sexta-feira, 27 de novembro de 2015

EVELYN WAUGH

 


A FICÇÃO DOS EQUÍVOCOS
 
Desde as suas primeiras obras, nos finais da década de vinte, que Evelyn Waugh provoca reacções contraditórias entre os leitores e os críticos: por um lado, é considerado um dos mais brilhantes humoristas da literatura inglesa e um estilista destacado numa geração que inclui ficcionistas como Greene, Orwell e Isherwood; por outro, como um escritor bem “irritante”, cujos romances disfarçam mal uma perspectiva conservadora e marcadamente desajustada para compreender as dinâmicas sociais deste século.
 
Esta última forma de encarar Evelyn Waugh tem razões objectivas: o escritor nunca procurou esconder o seu catolicismo militante nem a sua defesa de uma ordem social que aceita o ancestral posicionamento de topo da aristocracia. Os biógrafos e analistas pretendem explicar este esforçado empenhamento pela sua conversão tardia (Evelyn Waugh era anglicano e só em adulto, já com obra publicada, se tornou um fiel servidor da Igreja Romana) e pela sua origem numa “middle-class” que se habituou, com reverência, a admirar as qualidades da nobreza. No entanto, talvez se deva encarar Evelyn Waugh – para o melhor e para o pior - como um escritor genuinamente britânico que sempre entendeu que as melhores virtudes civilizacionais do seu povo estavam num distanciamento displicente e humorado das diversas problemáticas da sociedade contemporânea e num rusticismo aristocrático, educado e compreensivo.
 
Scoop, o romance agora traduzido com o título de Enviado Especial, foi dos que, desde a sua edição original, mais dividiu os críticos. Bem característico da segunda fase da obra do escritor (que vai desde Vile Bodies, 1930, até ao início, em 1952, da publicação da trilogia Sword of Honour - exceptuando-se, no entanto, deste conjunto, pelas suas características distintas, o romance Reviver o Passado em Brideshead), onde pretende demolir, pelo humor, certo “modus vivendi” do chamado “mundo moderno”, este romance foca o universo dos jornais, em especial a sua ânsia de notícias, por motivos de competitividade e captação de públicos.
 
Enviado Especial é construído segundo o modelo clássico de humor que assenta no encadeamento constante de equívocos, transformando toda a acção num crescendo de situações absurdas, que, por fim, se revelam eficazes e adequadas à resolução da situação problemática originária. Esta resolução aleatória provoca sempre uma inevitável desvalorização, pelo ridículo, da situação e do universo que a criou, tornando-se, assim, óbvio o objectivo de toda a estratégia narrativa. No caso vertente deste romance, a acção desencadeia-se com a confusão do editor “do internacional” de um diário londrino que envia, como repórter especial para um país africano em guerra civil (percebe-se, sem nunca ser nomeado, que esse país é a Abissínia), um obscuro correspondente de província, em vez de um escritor de sucesso com nome idêntico. No entanto, a inexperiência, acerca do mundo do jornalismo e da política internacional deste repórter ocasional, permite-lhe descobrir, um pouco com a clarividência dos cegos, que a guerra civil é um acontecimento “forjado” pelos jornalistas e que a realidade do país é diametralmente diferente. Consegue, deste modo, um “furo” jornalístico que satisfaz em pleno o diário, a ponto de este, sem ter ainda descoberto a confusão original, pressionar o governo britânico para que conceda ao repórter um título de nobreza.
 
Esta trama possibilita a Evelyn Waugh desferir as suas setas mordazes sobre um conjunto de “realidades” que encara como sintomáticas do “declínio e queda” da civilização ocidental: a mundanidade de certos meios da “elite” urbana que, em consequência do seu poder económico e político, tem capacidades de manipulação das necessidades de informação do público; o papel de um matriarcado que, dado o seu ascendente sexual sobre as figuras masculinas, transforma os afectos em domínio ou num mesquinho aproveitamento material; a incompetência e a mediocridade de um jornalismo disposto a “caçar notícias” só com a intenção de aumentar as vendas e reforçar o seu prestígio; a introdução de modelos políticos ocidentais em África, provocando situações de fácil oportunismo e profunda corrupção, etc., etc.
 
Face a certas situações actuais, parece que a recuperação deste romance tem toda a pertinência. Creio, contudo, que esta perspectiva é mais um equívoco a juntar ao conjunto de equívocos com que Enviado Especial é construído. Nesse aspecto, a sua conclusão é reveladora: face ao “mundo moderno”, a melhor atitude é regressar a uma existência contemplativa, resignadamente satisfeita com os amenos e inconsequentes conflitos caseiros de uma ampla família.
 
Alguém poderá, com bom senso, dar crédito a um “olhar crítico” cuja alternativa redentora é o retorno a um tempo fechado que a dinâmica social há muito fez desmoronar e tornou arqueológico?
 
Publicado no Público em 1991.
 
 
Título: Enviado Especial
Autor: Evelyn Waugh
Tradutor: Luis Almeida Campos
Ano: 1991
Editor: Bertrand Editora
304 págs., esg.
 
 
 



quinta-feira, 26 de novembro de 2015

MARGARET MAZZANTINI


 
 
 
 
A CINZA DA VELHICE
 
Há alguns anos, num serão de cavaqueira, um amigo meu, face aos meus rasgados elogios à literatura italiana contemporânea, respondeu que esta era, na sua opinião, sentimental e dramática em excesso. Na altura, reagi um pouco abespinhado, afirmando que não percebia o que queria dizer com aqueles termos e que, além disso, aquele tipo de afirmações generalistas tem o condão, quase sempre, de mais errar do que acertar. O que é certo é que, ao ler este romance intitulado Não Te Movas de Margaret Mazzantini, veio-me à lembrança esta velha conversa; de facto, é difícil escrever um romance onde o sofrimento e a morte estejam tão presentes: acidentes rodoviários, filhos em coma, violações, abortos, mortes por cancro e por outras causas, desagregação de relações amorosas e conjugais, velhice e mais velhice.
 
Margaret Mazzantini é uma recente autora italiana que, em paralelo com uma brilhante carreira como actriz, principalmente no teatro, mas também no cinema e na televisão, encetou uma não menos brilhante carreira como romancista e dramaturga. Já publicou dois romances, ganhando com o primeiro, Il catino di zinco, o Prémio Campiello de 1994, e com este que agora foi editado em Portugal, o Prémio Strega de 2002; isto é, com as duas únicas obras que publicou, conquistou os dois mais importantes prémios literários italianos. Se associarmos a esta consagração, o enorme sucesso de vendas que obteve, em particular com o segundo romance, pode considerar-se que era impossível perspectivar um início de carreira literária mais fulgurante do que aquele que teve.
 
Saliente-se ainda que a aposta da literária de Margaret Mazzantini em Não Te Movas é arriscada: a autora pretendeu escrever um melodrama. Ora, a literatura narrativa, mesmo tendo em conta o peso da corrente realista, não tem uma grande tradição melodramática. Na minha opinião, porque o melodrama assenta num frágil jogo de artifício (em que situações inverosímeis têm que parecer verosímeis), necessitando, por isso, de um suporte (a imagem, a música, a retórica da iluminação artificial) para que consiga atingir os seus objectivos. Nesta perspectiva, o ascendente do efeito mimético da arte narrativa coaduna-se dificilmente com o “puzzle” de acasos ou com a exploração exaustiva da dimensão trágica das situações que são decisivas, no melodrama, para atingir o clima emocional necessário para que o leitor aceite como plausível a matéria narrada.
 
Assim, no caso deste romance, a própria situação de fundo (em que o narrador, enquanto espera pelo resultado de uma intervenção cirúrgica, realizada de urgência à sua filha, vítima de um grave acidente de motorizada - e, portanto, sob a enorme tensão da expectativa de saber se vai sobreviver -, “confessa” uma boa parte da sua vida amorosa e, em particular, a sua relação atribulada e trágica com uma amante) é, objectivamente, muito pouco plausível. Por outro lado, a recorrência constante à coincidência de factos (por exemplo, as situações de gravidez simultânea da mulher e da amante e o destino de todo antagónico das duas fecundações) faz com que o leitor se interrogue sobre o seu carácter credível. Por outro lado, há, sem sombra de dúvidas, situações narrativas mal resolvidas, tendo em consideração a definição caracterial das personagens: saliento, por exemplo, a cena crucial da violação, que, de certo modo, é inexplicável, ou ainda o contexto da uma última relação sexual entre o narrador e a amante, de inegável efeito dramático, mas, ao mesmo tempo, e de forma notória, artificioso.
 
Não se julgue, porém, que o reconhecimento de algumas fragilidades narrativas de Não Te Movas o torna menos interessante. Pelo contrário, e salvo as já referidas situações inexplicáveis, é raro encontrar uma obra de uma autora que procure, de um modo tão intenso, compreender o universo masculino, em particular as vertentes sempre obscuras do seu comportamento sexual e dos seus mecanismos de afirmação do desejo. De facto, o posicionamento de Margaret Mazzantini é o de se colocar ao lado dos homens, tentando entender o seu teatro de fantasmagorias, em grande parte motivado pela permanente expectativa de uma inevitável solidão, e como a sua sexualidade e o seu desejo são ainda algumas das poucas armas com que procura convencer-se que consegue erradicar esses fantasmas. No fundo, o homem aparece, em Não Te Movas, em constante projecção para a(s) figura(s) feminina(s) (mãe, mulher, amante, filha), sendo, em si mesmo, uma espécie de buraco negro delineado por elas.
 
Pode, por isso, afirmar-se que o romance de Margaret Mazzantini parece situar-se num estádio em que já se superou o ajuste de contas com a entidade masculina, exemplificada aqui por um narrador que reconhece que o acaso e as opções o encaminharam para uma situação de falência como marido, amante e pai, envolvendo-a num clima afectivo de resignada aceitação às suas peculiares tibiezas. Nesse sentido, Não Te Movas é um romance sobre a velhice – ou melhor, sobre o despojamento do desejo como mecanismo preparatório para a morte – e, muito em particular, um lamento pungente sobre a passagem do tempo: a súplica “não te movas” que dá título ao romance e que aparece, em estilo encantatório, de forma cíclica, na narrativa (traduzida, numa incorrecta duplicidade de critério, pela expressão “não te mexas”), relaciona-se com essa necessidade, ansiada pelo narrador, de cristalizar num momento “pré-catastrófico” a passagem das horas e dos dias. É nesta tão humana obsessão de parar o escorrer dos dias - de afastar em definitivo o momento em que a “máquina” desliga a consciência - que radica a força e o impacto que Não Te Movas efectivamente transmite ao leitor.
 
Publicado no Público em 2003.
 
 
Título: Não Te Movas
Autor: Margaret Mazzantini
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2003
242 págs., € 15
 
 
 
 
 
 



quarta-feira, 25 de novembro de 2015

PAUL THEROUX


 
 
 

SEM LUGAR

 

Há um campo na produção editorial contemporânea cuja pretensão é satisfazer as necessidades romanescas de um público internacional, diversificado, que crê ter algum critério literário e, por outro lado, uma opinião fundamentada e crítica sobre a actual dinâmica civilizacional. Não se identifique, no entanto, os objectivos e os meios desta literatura cosmopolita com a produção de best-sellers, visto que naquela não se busca satisfazer as apetências mais imediatistas do público leitor, mas sim, em redor de questões cadentes da cultura contemporânea, construir ficções, utilizando técnicas e formas “convencionais” de criação literária, de modo a serem facilmente reconhecidas e aceites.

 
Um autor característico deste tipo de literatura é Paul Theroux. Este prolífero autor norte-americano, vivendo hoje em Inglaterra, tem calcorreado os lugares mais díspares deste mundo, conhecendo assim ao vivo os cenários onde tem situado a acção das dezenas de romances e colectâneas de novelas que, de qualidade muito irregular, mas algumas vezes interessante, tem vindo a produzir.

 
Além disso, o carácter “visual” e a linearidade das suas narrativas têm estimulado a sua transposição para a linguagem cinematográfica e televisiva. Foi o que aconteceu com o seu romance A Costa do Mosquito, agora editado em Portugal, que Peter Weir utilizou para a realização de um filme que ainda há bem pouco tempo passou nas nossas salas de cinema.

 
Este romance narra a viagem e a estadia numa região muito primitiva e selvagem das Honduras de um ”rural” inventor americano que, descontente com o percurso civilizacional do seu país, resolve abandoná-lo e procurar, com a sua família, instituir os prolegómenos de uma nova civilização, sem os excessos tecnológicos e materialistas daquela donde veio.

 
No entanto, a ambição demiúrgica de Allie Fox, personagem principal de A Costa do Mosquito, em construir uma nova ordem, onde a Natureza seja domada à sua simples vontade, leva-o a um permanente confronto com a selva e com os outros, provocando o abandono ou a sistemática rebeldia de quem o rodeia.

 
Convencido que a actual civilização se encaminhou de forma irremediável para um final apocalíptico, Allie Fox recusa-se a qualquer contacto com o mundo exterior à selva e encara o seu retorno ao mais extremo primitivismo como a única salvação possível para si e para a sua família. Esta obsessão redentora vai, a pouco e pouco, transformando esta família num bando de espantalhos famélicos e doentes (note-se que toda a trama romanesca de A Costa do Mosquito é narrada pelo filho mais velho), dependente por completo dos elementos e da visão unívoca que a dirige e a condiciona.

 
A própria situação insustentável daquela família leva a um previsível final a fábula de A Costa do Mosquito: será a própria Natureza que, numa tremenda concentração de ódio, irá literalmente devorar Allie Fox, libertando a restante família e permitindo o seu regresso a uma “civilização” que, mesmo nefasta e destrutiva, se revela mais reconfortante do que qualquer utópica alternativa.

 
A existência de um fio condutor evidente em excesso e, por outro lado, a frágil densidade e consistência das personagens transformam A Costa do Mosquito num romance monotonamente inacabável que nem a inegável capacidade estilística de Paul Theroux em “visualizar” cenários consegue salvar. Mais uma vez se demonstra que não chega uma brilhante ideia para fazer um bom romance…

 
Publicado no Expresso em 1988.
 
(Foto do Autor de Steve McCurry).

 

 
Título: A Costa do Mosquito
Autor: Paul Theroux
Tradução: Manuel Cordeiro
Editor: Ed. Presença
Ano: 1988
350 págs., esg.
 
 



quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A. L. KENNEDY

 
 
 
 
 

O DESARMAMENTO MORAL

 
A publicação recente do romance Amor Sem Tempo da escritora A. L. Kennedy permite destacar dois aspectos interessantes da actual vida literária britânica: a crescente afirmação de centros de irradiação cultural ao nível de cada nacionalidade do Reino Unido e a irredutível importância do humor como fermento criativo da sua narrativa. Desde sempre que cidades como Edimburgo, Glasgow ou Cardiff tiveram uma vida cultural significativa e núcleos de narradores e poetas que marcaram a história literária inglesa; simplesmente - e esta parece ser a mudança de atitude - estes centros literários (e os escritores que os animam, como é o caso de A. L. Kennedy) procuram hoje afirmar, de forma empenhada, a sua autonomia em relação a Londres e a uma certa propensão hegemónica inglesa. Por outro lado, o trabalho narrativo desta recente autora (nasceu em 1965 e o seu primeiro livro, uma colectânea de “short-stories”, foi publicado em 1990), em consonância com as obras de outros novos escritores escoceses, galeses e também ingleses, vem confirmar que o humor e a sátira continuam a ser um dos filões mais explorados e inovadores da narrativa britânica.

 
Desde muito nova que A. L. Kennedy se tem desdobrado em actividades literárias, colaborando, com recensões críticas, nos principais jornais e revistas escoceses e ingleses, participando em júris literários, ensinando em cursos de “escrita criativa”, animando as principais instituições literárias escocesas e ainda editando antologias de “short-stories” de jovens escritores da sua terra. Ao mesmo tempo, de forma ininterrupta, tem publicado diversos livros, onde se destacam, até hoje, três colectâneas de contos e três romances. Todas as suas obras de ficção têm sido premiadas com o Scottish Arts Council Book Award, para além de outros prémios (o John Llewellyn Rhys Prize, o Somerset Maugham Award e o Encore Award). Porém, provavelmente, o maior reconhecimento público (tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos) da obra de A. L. Kennedy tenha sido resultante da sua nomeação, por duas vezes, em 1993 e em 2003, para a lista dos melhores jovens escritores ingleses que a prestigiada revista britânica Granta selecciona de dez em dez anos.

 
Amor Sem Tempo é o segundo romance desta escritora e foi publicado em Inglaterra em 1995 com o título So I Am Glad. E, logo no título, advem a minha primeira objecção à edição portuguesa deste romance. Creio, realmente, que não é fácil conceber uma versão portuguesa do título original que transmita o misto de ironia e perplexidade que este provoca no leitor; mas, seguramente, nada disto é conseguido com o banal e insípido título de Amor Sem Tempo.

 
O romance tem, como narrador e personagem principal, uma locutora de rádio que partilha a casa com uns amigos, homens e mulheres, com formação e forma de estar bem distintos, mas tendo todos em comum um abissal desinteresse pelos modelos de vida padronizados e um gradual desencanto por um quotidiano que lhes aparece cada vez mais desprovido de sentido e incapaz de lhes transmitir qualquer tipo de compensação emocional e afectiva. Um deles - que habitualmente está no estrangeiro em operações altruístas, motivadas por um idealismo confuso e sentimental - cedeu o seu quarto a um (des)conhecido, muito estranho, com quem a personagem principal é obrigada a conviver, já que é a única, entre aquelas figuras, que passa algum tempo em casa. É esse convívio que vai dar origem a uma aproximação afectiva e também a uma descoberta muito insólita: é que este estranho é, nem mais nem menos, do que o ressuscitado Savinien Cyrano de Bergerac, o conhecido escritor e aventureiro francês que viveu no séc.XVII.

 
Até nesta apresentação reduzida da trama de Amor Sem Tempo se pode perceber qual é a opção estratégica de A. L. Kennedy: introduzir, num enredo bem enraízado no quotidiano e no seio de personagens comuns, um elemento historicamente “deslocado”, quase “milagroso”, que permita evidenciar a bizarria de destinos e comportamentos banais e, desse modo, o profundo “non-sense” da época que vivemos. Mas, ao mesmo tempo, e este é um dos factores mais inovadores deste romance, esta “intromissão” serve para transmitir ao leitor a consciência certa de que está a ler um romance, quer isto dizer, um código arquitectado por um autor, onde, portanto, tudo aquilo que ele pretenda introduzir nesse código pode aparecer e suceder.

 
Saliente-se que A. L. Kennedy não se cansa de evidenciar esta perspectiva do romance ao longo de toda a narrativa. Daí que se sucedam constantemente, por parte da narradora, os avisos ao leitor de que está a ler um romance: com alguma ironia, aparecem as sugestões de que, determinada passagem da acção, por ser demasiado imprevisível, se torna “aceitável” que o leitor não “acredite” nela, ou, noutro trecho, o conselho de que, se o leitor achar que é demasiado brutal ou obsceno, pode “fechar os olhos” e passar adiante, ou ainda outro onde a narradora assinala as suas dúvidas sobre aquilo que vai narrar ou sobre o modo como o narra, etc., etc. Em resumo, todo a obra não passa de um verdadeiro jogo do “gato e do rato” com as próprias convenções clássicas do romance, exigindo do leitor uma atitude dúbia, onde, por vezes, é obrigado a assumir os princípios miméticos da narrativa e, por outros, percebe que a obra deles foge, num equilíbrio instável, mas bem irónico, entre realidade e fantasia.

 
A própria introdução da figura de Cyrano de Bergerac num quotidiano vulgar na Grã-Bretanha dos dias de hoje é deixada, pela narradora/autora, em extremo absurdo, ao livre arbítrio do leitor de acreditar ou não, já que o modo como se “resolve” tão intrigante “aparição” não pretende ser convincente. Para a autora, o que é importante é que o leitor compreenda que este “milagre” é fundamental para a narradora, visto que, de certo modo, é a única forma de “redimir” a sua existência, pois que a sua sensibilidade está “desfigurada” (e, de certo modo, aviltada) por uma civilização que eticamente se desqualificou e que, por isso mesmo, motiva comportamentos e relações desprovidos de sentido. Cyrano de Bergerac, com os seus princípios de honra e de livre-pensador, vem provar até à saciedade como a nossa época vive um enorme “desarmamento moral” (a expressão é de A. L. Kennedy), tornando a presente sociedade um lugar de risco e de perigo. Num certo sentido, a figura de Cyrano de Bergerac representa também o estatuto que a literatura pode (ou deve) ocupar nos dias de hoje: contribuir para um código ético alternativo ao dominante, de forma a construir a carapaça de resistência necessária para criar um espaço pessoal de liberdade.

 
Amor Sem Tempo transmite, por conseguinte, uma imagem muito cáustica do presente (e na sua trama aparece de tudo um pouco: abusos sexuais de menores, relações sadomasoquistas, dependência e desintoxicação de fármacos, a violência gratuita de uma comunicação social sedenta de sangue e de catástrofes, a condenação de um absurdo Estado, ao mesmo tempo, omnipresente e inútil, etc., etc.), bem similar, diga-se de passagem, à que também aparece, se bem com contornos ideológicos distintos, nas obras do escritor francês Michel Houellebecq.

 
Contudo, o verdadeiro sinal distintivo de A. L. Kennedy como autora está na sua originalidade estilística, já que a sua vertente satírica e alguma da sua capacidade metaforizante conseguem encaminhar a narrativa, e a reflexão que lhe subjaz, para percursos inusitados, problematizando, de uma forma implacável, certos temas (entre eles, por exemplo, os chamados “bons sentimentos”, como o amor e a esperança) a partir de perspectivas peculiares e imprevisíveis. Neste aspecto, a única grande fragilidade de Amor Sem Tempo é uma certa propensão para a verbosidade discursiva, sendo inúmeras vezes notório que a autora deveria ter optado, em termos estilísticos, pela mesma contenção e rigor que, de uma forma exemplar, assume na sua visão ética da actual sociedade.

 
Por tudo isto, creio que se torna compreensível que a tradução deste romance não seja tarefa fácil, exigindo uma excepcional preparação para a sua realização. É bem evidente que houve esforço na presente tradução; mas, por isso mesmo, torna-se ainda mais lamentável o seu relativo falhanço. Creio que este resultado é, no essencial, devido a dois factores: o primeiro, comum a muitas outras traduções, é resultante da sintaxe da língua de chegada se revelar, não poucas vezes, demasiado próxima da sintaxe matricial; por outro, porque as opções semânticas do tradutor não conseguiram corresponder à versatilidade e riqueza estilística do autor, “aplanando” onde deveria deixar “rugoso” e diverso.

 
Publicado no Público em 2002.

 

 
Título: Amor Sem Tempo
Autor: A. L. Kennedy
Tradução: António Reca de Sousa
Editor: Difel
Ano: 2002
277 págs., € 14,00
 
 

 



segunda-feira, 16 de novembro de 2015

MARY RENAULT

 
 
 
 
 
A NECESSIDADE DE HERÓIS
 
A proliferação nas últimas décadas do chamado romance histórico, gozando de uma enorme receptividade em quase todos os países europeus, é bem sintomática, em certa perspectiva, das actuais dificuldades de afirmação estética do realismo. A pretensão mais óbvia do romance histórico - recriar uma realidade que o tempo dissolveu, tentando desvendá-la como “vivida” – transformou-o no grande bastião do romance realista, sendo, por isso, desenvolvido, salvo algumas excepções, pelos narradores esteticamente mais conservadores. Repare-se, por exemplo, que raros são os romances históricos que não terminam com um apêndice bibliográfico ou documental em que se procura fundamentar a veracidade da encenação e da trama.
 
A obra de Mary Renault - uma escritora inglesa, radicada na África do Sul, que, na década de cinquenta, inflectiu a sua produção literária, passando a dedica-se ao romance histórico - reflecte bem esta constatação. O romance agora traduzido, O Jovem Persa, segundo volume de una trilogia sobre Alexandre, a que a autora se dedicou no final da sua carreira literária, é composto pelas “memórias” de um eunuco persa que, enquanto adolescente, foi o “eromenos” de Dario e, principalmente, do Macedónio, podendo, assim, testemunhar, de uma forma íntima, o glorioso apogeu e morte deste. A estrutura narrativa do romance, bem convencional e linear, confina-se a percorrer, passo a passo, os excepcionais acontecimentos da existência desta figura lendária.
 
O romance de Mary Renault partilha também do fascínio que, de uma forma duradoira, o período clássico da civilização ocidental tem provocado na produção literária. Esta “idade de ouro”, dada a primordialidade dos tempos, parece que revela todos os conflitos numa solução mítica que transforma as relações do homem consigo mesmo, com o outro e com a natureza em essenciais evidências. O seu conhecimento transmite a convicção ilusória, bem nítida em O Jovem Persa, de que nada existe de novo no Saber, que este apenas se vai desfigurando e configurando, e, por conseguinte, que a integração desse conhecimento na existência presente permite que se encare com serenidade a inevitabilidade da morte.
 
A figura de Alexandre aparece em O Jovem Persa como conseguindo cumprir sempre com justeza o seu destino, cristalizando-se assim no perfil intocável do herói. E, por isso, este romance procura responder à necessidade, também duradoira, de crer na possibilidade de existirem entidades que consigam talhar no barro do tempo uma luminosa imortalidade. Mas esta pretensão apaziguadora, de descortinar sentidos que justifiquem a existência face à dissipação dos dias, é a mais bela fragilidade de O Jovem Persa. Porque, se alguma caracterização pode definir mais lapidarmente este romance, é a de que é uma longa afirmação amorosa, tecida de forma laboriosa, e que esta torna evidente a sua mais angustiante (e contraditória) “verdade”: a de que não existe heroicidade exterior ao olhar e ao discurso amoroso.
 
Refira-se, por fim, que O Jovem Persa, sem ser uma obra inovadora ou determinante na literatura contemporânea, é uma leitura aprazível, porque construída num lirismo contido e subtil, esquivando-se constantemente a uma epicidade fácil e mantendo-se numa tonalidade intimista e passional que provoca uma envolvente empatia pelas personagens e situações dramáticas,
 
Publicado no Público em 1991.
 
 
Titulo: O Jovem Persa
Autor: Mary Renault
Tradução e posfácio: Mário Avelar
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 1991
382 págs. , € 19,80
 
 
 
 



ERNEST HEMINGWAY 1

 
 
 
 
 

RITOS DE SANGUE

 

Uma primeira constatação que se pode fazer sobre Ernest Hemingway, agora que já passaram quarenta anos da sua morte, é que, decerto, não existe nenhum outro escritor americano que mais próximo esteja da imagem arquetípica que o americano médio faz de si próprio. E essa identificação é tal que, como na história do ovo e da galinha, torna-se difícil perceber até que ponto o próprio Hemingway contribuiu de um modo decisivo para essa imagem ou, pelo contrário, com uma invulgar intuição, se “colou” ao perfil que a sociedade americana pretendia para um escritor. O que é certo, é que provavelmente não existe nenhum outro escritor americano que mais influência tenha exercido no séc. XX, uma vez que esta ultrapassou - e em muito - o estrito campo literário. De certo modo, Hemingway está associado à matriz do comportamento civilizacional americano, já que alguns elementos fundamentais da sua visão do mundo impregnam a gigantesca máquina compressora de códigos e valores que é o “media” americano.

 
Pode estranhar-se, contudo, que uma obra com uma ambiência já um pouco “envelhecida” (a boémia alcoólica do princípio do século, as guerras, as touradas, a caça e a pesca de animais de grande porte) continue a ser lida de uma forma tão fervorosa. Creio que as razões deste facto prendem-se com o seu inconfundível estilo, claro e aparentemente simples, e o seu posicionamento existencial, bem expresso em todas as suas obras, de permanente busca do modo “justo” de viver. É evidente que esta atitude se integra numa espécie de paradigma epistemológico e ético de um grande número de escritores da primeira metade do séc. XX. Mas deve realçar-se a profundidade da rotura que, no contexto da produção narrativa, este quadro paradigmático efectuou em relação à tradição romanesca do século anterior e, em concreto, o papel da obra de Hemingway, pelo seu equilíbrio entre autobiografia e ficção, entre “gestaltismo” e subjectividade, entre acção e descrição, associado às suas preocupações com a estrutura romanesca e com a já citada obsessão estilística, para o “impor” como dominante na criação narrativa do período anterior à II Guerra Mundial.

 
Além disso, esse ambicionado modo “justo” de viver de Hemingway tinha - utilizando a expressão conhecida do séc. XVIII - três “luzes” orientadoras e que, a seu modo, procuravam responder a inquietações genuínas do período em questão, dilacerado por modelos sociais e políticos marcadamente autocráticos e de sinal oposto e por uma industrialização que avançava de forma galopante pela face da Terra: a liberdade individual, a inevitabilidade do compromisso solidário com o seu semelhante e a necessidade de permanente reajustar o complexo lugar do homem no reino da Natureza. A releitura das obras maiores de Hemingway (O Adeus Às Armas, Death in the Afternoon, As Verdes Colinas de África, Por Quem Os Sinos Dobram, Na Outra Margem, Entre As Árvores e O Velho e o Mar) comprova como estas questões determinaram toda a sua existência; ora, se considerarmos que estas inquietações se mantêm plenas de actualidade, pode perceber-se melhor a popularidade que este autor continua a ter, mesmo entre as mais recentes gerações.

 
Por alturas do centenário do nascimento de Hemingway, o seu filho Patrick resolveu publicar, em versão reduzida, um romance que seu pai tinha deixado em “borrão” num amplo manuscrito (com mais de oitocentas páginas), e cuja tradução foi agora editada no nosso país com o título de Verdade Ao Amanhecer. Os “cortes” efectuados provocaram, como é natural, uma “manipulação” do original (assumida por Patrick Hemingway), dando enfâse a certas personagens e situações em detrimento de outras, o que foi muito contestado pelos especialistas americanos da obra de Hemingway. Por outro lado, sendo conhecida a forma como o autor trabalhava de um modo meticuloso os seus originais, reescrevendo-os em dezenas de versões, torna-se compreensível a crítica de que o romance agora publicado está bem distante das qualidades estilísticas que caracterizam as restantes obras de Hemingway. Por isso mesmo, foi unânime a opinião de que Verdade Ao Amanhecer nada veio acrescentar à sua já conhecida obra, contestando-se, por conseguinte, a pertinência da sua publicação.

 
O romance - mais assumidamente autobiográfico do que qualquer outro do autor - descreve, numa ambiência muito próxima de As Verdes Colinas de África ou de As Neves de Kilimanjaro, as peripécias de uma caçada ao leão que, em finais de 1953, naquela que se viria a revelar como a derradeira viagem de Hemingway à Africa Oriental, a sua quarta mulher, Mary Welsh, desejava obstinadamente realizar. Pelo meio, aparecem todos os temas e situações queridos ao autor: o louvor das cumplicidades abnegadas da camaradagem, a paixão pelas personalidades simples mas de forte carácter, o interesse e admiração pela dignidade do comportamento animal e pela sua adequação ao meio natural. Por isso, um dos interesses peculiares de Verdade Ao Amanhecer está em perceber como Hemingway reage ao clima social de uma África já bem distante daquela que conheceu - e amou - na década de trinta: no momento em que se passam as peripécias descritas no romance, os “Mau-Mau” já eram uma preocupação para a sociedade colonizadora do Quénia e começavam a aparecer os primeiros sinais dos movimentos independentistas africanos...

 
No essencial, Verdade ao Amanhecer retoma a preocupação fundamental de Hemingway das obras da última fase da sua vida (como é o caso, por exemplo, de O Velho e o Mar): o papel da violência como suporte determinante da sobrevivência do homem. Para Hemingway, não existe vida justa e digna sem morte; e é essa a contradição existencial mais dilacerante do homem: a guerra, a caça e a pesca são, no fundo, ritos ancestrais de sangue que a condição humana, mergulhada numa inóspita e brutal Natureza, é obrigada a ter para conseguir um equilíbrio sempre precário com o seu semelhante e a própria Natureza. Daí que a caça nunca apareça na obra de Hemingway como um mero desporto, mas sim como um “acto”, envolto numa ética de profundo respeito pela vítima, com que o homem contribui para “refazer” o seu lugar e garantir a continuidade da Vida.

 
Talvez seja difícil encontrar, em Verdade Ao Amanhecer, o Hemingway-escritor que o leitor conhece de outros romances. Porém, o leitor não se iluda: por estas páginas transparece, e de forma bem nítida, a personalidade fascinante e contraditória de um homem que nunca baixou os braços na sua busca de assumir coerentemente o seu lugar no mundo. E que, quando percebeu que não tinha condições para a continuar, decidiu procurar, também coerentemente, na ponta de um cano de uma espingarda, a forma de garantir que os outros a prossigam sem o fardo de uma vida já inútil.

 
Publicado no Público em 2000.

 

 

Título: Verdade Ao Amanhecer
Autor: Ernest Hemingway
Tradução: José Lima
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
350 págs., € 18,90

 
 
 



domingo, 15 de novembro de 2015

FRIEDRICH DÜRRENMATT 1


 
 
 

A EFICÁCIA ASSASSINA DO DETERMINISMO

 

Quem analisar a obra de Friedrich Dürrenmatt - não só a dramaturgia, mas também a sua produção, não menos importante, de ensaísta e ficcionista - constatará que existe uma intenção sistemática de reduzir a existência ao valor de um jogo, considerando que qualquer significação transcendente desta se perdeu, na actual sociedade, no mais puro aleatório.

 
Em termos dramáticos, a farsa serve de uma forma excelente este objectivo. E, no domínio da narração, esse objectivo é também bem atingido pelo romance policial. Não admira, por isso, que, a partir da década de cinquenta, Friedrich Dürrenmatt tenha publicado vários títulos dentro deste género, onde pontuam não só a novela agora traduzida, O Juiz e o Seu Carrasco, mas também A Suspeita, A Promessa e, principalmente, a magnífica Justiça (também já traduzida).

 
De facto, o mecanismo narrativo deste género assenta na coerência e na forma como são interrelacionados os elementos da trama, remetendo para segundo plano o critério da verosimilhança e dando, assim, às existências narradas um estatuto clara e estritamente ficcional. Além disso, o romance policial serve a Friedrich Dürrenmatt para fazer constatar que a justiça não passa de um exercício de reordenamento social, cujos resultados são tão lícitos como quaisquer outros, e onde a moral se apresenta, na esfera do privado, como um discurso de arbitrária legitimação que necessita, ainda por cima, do crime para a sua própria formulação.

 
A novela O Juiz e o Seu Carrasco torna bem evidente qual a posição do autor sobre o crime: este é sempre resultado de um confronto de energias, de vontades, de éticas, em suma, de visões do mundo. Num diálogo nuclear entre o “juiz” e o “assassino”, a novela define, de forma bem explícita, quais as “teses” em presença: o “juiz” defende que o crime é uma “estupidez porque é impossível operar com as pessoas como se fossem peças de um xadrez” e porque a “imperfeição humana” e o Acaso fazem com que não se possa “prever com segurança o modo de agir de outrem”; o “assassino” considera que é precisamente “o caos das relações humanas que torna possível cometer crimes” que podem não ser descobertos. E, numa aposta que envolve por completo as suas existências, estas personagens desencadeiam um confronto mortífero.

 
Parece que o próprio desenrolar do enredo vem dar razão à tese do “juiz”. Porém, a estratégia, que permite a “vitória” desta, vem, a seu modo, confirmar que há a possibilidade de determinar o comportamento humano e prever que uma certa acção se reflicta noutra, actuando o criminoso como um jogador de bilhar ao efectuar uma carambola. A eventualidade do “crime perfeito” está, assim, directamente relacionada com a hipótese de o criminoso conseguir ascender a omnisciência de Deus - aquele que está sempre impune. Se, para o autor, já não havia argumentos éticos que inibissem a acção criminosa, o que O Juiz e o Seu Carrasco pretende evidenciar é que não existem também argumentos lógicos que dêem origem a essa inibição.

 
Saliente-se que esta convicção no determinismo dos efeitos - essencial na economia narrativa desta novela - é uma característica constante de toda a obra ficcionista de Friedrich Dürrenmatt e uma das razões porque ela parece estar tão empenhada em hipnotizar o leitor com o fulgor da inteligência que a concebe. No entanto, no caso de O Juiz e o Seu Carrasco, tal não sucede; de facto, a estrutura narrativa é demasiado unívoca, a inverosimilhança da trama não está - como acontece noutras obras do autor – oculta de forma tão hábil e certos diálogos têm um pendor demasiado literário.

 
Publicado no Público em 1993.

 

Título: O Juiz e o Seu Carrasco
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Tradutor: Fátima Freire de Andrade
Editor: Asa
Ano: 1993
121 págs. € 8,06

 



sexta-feira, 6 de novembro de 2015

KATHRYN HARRISON

 
 
 
 
 

A NATUREZA DO SEXO
 
A escritora Kathryn Harrison é conhecida em todo o mundo – e, decerto, sê-lo-á por mais alguns anos e por mais alguns títulos que publique – como autora de uma obra autobiográfica centrada na relação incestuosa que manteve com o pai, a partir dos vinte anos, intitulada, na edição portuguesa, O Beijo. No entanto, é pena que esta escritora norte-americana de quarenta anos - e que, desde os inícios dos anos noventa, já publicou, para além da obra referida, mais quatro romances - veja toda a sua produção literária “ofuscada” pelo escândalo provocado por um único título. Tanto mais que ninguém pode considerar O Beijo como uma obra gratuitamente escandalosa, já que se articula de uma forma coerente com a restante actividade romanesca da autora e, de certo modo, pode ser assumida como uma “chave” que a permite compreender.
 
De facto, o estatuto peculiar que Kathryn Harrison tem hoje na literatura norte-americana advém de toda a sua obra, até hoje conhecida, se argamassar em redor do núcleo temático da obsessão sexual, procurando abordá-la por diversas perspectivas, de forma a perceber como se motiva e constrói - afrontando muitas vezes os fundamentos da “normalidade” social - até à dependência e desagregação de quem a sofre. Para isso, a autora tem recorrido ao romance histórico, muitas vezes em espaços geográficos e civilizacionais bem distantes do seu, com o intuito de demarcar melhor os contextos da sua génese. Além disso, Kathryn Harrison desenvolve esta temática num estilo despojado, de frase curta e seca, descritivo quase ao nível da alusão impressiva, que contribui para evidenciar comportamentos aparentemente desajustados, mas que correspondem a impulsos profundos das personagens que inventa.
 
A Mulher Foca, o último romance da autora, publicado agora no nosso país pela mesma editora das restantes obras já traduzidas (a já referida obra autobiográfica O Beijo e o romance A Cadeira do Suplício), situa-se no inóspito Alasca, por alturas da I Guerra Mundial, quando esta região se tornou um território dos Estados Unidos e era apenas povoada por diversas tribos de esquimós, caçadores de peles, pesquisadores de ouro, ferroviários, etc., de origem principalmente russa, e começava a ser colonizado pela população americana. Diga-se de passagem que o estilo da autora, já caracterizado, descreve de um modo admirável essa população rude, alimentando-se de todo o tipo de caça e de residuais produtos que a “civilização” para lá exporta, e suportando as condições precárias de vida à custa de se manter permanentemente “ensopada” em álcool “martelado”, numa Anchorage ainda só constituída por meia dúzia de ruas, lamacentas e geladas, rodeada de casebres de madeira e tendas.
 
A trama de A Mulher Foca desenvolve-se em redor de um meteorologista americano deslocado para um observatório situado nos arredores da cidade e da sua fixação erótica por uma mulher aleuta (tribo esquimó originária do arquipélago dos Aleutas, no norte do Alasca). As personagens são bem caracterizadas (por um lado, um homem, com formação científica, habituado, mesmo naquelas duras condições, a um trabalho metódico e empenhado de interpretação da Natureza, e uma mulher, oriunda de uma civilização radicalmente distinta, que não fala e pouco percebe dos sinais e códigos quotidianos - objectos, comportamentos – do seu amante), conseguindo a autora demarcar, até aos limites da plausibilidade, a distância abissal dos seus elementos de referência e a existência, entre elas, de mínimos elos de conexão.
 
Por um lado, este contexto histórico e geográfico, hostil e carente (onde o elemento feminino escasseia), permite a Kathryn Harrison colocar o desejo masculino ao nível das manifestações básicas de sobrevivência e evidenciar, com objectividade, a sua componente orgânica, de excitação física, despojando-o de qualquer tipo de sentimentalidade ou de qualquer sofisticação erótica: a pulsão sexual é representada como uma espécie de inscrição da Natureza que, por ciclos de fluxos e refluxos, irrompe e se ramifica no corpo da personagem principal, da mesma forma que as turbulências climáticas se manifestam no planeta – verdadeiras emanações da vontade divina - e que o meteorologista transcreve, pacientemente, para fórmulas e registos, como uma espécie de “escriba” de Deus.
 
Por outro, este contraste civilizacional e cultural entre o meteorologista e a aleuta permite destacar uma das motivações, segundo a autora, da excitabilidade sexual masculina: a opacidade do outro. De facto, o desejo da personagem principal apresenta-se como um impulso orgânico para desbravar o irredutível amâgo da mulher que ele não consegue entender (daí a sua constante perplexidade perante os orgasmos da esquimó e um comportamento, inclusive sexual, que lhe parece “branco” e neutro), mas que também não o aceita (nem a sua linguagem, nem os seus códigos sexuais, nem, por fim, os seus interesses culturais ou as suas opções civilizacionais), e que, por isso mesmo, aparece aos seus olhos como mergulhada numa inquebrável redoma animal. No fundo, a motivação e o sentido da sua abordagem sexual são similares ao que impele a personagem principal (num dos trechos mais conseguidos e interessantes do romance) a aproximar a mão de uma foca em sofrimento, fascinado pelo seu olhar vítreo de resignação.
 
A Mulher Foca é, sem dúvida, pela ambiência e pela fascinante (e até intrigante) dimensão peculiar das personagens, assim como pelo seu estilo e construção narrativa, um dos romances mais aliciantes recentemente publicados no nosso país.
 
Publicado no Público em 2002.

(Foto da Autora de Robert Birnbaum).
 
Título: A Mulher Foca
Autor: Kathryn Harrison
Tradução: Isabel Fernandes
Editor: Bizâncio
Ano: 2002
218 págs., € 14, 13