quinta-feira, 23 de julho de 2015

ALAN BENNETT

 
 
 
 
 

UM PEQUENO PRAZER
 
Imagine o leitor que, depois de um serão bem passado num concerto, chega a casa e constata que ela foi roubada por completo e que, desde o papel higiénico ao esquentador ou desde os quadros da sala às mesas-de-cabeceira, nada ficou. É, pois, de uma situação a tal ponto perturbante que arranca o conto largo que agora foi editado no nosso país do actor, dramaturgo, guionista e memorialista inglês Alan Bennett, intitulado Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam... e que foi pela primeira vez publicado em 1996 na prestigiada “London Review of Books”.
 
É sabido que um dos filões mais poderosos e tradicionais da narrativa inglesa tem sido a ficção humorística. Com altos e baixos, este género tem, ao longo dos séculos, contribuído não só para escalpelizar a sociedade inglesa e reflectir sobre as chamadas “limitações humanas”, mas também para renovar e revitalizar os modelos com que a narrativa tem acompanhado a evolução dos tempos. Os exemplos são inúmeros, mas basta só referir, creio, o caso de um autor como James Joyce que sempre evidenciou o contributo da literatura humorística para a redefinição da sua arte.
 
Esta obra agora publicada de Alan Bennett é um brilhante exemplo das potencialidades desta forma de expressão e, pela sua dimensão e contenção narrativa, bem depressa somos inclinados a epitetá-la como uma autêntica “pérola” literária. O casal Ransome, genuína classe média inglesa, vive, ao mesmo tempo, num certo desafogo económico e numa ambiência de carência emocional e afectiva (sem filhos, com uma vida sexual normalizada no mínimo, fruindo lado a lado os seus tempos livres em universos incomunicáveis: a Sr.ª Ransome embrenhada nos “talk-shows” televisivos, e o Sr. Ransome, com os seus auscultadores e a sua sofisticada aparelhagem “hi-fi”, amortalhado no “seu” obsessivo Mozart). Quando roubam o recheio da sua casa, não é tanto o possível desastre económico que os perturba (ele está inteiramente assegurado), mas a perca provisória de uma “carapaça” de objectos que lhes garante uma vida, em termos emocionais, pobre, mas sem sobressaltos.
 
Por isso, o perturbante da situação está na necessidade de recriar novos hábitos de subsistência, refazendo circuitos e contactando novas pessoas. Quando saem dos percursos estabelecidos durante anos e anos, os Ransome descobrem que a sociedade inglesa se modificou imenso e que os comportamentos civilizacionais dos seus vizinhos já não são os mesmos (nesse aspecto, deve ser bem salientada a arguta capacidade de observação de Alan Bennett que, com meia dúzia de personagens e situações, consegue bem assinalar essas mutações).
 
Porém, onde se revela a invulgar arte de construir tramas de Alan Bennett é na forma como, hábil e inesperadamente, resolve uma situação que tem algo de inverosímil (o roubo do recheio integral da casa) e que, por isso mesmo, provoca uma constante crispação no leitor. Além disso, consegue aproveitar essa mesma “resolução” para evidenciar como, na actual sociedade, o mundo do espectáculo tem um estatuto dominante ao ponto de condicionar a forma de gerir conflitos e afectos: no fundo, a existência parece resumir-se à execução de um papel determinado pelo tipo de “cenário” (ou “espaço”, para utilizar a gíria de uma das personagens) envolvente.
 
Por fim, deve referir-se que Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam... reveste a forma de uma parábola, uma vez que, de um modo explícito, se procura retirar um sentido edificante a esta história: o de que só se consegue converter em amadurecimento e em formação caracterial qualquer tipo de catástrofe quando se adquiriu, ao longo da vida, alguma disponibilidade afectiva ao exterior e à mudança.
 
Este conto de Alan Bennett foi integrado numa colecção intitulada “Pequenos Prazeres”. E, de facto, pelo pícaro das situações e pelo delicioso humor que perpassa por todo o texto, é a melhor forma de o classificar.
 
Publicado no Público em 2000.
 
(Foto do Autor de Getty Images)
 
Título: Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam...
Autor: Alan Bennett
Tradução: Maria João Delgado
Editor: Asa
Ano: 2000
80 págs., 1,50 €
 
 
 


quarta-feira, 22 de julho de 2015

CHRISTOPH HEIN


 
 
 
A EXTINÇÃO DA UTOPIA
 
Um dos exercícios mais interessantes que se pode efectuar com a produção literária que se evidenciou durante esta última década é tentar descobrir aquilo que conflui em ficções originárias de realidades socioculturais bastante diversas. Porque se há alguma coisa que de imediato se realça em O Amigo Distante de Christoph Hein, um autor de uma das mais interessantes literaturas do Bloco de Leste (a da R.D.A.), é pressentir-se nesta novela afinidades com o etiquetado “dirty realism” norte-americano, com a mais recente ficção italiana e alemã e até com certas experiências francesas (lembro-me, por exemplo, das obras de Andrea De Carlo, de Botho Strauss e de Daniele Sallenave). E uma das mais legíveis dessas afinidades está relacionada, inegavelmente, com a dimensão recuada e defensiva (para não dizer de todo extinta) com que esses autores perspectivam o campo da “utopia” na civilização contemporânea.
 
Os sinais cénicos de O Amigo Distante, que o situam num país socialista, têm um papel relativamente secundário na sua trama ficcional. É certo que sabemos que o enredo desta obra se passa em Berlim-Leste e em pequenas cidades da R.D.A., mas há uma clara estratégia em Christoph Hein de eliminar qualquer acentuada localização no modo de estar desta médica que resolve narrar, em jeito de balanço, após o enterro de um vizinho com quem teve uma relação “amorosa”, o seu quotidiano e os seus contactos, mais ou menos ocasionais, com colegas, familiares e outros inquilinos do prédio onde habita.
 
O que se evidencia na narrativa desta médica é o seu “olhar” que se quer demarcado dos outros, digamos mesmo indiferente, alheado. Esse olhar pretende encarar a vida como uma crónica que se lê e se procura esquecer. Os pequenos e grandes dramas de cada um, as mesquinhices, os fantasmas e fixações privados, até a movimentação circular do desejo, são entendidos como meras manifestações do ciclo orgânico, um simples pulsar da pele. Por isso, o seu “amante” não passa de um “amigo distante” de quem ela pouco ou nada quer saber e de quem, num jogo tácito, apenas lhe interessa o suficiente afecto e atenção para suportar o inevitável fluir do tempo.
 
Mas, conforme a narradora desfia a sua memória, percebe-se que o seu olhar está ferido pela rotura com uma amiga de infância, Katharina. Essa rotura de uma dedicação, que se pretendia integral, revelou-lhe, de uma forma que se torna obsessiva, a impossibilidade da absoluta comunicação e o irremediável bloqueio da paixão fusional: a utopia tornou-se-lhe um projecto inútil e desgastante e, por conseguinte, os outros aparecem-lhe como especificidades perdidas e loucas, seres incómodos na sua irrazão radical.
 
Mas a resignação a este sem sentido da existência provoca-lhe, como é inevitável, um mal-estar, uma desadequação em relação à realidade, que a leva a sentir-se como se estivesse no cenário errado. Daí que a narradora se sinta impelida a fotografar ininterruptamente as paisagens desérticas por onde a sua vida se foi fazendo e refazendo, de forma a reconstruir uma “realidade” de papel sensibilizado que se sobreponha à verdadeira realidade e onde se possa sepultar como soberano Crusoé.
 
Será, no entanto, a perfeita adequação estilística da escrita de Christoph Hein que irá surpreender o leitor quando abrir este estranho e belo livro. A frase curta, despojada de qualquer tipo de adjectivação, estabelece uma rigorosa coerência com as anotações desencantadas com que, secamente, a narradora principal vai retratando o seu universo privado.
 
Realce-se, por fim, a excelente transcrição para português realizada por Ana Maria Carvalho.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: O Amigo Distante
Autor: Christoph Hein
Tradução: Ana Maria Carvalho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1987
179 págs., 12,59 €