma a compreender, pelas motivações desses comportamentos extremos, os meandros do psiquismo humano. As duas novelas, que compõem Meninos e Assassinos, são um bom exemplo disto, pois evidenciam o seu carácter expressionista, não só pela utilização dos efeitos estilísticos habituais, mas também pelos seus contextos ambientais (privilegiando-se, como sempre, os cenários lúgubres).
 
Uma outra característica de época, que esta obra apresenta, é a que está subjacente ao próprio título da colectânea: a pretensão de situar na infância a motivação fulcral do comportamento de uma personalidade. De facto, as personagens centrais destas duas novelas foram “meninos” que se tornaram assassinos, o que quer dizer que a explicação do seu comportamento criminal se encontra por inteiro na forma como se processou a sua meninice. Note-se que o título Meninos e Assassinos é não só notável pela sua capacidade sintética de definição programática, mas, em particular, pelo efeito expressionista dado à copulativa, decorrente da utilização de dois termos de significação acentuadamente contrastante (nesse sentido, a capa de Carlos Ferreiro, ao reforçar o grafismo da copulativa, pareceu-nos bem acertada e eficaz).
 
Mas o aspecto mais relevante e original destas duas novelas (como da restante obra de Hermann Ungar) é centralizarem-se nas relações de poder e no modo como estas podem ser agudizadas pela insatisfação do desejo.
 
De facto, as personagens centrais das duas novelas encaram as relações entre as pessoas como assentes numa lógica de poder, hierarquizando-as em carrascos e vítimas: os seus crimes são apenas a sua conclusão extrema (e incongruente). No entanto, a crueza desta visão da sociedade é em grande parte resultante de não terem assimilado, enquanto “meninos”, mecanismos afectivos que a atenuasse (a infância destas personagens é feita sob o signo do ódio ou da indiferença). Por isso, segundo Hermann Ungar, a “perversão” não está no seu comportamento, mas nas condições de formação das pessoas e na lógica social.
 
Assim, o drama essencial das duas personagens, que se sentem na base da hierarquia que a sua própria visão da sociedade estabelece, é o de serem incapazes de gerir a humilhação que desta situação resulta. Por exemplo, a personagem principal de “História de um Assassinato”, fisicamente débil e humilhado pela tibieza moral do seu pai, projecta todo o seu ódio sobre os “doentes e deformados” seus semelhantes (mas que conseguem, pela argúcia e pela perfídia, compensar a sua incapacidade física, dominando os “normais” moralmente fragilizados como o seu pai) e satisfaz “in extremis” a sua necessidade de poder, torturando e matando os gatos vadios que encontra. E quando tem possibilidades de se libertar da humilhação que o comportamento do seu pai lhe provoca, matando-o, ou de afirmar a sua necessidade de poder, liquidando um recém-nascido indefeso, decide, quase por instinto, assassinar a figura que corporiza a “normalidade” (o verdadeiro fulcro da sua humilhação) e que, ainda por cima, do alto da sua superioridade, pretende ser bondoso e “compreender” a sua impotência.
 
Em paralelo, a personagem central de “Um Homem e uma Criada” também não consegue gerir a humilhação que lhe origina a recusa da satisfação do seu desejo por parte de uma criada imbecilizada e apática (tanto mais que a sua formação não lhe deu o contraponto afectivo que lhe permita perceber e orientar essa força). Por isso, vai canalizar esse desejo para a concretização de um percurso económico que lhe possibilite a “compra” do ente desejado, o seu aviltamento e prostituição, e, mais tarde, a reprodução no filho deste, das condições deformantes em que tinha sido criado.
 
Confesso que não vejo interesse (a não ser, talvez, comercial) em afirmar que este autor é outro Franz Kafka. Porque existe na obra de Hermann Ungar um caracter radicalmente subversivo, resultante da forma como perspectiva a realidade a partir do universo sem saída dos “perdedores” de todas as vidas, que lhe dá um estatuto inconfundível dentro da literatura mundial.
 
A Natureza resolveu dar uma coerência particular à obra de Ungar, o esquecido, dando-lhe um destino solidário com o das suas personagens. Mas é contra ela que trabalha a memória dos homens: poucas recuperações literárias dos últimos anos tiveram tanta pertinência como esta.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: Meninos e Assassinos
Autor: Hermann Ungar
Tradução: Célia Henriques e Vítor Silva Tavares
Editora: & etc
Ano: 1990
99 págs., € 7,50 €
 




quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

JOSEPH MITCHELL


 
 
 
 
O ESCRITOR VAGABUNDO
 
As crónicas de Joseph Mitchell, publicadas na conhecida revista “The New Yorker”, são consideradas, desde que apareceram, como um modelo exemplar de jornalismo e tornaram-se significativamente influentes na imprensa escrita americana. Mas a reedição, já na década de noventa, de alguns dos seus livros, como é o caso deste O Segredo de Joe Gould, agora (muito bem) traduzido para português, veio revelar que Joseph Mitchell escreveu, além disso, verdadeiros clássicos da literatura contemporânea. E este facto volta a colocar, pela positiva, a questão, que poderá parecer ultrapassada para alguns, da pregnância entre jornalismo (em particular, nos casos da crónica e da reportagem, onde os imperativos informativos podem ser mais atenuados) e literatura.
 
Joseph Mitchell nasceu na Carolina do Norte, nas planícies do algodão e do tabaco, no final da primeira década do séc. XX e, ainda não tinha concluido os estudos universitários, quando decidiu dedicar-se ao jornalismo. Descoberto por um editor de imprensa de Nova Iorque, veio, com pouco mais de vinte anos, trabalhar para esta cidade, apaixonando-se de imediato pelos seus espaços e pela sua heteróclita população. Mas é só, em 1938, quando entra para os quadros da “The New Yorker” (e onde trabalhou até à sua morte, em 1996) que Joseph Mitchell granjeou uma notoriedade nacional como cronista e repórter. O seu olhar de “sulista” leva-o a encarar o cosmopolitismo novaiorquino de uma forma, ao mesmo tempo, distanciada e generosa, fazendo com que recrie, nas páginas das suas crónicas, num estilo cuidado e elegante e em moldes humorados e enternecidos, o ambiente peculiar de praças e ruas, de bares e restaurantes de Manhattan, onde se cruzam artistas, jornalistas e escritores, mais ou menos famosos e prestigiados, com a gente humilde de empregados, pequenos comerciantes, vagabundos e criminosos.
 
Joe Gould, a personagem central destas duas crónicas integradas na obra agora editada, escritas com um intervalo de vinte anos, é um vagabundo que vive nas ruas de Manhattan, em particular em Greenwich Village. Formado em Harvard, descendente de uma velha família de Massachusetts, abandonou as hipóteses de uma vida bem estabelecida para se dedicar em exclusivo à elaboração de uma obra interminável, que intitula “História Oral do Nosso Tempo”, sobrevivendo com as ajudas ocasionais da população típica daquele bairro novaiorquino. Essa obra, cujo infinito manuscrito Joe Gould afirma que se encontra disperso por diversas casas de amigos, regista todo o tipo de conversas que ele ouve nas ruas, bares e metro de Nova York, associando-as a comentários, reflexões, derivações múltiplas, numa cadeia discursiva ininterrupta que mais parece um “rasto” físico da passagem do tempo. A personagem (manhosa e ingénua, exibicionista e tímida, ambiciosa e humilde) torna-se num enigma que suscita a curiosidade e a generosidade, a irritação e a ironia, de quem o vem a conhecer (entre outros, de Ezra Pound, e. e. cummings e William Saroyan). Na perseguição desta personagem e do mistério que a envolve, Joseph Mitchell elabora, de uma forma despretensiosa, um vivo fresco do meio intelectual e boémio de Nova Iorque, tornando O Segredo de Joe Gould numa obra particularmente interessante sobre o “pulsar” desta cidade no período compreendido entre os anos trinta e sessenta.
 
Mas o que dá uma auréola literária fascinante a esta obra de Joseph Mitchell é a forma como o autor consegue transfigurar a personagem de Joe Gould numa espécie de arquétipo da própria condição do escritor. De facto, a figura de um homem que renuncia a tudo, entregando-se à redacção da sua obra e só aceitando da existência o que, directa ou indirectamente, contribui para a sua tarefa “essencial” – transformando o corpo físico do autor numa espécie de medium necessário para que a obra se escreva -, é a imagem que os escritores, na linha de uma certa tradição romântica, fazem do seu papel e estatuto. Se, além disso, essa figura se coloca, de forma deliberada, numa atitude marginal à sociedade para, de um modo obsessivo, sobre ela se debruçar, registando-a e codificando-a, pode afirmar-se que essa figura, como é o caso da personagem Joe Gould, assume, “in extremis”, o projecto existencial que qualquer autor imagina para si - mas nunca terá, já que irá imperar o bom senso de reconhecer que essa postura será autodestrutiva. Por fim, o próprio “segredo” de Joe Gould reforça este sentido até à caricatura, pois parece sempre – para quem escreve – que a obra se devora a si própria, na infinitude dos registos possíveis de um tempo, reduzindo o corpo físico do autor a uma “pose” e a um aberrante desperdício de vida. Mas haverá outra solução possível?
 
Ora, é nesta capacidade estilística de transfigurar um acto de informação num texto com a capacidade de reproduzir sentidos (como num jogo de “matrioskas”) que poderá estar uma das fronteiras mais significativas entre jornalismo e literatura. E, nesse aspecto, O Segredo de Joe Gould de Joseph Mitchell é absolutamente esclarecedor e exemplar.
 
Publicado no Público em 2001.
 
 
Título: O Segredo de Joe Gould
Autor: Joseph Mitchell
Tradutor: José Lima
Prefácio: António Lobo Antunes
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2001
142 págs., esg.
 
 



FRIEDRICH DÜRRENMATT 2

 
 
 
Um Escher romanesco
 
Não há dúvida que um crime impune é mais intrigante do que aquele em que o culpado recebeu as consequentes tramitações legais. A impunidade de um crime provoca sempre uma desordem que expõe, como num fruto aberto, as insuficiências da justiça e da moral.
 
É sobre um crime “ilibado” que Friedrich Dürrenmatt (n. 1921), um dos mais importantes escritores e dramaturgos suíços de expressão alemã, escreveu este último romance, utilizando, tal como nas obras que publicou a partir dos anos cinquenta (O juiz e o seu carrasco, A suspeita, A promessa, etc.), um enredo policial. Genericamente, pode afirmar-se que toda a sua produção romanesca, sempre marcada por uma aguçada ironia e por uma particular tonalidade de pessimismo existencial, gira em torno das manifestações do Mal e do sentimento de culpa.
 
Justiça foi um romance que Dürrenmatt esboçou em 1957 e que resolveu, aproveitando a realização de uma edição conjunta das suas obras, refundir, por “divertimento e diletantismo”, em 1987. Mas se o fez, como referiu nessas declarações recentes, com este objectivo, conseguiu, dessa forma, sem sombra de dúvidas, produzir um daqueles romances que “prendem” o leitor do princípio ao fim.
 
Sabe-se como este tipo de emoção é daqueles que mais equívocos provocam (quantas vezes descobrimos, perplexos, que essas obras, que tanto nos seduziram, não “aguentam” uma segunda leitura…). Mas no caso de Justiça, o que atrai a nossa atenção é um rastro brilhante de inteligência: impressiona a capacidade demonstrada em questionar de forma romanesca, o modo hábil de encadear situações e diálogos, o humor renovado de página para página. Tudo isto numa clareza de escrita que, sem a espartilhar por objectivos demasiado explícitos, sabe, de forma notória, o que quer e que, por isso, parece jorrar naturalmente.
 
Tudo começa quando um notável suíço, o deputado e doutor “honoris causa” Isaak Kohler, entra num restaurante, à hora do almoço e, perante uma enorme clientela, resolve interromper o repasto de um professor universitário, assassinando-o. Condenado à prisão perpétua, o deputado solícita ao jovem advogado Spät, em dificuldades financeiras, que pondere a hipótese, por razões de pura ciência jurídica, de ser outro o assassino do crime porque fora julgado. E o advogado, à revelia da sua consciência e das suas certezas, consegue levantar as pistas “teóricas” que vão permitir a absolvição do criminoso. É isto que é narrado num relatório, que constitui as duas principais partes do romance, escrito pelo advogado Spät, em estado de permanente alcoolização, e que ele pretende fazer chegar as mãos do comandante da polícia, após ter reposto a justiça no seu devido lugar, matando o assassino e suicidando-se. Por fim, a terceira parte da obra tem como narrador o próprio autor quando este, trinta anos mais tarde, trava conhecimento com os intervenientes deste caso e descobre, no meio dos seus papéis, o referido relatório.
 
Um dos aspectos interessantes de Justiça é o seu enredo deliberadamente inverosímil. Dürrenmatt parte do princípio de que o quadro romanesco é apenas ficcional e, portanto, a verosimilhança está só na inter-relação lógica dos elementos do romance. Não se espante, por isso, o leitor por ver aparecer empresas industriais de próteses, que afinal fabricam fundamentalmente armas de guerra e são dirigidas por médicos anões, advogados que são ex-assassinos e que apenas estão interessados em libertar criminosos da alçada da justiça, frágeis e corrompidos campeões olímpicos, melómanos que só gostam de ouvir várias sinfonias ao mesmo tempo, etc.
 
No entanto, esta inverosimilhança aparece num contexto de aparência real, o que transforma este romance numa espécie de parábola crítica dos mecanismos sociais e políticos das classes dominantes suíças. Esta dimensão é ainda reforçada pelo facto de todas as personagens de Justiça terem um comportamento social que se poderia considerar como amoral. Simplesmente, é inadequado classificar desta forma o seu comportamento, visto que, para Dürrenmatt, a moral, ao incidir na intencionalidade da acção, pertence a esfera do privado e não do social.
 
É a justiça, como instrumento de concertação social, que intervém sobre os actos, sendo daqui decorrente a sua principal insuficiência. Porque se a justiça incide sobre actos, essa realidade é obviamente passada, e como tal, um jogo de causalidades, de interdependências, sujeito a interpretações, à formulação de uma “ficção”. O romance de Dürrenmatt, partindo desta concepção de realidade e de justiça, está, portanto, estruturado em redor de uma interrogação essencial: se a realidade, desde que passada, é um campo de verdades diversas, conforme o seu lugar originário e uma presumível “profundidade” das lógicas interpretativas possíveis, não terá de ser arbitrária a execução da justiça? Não será a definição, em termos sociais, da culpa e da inocência, uma mera interpretação?
 
Mesmo o logro que leva a revolta do advogado Spät, tentando repôr a justiça que crê ser certa, é resultante da consciência de saber qual o verdadeiro crime do deputado Isaak Kohler: o de intervir na realidade como um exímio jogador de bilhar, dominando todos os efeitos encadeados da sua acção, identificando-se, assim, de forma profanante, com o Grande Criminoso que é a figura divina.
 
A estrutura romanesca de Justiça acaba, por fim, por reflectir toda esta problemática, porque, ao perseguir as deambulantes inquirições do advogado Spät pelas diversas personagens que, directa ou indirectamente, estão relacionadas com o crime, vai ocultando, como nas gravuras de Escher, verdades com outras verdades possíveis e encadeando, portanto, a presumível realidade numa “visível” ilusão.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: Justiça
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Tradutor: Maria Emília Ferros Moura
Editor: Relógio d’Água
Ano: 1987
230 págs., € 10,91
 




quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

YUKIO MISHIMA 1


 
 
 

O CRISÂNTEMO VERMELHO

 
Um aspecto que, com o passar dos tempos, se torna mais evidente, quando nos debruçamos sobre a figura de Yukio Mishima, é que este escritor se tornou um ícone. E, quando uma entidade se transforma num ícone, uma constatação é quase sempre inevitável: a verdadeira personalidade, que esse ícone representa, fica oculta e objectivamente desconhecida – em particular para o grande público que reconhece o ícone, julgando, assim, que conhece a personalidade.

 
Ora, como ícone, Yukio Mishima representa muitas coisas. Antes do mais, a própria figura do “escritor japonês” no Ocidente. De facto, mesmo tendo em consideração o sucesso ocidental de alguns escritores de gerações posteriores (estou a recordar-me de Haruki Murakami ou de Yoshimoto Banana), não há nenhum outro autor japonês que se aproxime sequer do reconhecimento público que obteve Yukio Mishima no Ocidente (e não estou a esquecer os autores que obtiveram o Prémio Nobel, como Yasunari Kawabata ou Kenzaburo Oê).

 
Segundo, devido ao seu trágico fim, Yukio Mishima é encarado como a personificação do artista que ultrapassou os limites do possível na defesa dos valores culturais do Japão tradicional. O espectacular sacrifício final do escritor transmite a imagem de extremo guardião desses valores tradicionais, perante a ofensiva avassaladora dos modelos culturais que os EUA foram impondo ao Japão, em resultado da sua derrota militar na II Guerra Mundial.

 
Terceiro, Yukio Mishima é considerado um dos autores que mais contribuíram para a sobrevalorização da realidade corpórea, aparecendo esta, na sua plenitude física, como o radical sustentáculo do homem. Esta valorização da carnalidade, em termos filosóficos e estéticos, é não só uma componente temática central na sua obra literária, mas, como veremos mais adiante, um dos elementos cruciais nas diversas facetas que revestiu a sua produção artística.

 
Quarto, Yukio Mishima conseguiu, em termos literários e artísticos, dar um estatuto de plena cidadania ao erotismo homossexual. Neste sentido, e mesmo tendo em consideração a ambivalência com que sempre lidou com o seu desejo sexual, a figura do escritor tornou-se, nos tempos modernos, um dos estandartes, em particular no Ocidente, da comunidade homossexual.

 
Por último, Yukio Mishima tornou-se um exemplo extremo de autor que condiciona, sob os mesmos objectivos estéticos e éticos, vida e obra, equiparando-as a simples meios para atingir uma beleza que as transcende, mesmo manifestando-se apenas nelas. Saliente-se que os próprios objectivos estéticos e éticos estão, para o escritor, estreitamente entrelaçados e, na circunstância de existir alguma hierarquização, será sempre do corpo em relação ao novelo ininterrupto da escrita e da obra.  

 
Quando, em termos sociais, se faz referência a Yukio Mishima, é habitual que os nossos interlocutores façam alusão ao conjunto de retratos que o autor tirou nas décadas de cinquenta e sessenta (depois de, já adulto, se ter dedicado a uma obsessiva preparação física e a treinar diversas artes marciais, em particular “kendo”), servindo-se da arte dos notáveis fotógrafos Eikoh Hosoe e Kishin Shinoyama, ou que chamem a atenção para as posições, francamente provocatórias perante a sociedade democrática japonesa, de deificação da figura do Imperador, ou ainda para o papel do escritor na organização de um exército de samurais modernos (a milícia “Tate no Kai”) que ambicionava ser o bastião de defesa de um Japão tradicional, puro e incorruptível. Porém, é raro ouvir-se referências concretas à sua obra literária.

 
Ao observar o conjunto da produção literária de Yukio Mishima, um dos aspectos que mais impressiona é a sua dimensão, tendo em conta que o autor morreu em plena maturidade criativa: nos quarenta e cinco anos que duraram a sua vida (1925-1970), publicou perto de quarenta romances, cerca de duas dezenas de colectâneas de novelas, vários volumes de peças de teatro e de ensaio, ao mesmo tempo que mantinha uma constante intervenção pública, com polémicas sobre diversos problemas culturais e políticos (teve enormes repercussões a polémica que manteve com o futuro Prémio Nobel Kenzaburo Oê sobre as relações entre homossexualidade e comportamentos de extrema-direita ou o debate conflituoso que teve na Universidade de Tóquio, nos finais da década de sessenta, com estudantes esquerdistas e comunistas que o acusavam de defender posições fascistas).

 
Além disso, é sabido que Yukio Mishima foi sempre um leitor compulsivo, devorando não só obras de autores nipónicos (é conhecida a importância que teve no seu pensamento algumas obras clássicas japonesas, em especial as relacionadas com as regras de conduta samurai, assim como a produção de alguns autores contemporâneos, como é o caso de Junichirô Tanizaki e de Yasunari Kawabata), mas também obras da literatura ocidental, em particular a francesa (lembro, para referir apenas algumas que deixaram claro vestígio na sua actividade literária, a obra de autores como Raymond Radiguet, Jean Cocteau, Georges Bataille, Sade, etc).

 
Numa produção tão extensa, é evidente que os comentadores têm tendência para destacar certas obras em detrimento de outras, de acordo com o seu gosto pessoal: no meu caso, irei salientar, como marcos fundamentais, os romances Confissões de uma Máscara (1949) e O Templo Dourado (1956) e a tetralogia O Mar da Fertilidade (1964-1970), não só porque são verdadeiras obras-primas, mas também porque são exemplares na progressão do pensamento de Yukio Mishima. Saliente-se – e esse é, sem dúvida, um aspecto muito relevante na obra deste autor – que existe uma profunda coerência evolutiva em toda a sua produção literária, alicerçada numa complexidade estrelar de conceitos e numa teia de obsessões que, de forma gradual, vão evoluindo e encaminhando-se para um final que teria de ser inevitavelmente trágico.

 
Confissões de uma Máscara, que o autor publicou quando tinha vinte e quatro anos, é um romance de características autobiográficas, onde um jovem descobre, de forma dilacerada, o seu desejo homossexual. Dilacerada, porque a personagem principal assume que a manifestação do seu desejo tem um carácter perverso, já que a homossexualidade transforma o desejo do outro na busca de uma representação narcísica. Sendo assim, o desejo homossexual torna-se perverso por ser, na sua essência, reflector, como um espelho, e não permitir, como sucede com o desejo heterossexual, a “saída de si próprio” do sujeito para alcançar o momento de dissolução no outro (como Yukio Mishima formulará, de forma clara, mais tarde, após a empolgada leitura da obra de Georges Bataille).  

 
Esta concepção do desejo (que vai desenvolvendo e amadurecendo ao longo dos anos) nunca permitiu que Yukio Mishima tivesse uma relação pacífica com a sua própria homossexualidade. Pelo contrário, terá tendência a tornar-se tragicamente contraditória: por um lado, vai reforçando-se, no seu pensamento, a componente narcísica, ao cuidar do seu próprio corpo como representação material da identidade (movimento identitário); por outro, ao considerar a Morte como o momento sublime da unidade cósmica (satisfação plena do desejo que tem, como objectivo final, o desaparecimento do eu), começa a desenvolver uma obsessão suicida, à procura apenas de uma motivação “teatral” para se concretizar.

 
Por volta dos trinta anos, começa a espelhar-se, no seu pensamento e na sua obra, um conceito que, tendo estado sempre presente, se torna agora fulcral: a ideia do Belo como sentido transfigurador da existência. Neste aspecto, o romance O Templo Dourado é exemplar para compreender a forma como o Belo passa a ser entendido por Yukio Mishima: a tortuosa paixão do monge, que serve como personagem principal, pela beleza avassaladora do templo Kinkakuji e a sua incapacidade em aceitar-se, perante aquela beleza sublime, como ser confinado e perecível, leva-o a destruir-se ao tentar consumir pelo fogo o objecto da sua adoração.

 
Saliente-se que a noção de Belo, em Yukio Mishima, está profundamente associada à ideia de representação, uma vez que o Belo, na sua essência, é inacessível: a alma manifesta-se na beleza de um corpo, a “alma imortal japonesa” na encarnação do Imperador, o conceito estético na representação plástica, literária ou teatral. Posteriormente, concebe toda a existência como uma representação sujeita à determinação do Belo: é Ele que se deve manifestar na superfície do corpo e nas suas emoções, assim como no gesto e no texto.

 
É neste contexto que deve ser compreendido esse projecto literário, que tem tanto de ambicioso como de insólito, chamado O Mar da Fertilidade. Este título (que alude a uma região da Lua) é a afirmação irónica da esterilidade de existências que, mesmo pulsando de vida e de juventude, estão condenadas a redimir-se por um acto de beleza mortífera que supere a mera representação - da mesma forma que o protagonista de uma peça Nô só poderá abandonar a sua máscara e encarnar a sua personagem se morrer em cena.   

 
O “seppuku” teatral, encenado para que a beleza do gesto superasse a própria motivação que o originou (a tentativa de um golpe militar que permitisse retomar o antigo poder do Imperador), foi preparado até ao pormenor (Yukio Mishima deixou na editora, pronto para ser publicado, o último romance de O Mar da Fertilidade, no dia em que se suicidou), consciente que as suas palavras e a sua paixão não poderiam ter senão o repúdio dos espectadores que ele desejava que o compreendessem e amassem: rodeado pelo seu amante e pelos seus companheiros mais chegados, Yukio Mishima fez jorrar em cena, ao esventrar-se, o grande crisântemo vermelho a que confinava a sua existência.

 

Publicado pelo Centro Cultural de Belém, em 2008, por alturas do ciclo Mishima, Um Esboço do Nada.