segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

LEONARDO SCIASCIA

 
 
 
SIMULAÇÃO E MEMÓRIA
 
No Herzog de Saul Bellow, há uma determinada personagem que afirma, a certo passo, que todos os indivíduos têm um conjunto de histórias pessoais que é o seu repertório de poemas. Sempre considerei esta frase como bem definidora da memória como um património pessoal que cria um espaço de identificação, de individualização e, por conseguinte, de fascinação para os outros. Mas será de facto pessoal (e real) a figura que a memória em nós desenha?
 
É esta a questão, notoriamente pirandelliana, que Leonardo Sciascia coloca nesta novela que, com ironia, intitula O Teatro da Memória. Através dum caso judicial, que apaixonou a opinião pública italiana no final da década de vinte, ocasionado pela obstinação de uma viúva, pertencente a uma prestigiada família, em reconhecer, num “desmemoriado” preso por pequenos furtos, o seu marido desaparecido na primeira guerra mundial - mesmo quando a polícia lhe prova que é um vagabundo cadastrado por burla e furto -, o autor encena o constante conflito entre desejo e realidade.
 
Efectivamente, numa realidade estiolada por um esmagador arcaísmo social, o desejo da viúva Giulia Canella, assim como a necessidade de se libertar do destino miserável do “desmemoriado”, leva à criação de um quadro frágil de referências cúmplices, “um ponto de fuga” que lhe permite “interiorizar“ uma realidade mais “verdadeira” do que objectiva. Todo o desenrolar do processo judicial, com o aparecimento de argumentos e contra-argumentos, todos eles pretendendo ser científicos e rigorosos, vai possibilitar a Leonardo Sciascia demonstrar a existência de um imaginário simulante, de um “teatro da memória”, que não só golpeia a memória real, mas, antes do mais, porque desejado, é seu fundador. Entre simulação e memória existe, portanto, uma capilaridade que torna inútil qualquer especulação sobre a verdade subjectiva que a memória deverá representar para cada um de nós.
 
Estas reflexões sobre as relações entre simulação e memória, que Leonardo Sciascia aqui apresenta, por meio da análise irónica dum “fait-divers”, tornam-se estimulantes para a compreensão da génese do mundo ficcional, e, em particular, da sua própria obra, visto que esta parte sempre da hipótese de existir “realmente” uma história e uma memória de um povo (o italiano, o siciliano), para, através de uma criação romanesca empenhada em termos éticos, perceber as transformações culturais que se vão processando na sociedade italiana. Mesmo a própria história literária é entendida por Sciascia como uma longa memória que vai fermentando a constante reprodução de novas obras que dissimulam, e transformam, o sentido das anteriores (daí existir, por exemplo, uma verdadeira “retórica da citação” em toda a sua produção narrativa).
 
Mas esta reflexão de O Teatro da Memória permite também que Sciascia retire dela algumas perspectivas políticas. Por exemplo, o autor considera, de forma objectiva, que o consumo, estimulado pelo poder, provoca um processo de “desmemorização” ou de simulação da memória colectiva, através de mitos urbanos reproduzidos pelos meios de comunicação, e que o poder manobra essa ficção em proveito da sua consolidação. Por isso, a conclusão inevitável: toda a independência resistente começa na luta contra o esquecimento.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
  
Título: O Teatro da Memória
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Maria Luísa Rodrigues de Freitas
Editor: Difel
Ano: 1986
103 págs., € 8,08
 



terça-feira, 15 de novembro de 2016

RAYMOND GUÉRIN

 
 
 

TOUT DIRE
 
Uma preocupação ferocíssima de sinceridade, eis o que apetece afirmar de imediato sobre a obra de Raymond Guérin. E, de tal modo premente, que revolvia o seu modo de escrever: este ficava sujeito, em termos estilísticos, a essa necessidade de rasgar os enquadramentos éticos com que a literatura, até então, procurava, pretensamente, revelar o “real”. Era, para utilizar uma expressão do próprio autor, o desejo de “tout dire”.
 
Uma ansiedade comum que movia também, por outra via, a produção literária dos seus amigos, mais afortunados, Curzio Malaparte e Henry Miller. Mas o público seu contemporâneo — Raymond Guérin viveu entre 1905 e 1955 e a maior parte dos seus livros saíram no período logo após a II Guerra Mundial — etiquetou, a tentativa do autor de instaurar um realismo mais intenso, de “sórdida” e “obscena”, não entendendo esse seu projecto de reinscrever a realidade numa perspectiva mais orgânica, mais visceral, em suma, mais corporal. E rejeitou a sua obra, rodeando-a de silêncio e esquecimento.
 
Além disso, o leitor coevo de Raymond Guérin também não entendeu que esse afrontamento da realidade, rompendo as conveniências éticas e estilísticas, tinha um outro objectivo: conseguir retirar da narração dos perfis contextualizados em situações-limite os arquétipos necessários para delinear um novo “corpus” mítico. Nesse sentido, o seu último romance, Les Poulpes, ao ficcionar a sua experiência nos campos de prisioneiros de guerra nazis, onde passou três anos, é, no pessimismo trágico das situações descritas, o que mais corresponde aos seus parâmetros estéticos.
 
Por isso, as personagens a que Raymond Guérin dá voz e fala em A Pele Calejada, agora apresentada ao leitor português numa excelente tradução de Luiza Neto Jorge, vão confessando-se como meros corpos vivos, fazendo a sua aprendizagem mortal do destino. Personagens mal nomeáveis, negações da excepção: as mesmas, cujos gestos e voz, Viviane Forrester considerava, num belíssimo e recente livro, La Violence du calme, como grãos da poeira sussurrante que faz a História e o tempo.
 
Clara, Jaquina, Luísa. Três irmãs, três corpos de mulheres, cuja pele ainda estremece com o sofrimento, ainda não calejou (calejar a pele era o argumento do pai para justificar a pancada que lhes dava), que se esquivam, como podem e sabem, à malha de morte que lhes querem fazer vestir: a fome, os ritmos desenfreados de exploração, a repressão judicial, o amor sem desejo, os filhos não queridos, os abortos, a doença.
 
Mas presas acossadas, desarmadas pelo querer dos outros. Que as vampiriza: pais, patrões, polícias, juízes, amantes. Forçadas, desde a infância, a só reconhecerem a sobrevivência como modo de estar, impelidas para a marginalidade, como se fosse inerente â sua condição de mulher tudo o que lhes irá acontecer.
 
Estas figuras femininas, sobressaídas do silêncio ruidoso destas páginas, pretendem não ser apenas “voz”, mas “deusas”, representando um exército de sombras que o silvo do tempo teima em silenciar e que Raymond Guérin procura, com o desespero da palavra escrita, manter, a todo o transe, os contornos do rosto e do corpo.
  
A partir de um texto publicado no JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1982.
  
Título: A Pele Calejada
Autor: Raymond Guérin
Tradução: Luiza Neto Jorge
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 1982
96 págs., esg.
 
 
 


sexta-feira, 21 de outubro de 2016

JIM HARRISON

 

 
PELAS DESOLADAS FLORESTAS DO NORTE

 
Já vi várias vezes escrito que Jim Harrison (1937) é uma espécie de lenda viva da literatura americana contemporânea. De facto, já não é comum encontrar um autor, em plena actividade, a escrever uma prosa tão torrencial e telúrica. O seu vigor narrativo remete-nos para certa produção literária dos anos sessenta e setenta (há quem fale dele como um dos últimos expoentes da “geração beat”) e pode afirmar-se, com serenidade, que a sua estirpe literária tem, como pais tutelares, Melville, Thoreau e Whitman e, na sua prosa, confluem as dúcteis sombras de Hemingway, Faulkner e Wolfe. Além disso, o homem é uma figura inesquecível: há nele qualquer coisa de pantagruélico e o seu apetite inesgotável de viver transforma-o numa espécie de sacerdote das coisas boas da vida: a comida, a bebida, a amizade, o sexo e a comunhão com a Natureza.

 
Jim Harrison, que sempre se considerou, em primeiro lugar, um poeta, tem já uma vasta obra, onde se destaca, no campo da ficção, Legends of the Fall (1979), Dalva (1988), Julip (1994), True North (2004) ou The English Major (2008). Nunca foi traduzido ou editado em Portugal.

 
Wolf (1971), a última obra que li de Jim Harrison, é o seu primeiro livro em prosa (por favor, não desistam de ler o livro por causa do filme homónimo que, de acordo com o realizador e os guionistas – que inclui o próprio Harrison -, foi retirado deste romance (?) e que se revelou ser um disparatado equívoco). Segundo o autor, foi o escritor Thomas McGuane, seu amigo, que o incitou a escrever, depois de já ter publicado alguns livros de poemas.

 
Este romance é, de toda a sua ficção, onde é mais notória a presença da “geração beat” e da narrativa californiana (o Henry Miller de Big Sur, John Fante, Jack Kerouac, Richard Brautigan, etc.) e, naturalmente, da prosa de Thomas McGuane.

 
A expressão “A False Memoir” aparece como subtítulo de Wolf e é bem reveladora das intenções de Jim Harrison: pretende-se, antes do mais, estabelecer uma conexão ambígua entre o narrador e o autor, onde, por um lado, se alude a um estatuto de alter-ego e, por outro, se questiona o carácter biográfico da trama, remetendo esta obra para a categoria de romance. De facto, o conjunto de situações narradas serve para representar, de forma contextualizada, o quadro emocional experimentado pelo escritor ao procurar, nas suas deambulações resultantes de uma estrutural insatisfação, algum lastro e sentido para a sua própria existência.

 
O romance entrelaça dois modelos narrativos com uma enorme tradição na literatura americana: primeiro, aquele em que o narrador/personagem principal, por razões voluntárias ou involuntárias, se vê “mergulhado” numa situação limite de isolamento, com poucos meios de subsistência e em estreito contacto com o mundo selvagem, transformando-se a experiência dessa situação numa via iniciática de auto-conhecimento. Swanson, o narrador de Wolf, quando resolve refugiar-se nas Huron Mountains, uma zona de floresta inóspita, totalmente deserta, do Michigan, é com o intuito de, nesse isolamento, procurar perceber o sentido da sua peregrina existência, salpicada de cenas de sexo, muito álcool e encontros de intensa, mas fugaz, camaradagem. Porém, é esta mesma torrente de “flash-backs”, onde se descrevem encontros e desencontros que se registam em diversos locais dos Estados Unidos, que aproxima este romance da linha narrativa de obras que se tornaram conhecidas pela classificação “on the road” (em clara referência ao ultra famoso livro de Jack Kerouac), em que as situações se sucedem numa cadeia que é resultante da “viagem” do narrador/personagem principal e onde vão aparecendo figuras díspares, mas, de forma semelhante, perdidas no seu destino e na sua geografia.

 
Wolf revela ser uma lírica e, ao mesmo tempo, humorada reflexão sobre o desencanto da vida e a busca quase desesperada de encontrar formas que o serenem e superem: o deslumbramento com a Natureza, a solidão contemplativa e silenciosa, o entorpecimento evasivo com o álcool, os momentos de cumplicidade envolvente com os animais, os amigos e as mulheres, e, por último, a escrita e a poesia são entendidos como diversos afluentes que nos encaminham para um júbilo primordial que a passagem do tempo constantemente distancia e esbate.

 
No fundo, esse desencanto com a vida deriva da impossibilidade de atingir uma radical harmonia com a Natureza (tão desejada por toda a “geração beat” e também, por conseguinte, por Jim Harrison): o “lobo” (que dá título ao romance e que nunca aparece), “perseguido” pelo narrador, torna-se a referência simbólica (ou totem, para usar a expressão de um recente autor chinês, Jiang Rong, que escreveu uma vasta obra sobre a estreita relação entre os lobos e as tribos nómadas mongóis) dessa “comunhão selvagem” anterior aos “códigos” com que a civilização defende a humanidade da própria Natureza. De facto, e esta é a contradição dilacerante de toda a obra de Jim Harrison, a civilização, ao permitir que o Homem possua os “códigos” que o protegem da violência natural, transmitindo-lhe os instrumentos (ilusórios) da compreensão e expressão, injecta-lhe, ao mesmo tempo, os germes da incomunicabilidade e, por consequência, o desespero de uma vida que será para sempre incompleta.  

 
Publicado na web em 2012.

(Foto do Autor de Aaron Lynett).

 
 

Título: Wolf
Autor: Jim Harrison
Editor: Delta
Ano: 1981
224 págs., $ 15.00

 

 

 

 

 





terça-feira, 18 de outubro de 2016

ROBERT COOVER 1

 
 

UMA “CRIATURA” DO FRANKENSTEIN SOCIAL

 

Uma constante incómoda na ficção de Robert Coover relaciona-se com o sentido que motiva a sua própria produção. E tal acontece, não tanto porque ele seja complexo ou de difícil legibilidade, mas porque é de uma linearidade tão óbvia que o leitor fica com a sensação de que o fizeram cair num logro bem urdido. E esta sensação é ainda mais reforçada quando se toma conhecimento que o autor é considerado (com John Barth, Donald Barhelme, Thomas Pynchon e alguns mais) como um dos escritores norte-americanos mais influentes das décadas de sessenta e setenta e um dos rostos do chamado “pós-modernismo” americano.

 
Como sempre sucede, a leitura da novela O Que Aconteceu a Gloomy Gus? provoca também esta sensação de logro; mas é a própria obra que alerta o leitor (e de uma forma muito mais conseguida do que na “short-story” A Criada e o Amo há alguns meses traduzida e editada) para outros sentidos e objectivos.

 
Desde o início que se entende existir um objectivo explícito: tentar caracterizar, através da análise da uma personagem – o futebolista Glommy Gus, morto pela polícia numa manifestação de operários grevistas -, os valores e os mitos que “fazem correr” o homem americano na sua busca de afirmação social.

 
Para isso, Robert Coover resolve elaborar, nesta novela, uma ficção “histórica” e (eventualmente) uma “parábola”. A acção situa-se, no final dos anos trinta, nos meios comunistas e esquerdistas americanos, quando estes optavam entre juntar-se às forças republicanas espanholas na sua luta contra Franco ou, aproveitando-se da situação social provocada pela Grande Depressão, contribuir para agudizar os conflitos de classe contra o poder capitalista americano (e saliente-se que a admirável perícia revelada por Robert Coover na construção deste cenário traz-nos à lembrança o cronista por excelência destes meios e desta época: John dos Passos).

 
E a primeira questão, que a novela levanta, é perceber qual a motivação que levou Robert Coover a preferir este contexto histórico. Talvez que a explicação se encontre no facto de este ser o último período, antes da integração daqueles meios contestatários na administração New Deal e a sua posterior perseguição pelo maccarthysmo, em que a rebelião (parafraseando o filme de Nicholas Ray) tinha uma causa unívoca.

 
Mas, decerto, a razão principal está na facilidade com que assim se definem os contornos do narrador. Este é um escultor judeu, obcecado por Máximo Gorki (cuja obra segue como um breviário e que, curiosamente, aparece aqui irreconhecível), e de quem vai esculpindo, entre estatuetas de futebolistas, um imenso busto, utilizando, como material, desperdícios de metal encontrados em fábricas.

 
É segundo a perpectiva deste narrador que a personagem de Gloomy Gus nos vai ser apresentada. Ansiando por sistema ultrapassar-se e, dessa forma, conseguir o reconhecimento dos outros, Gloomy Gus resolveu abandonar todas as capacidades multifacetadas em que se revelara particularmente apto para se dedicar, através de uma disciplina exaustiva, a superar as inépcias que ocasionaram a sua rejeição social: o futebol e o sexo. A sua formação vai ser assim uma espécie de desconstrução para, através de uma interiorização metódica de um complexo jogo de comportamentos reflexos, aparecer reconstruído como uma marionete programada: é desta forma que Gloomy Gus se torna num futebolista adulado por toda a América e num campeão sexual inultrapassável. O mal vem quando, depois de atingir os píncaros do sucesso e da fama, lhe percebem os mecanismos que desencadeiam a sua acção, levando-o a comportar-se no campo de futebol como se estivesse na alcova, e vice-versa…

 
É então só aqui que se percebe qual o “objectivo implícito” de O Que Aconteceu a Gloomy Gus? e como este tem, no essencial, uma dimensão de “exercício de coerência formal”, em que a soldagem se torna o elemento de construção narrativa determinante. De facto, assim como o narrador esculpe, soldando, de forma minuciosa, desperdícios da produção industrial, também a sua narração é a expressão de uma amálgama de citações (o desperdício da literatura?) de Máximo Gorki, e a sua pespectiva de Gloomy Gus é a de uma soldagem de valores e comportamentos estereotipados que são impostos, em termos sociais, nos Estados Unidos, como paradigmas.

 
É óbvio que Robert Coover deixa em aberto a intenção última desta sua novela: será elaborar uma parábola que evidencie a estrutura caracterial do homem contemporâneo como a de um simples “puzzle” descaraterizado ou deleitar-nos com um soberbo exercício narrativo? O leitor que decida.

 

Publicado no Expresso em 1989.

(Foto do Autor de Stew Milne).

 

Título: O Que Aconteceu A Gloomy Gus?
Autor: Robert Coover
Tradução: Rui Wahnon
Editor: Presença
Ano: 1989
150 págs., esg.

 





terça-feira, 11 de outubro de 2016

JULIÁN AYESTA

 
 
 

A SOMBRA DO DESEJO
  
Chamou-me a atenção, nos últimos tempos, a leitura de algumas referências críticas sobre um autor espanhol que desconhecia: Julián Ayesta. De facto, em diversos “sites” e jornais afirmava-se, de forma mais ou menos categórica, que a sua novela Helena O El Mar Del Verano era uma das “obras mais importantes da narrativa espanhola do pós-guerra”. Ora, eu considero que tenho um razoável conhecimento da literatura contemporânea espanhola, que li algumas das mais importantes histórias da literatura deste período, e não me recordo de alguma vez ter registado alguma referência sobre o autor. Naturalmente, esta situação acicatou-me o interesse em obter mais informações sobre Julián Ayesta e em ler a citada novela.
 
É evidente que estas classificações valem o que valem (a propósito: convém deixar claro que, no quadro dos parâmetros cronológicos da literatura espanhola, a referência “pós-guerra” delimita as décadas imediatas à Guerra Civil) … De qualquer forma, se tivermos em consideração os inúmeros romancistas e novelistas que são reconhecidos, tanto em Espanha como em termos internacionais, como grandes criadores que iniciaram a sua produção ou publicaram algumas das suas obras mais importantes neste período (recordo, a título de exemplo, os nomes de Camilo José Cela, Gonzalo Torrente Ballester, Miguel Delibes, Cármen Laforet, Luís Martin-Santos, Juan Goytisolo, Juan Benet, Rafael Sanchez Ferlosio, Juan Garcia Hortelano e Ignacio Aldecoa), parece-nos estas declarações - em louvor de um autor desconhecido - bem arrojadas…
 
Os dados biográficos mais relevantes do autor permitem-nos, em parte, compreender as razões por que a sua obra caiu num relativo esquecimento ou sofreu uma posterior desvalorização. Julián Ayesta (1919-1996) nasceu em Gijón, no seio de uma família prestigiada localmente, alistou-se muito novo na Falange (ainda antes da Guerra Civil), formou-se em Direito e em Filosofia, e, a nível profissional, ingressou na carreira diplomática, onde permaneceu toda a sua vida. Ao mesmo tempo, nos meios literários, participou em tertúlias e colaborou em algumas revistas, e, por fim, publicou algumas peças de teatro… e a referida novela breve Helena O El Mar Del Verano. Já postumamente, e devido ao trabalho dedicado de um especialista, António Pau, foram publicados mais alguns contos e poemas. Por último, e um pouco para perceber o seu perfil literário, saliente-se que o próprio Julián Ayesta reconheceu a importância estética que dava à obra poética de Vicente Aleixandre (1898-1984), Prémio Nobel da Literatura de 1977 e figura proeminente da chamada “Geração de 27”.
 
Se virmos bem, nesta resenha biográfica estão todos os ingredientes típicos de uma vida exemplar de caballero, bem integrado – ou, pelo menos, acomodado - na sociedade franquista. Ora, é sabido que os historiadores da literatura espanhola do séc. XX sempre desvalorizaram as personalidades e os movimentos literários que não se demarcaram com nitidez, em termos éticos e políticos, do regime de Franco… Talvez esteja aqui um dos motivos por que estes historiadores, durante algumas décadas, passaram ao largo da criação literária de Julián Ayesta.
 
Helena O El Mar Del Verano foi publicada em 1952, tem sido reeditada com regularidade, em particular na última década, e já foi traduzida para várias línguas europeias. A que se deve a “boa fortuna” desta novela que, pelos vistos e achados, foi uma produção solitária de Julián Ayesta?
 
Creio, sem sofisma, que o forte poder de sedução desta narrativa resulta, em primeiro lugar, do seu programa narrativo, todo ele enunciado no título: a praia, o Verão e a descoberta das primeiras emoções eróticas e afectivas. Neste sentido, Helena O El Mar Del Verano traz-nos à lembrança algumas obras com uma ambiência similar, principalmente das literaturas do mundo mediterrânico e… escandinavo, e, muito em particular, certos autores italianos – recordo-me de algumas obras de Cesare Pavese (1908-1950) ou de um autor um pouco esquecido, mas cuja leitura muito me empolgou quando o li há já alguns anos, Pier Antonio Quarantotti Gambini (1910-1965).
 
Esta curta novela é estruturada num tríptico (“En Verano”, “En Inverno”, “En Verano Outra Vez”), sendo a primeira e última parte subdivididas, por sua vez, em três. Saliento este aspecto, porque se percebe que esta estrutura revela que existem dois painéis estivais, luminosos, associados ao prazer e à descoberta, enquadrando um central, sombrio e auto-punitivo, relacionado com o lado fantasmagórico e o fortíssimo “sentimento de pecado” do narrador.
 
Convém agora referir que Helena O El Mar Del Verano tem, como narrador, um jovem no início da sua adolescência e que, portanto, toda a obra se estrutura nesta perspectiva, incluindo, obviamente, as técnicas narrativas utilizadas.   
 
De facto, uma das principais características estilísticas desta obra é a sua dimensão sensorial, em particular na sua componente visual (os adjectivos ligados à luz e à cor são uma constante levada à exaustão), associada a uma enorme coloquialidade e a um uso mais que sistemático das copulativas. Há, por isso, em toda a obra, uma espécie de facilitismo sintáxico, claramente intencional, que nos faz recordar a escrita dos jovens na primeira adolescência. Mas, e é também importante salientar este aspecto, é nesta aparente singeleza estilística que está um outro dos principais elementos sedutores de Helena O El Mar Del Verano.
 
Como vimos, a própria estrutura da obra parece realçar que o tema central da narrativa não é tanto aquilo que está programado no título, mas o tal “sentimento de pecado” que, de forma quase obsessiva, é analisado no painel central. Ao enquadrar esta temática com as descrições dos momentos de júbilo e descoberta da felicidade dos painéis laterais, o autor parece dar a entender que estes momentos têm sempre um substrato sombrio, como se o desejo – que impele para esses momentos de júbilo – obrigatoriamente levasse a uma consumação carnal que, ao acicatar a luxúria, conspurca, degrada e humilha. De facto, é como se esse impulso “desaguasse” num rito vexatório (numa nova crucificação) de Jesus, gerador de uma culpabilização que só volta a diluir-se com o renascer do desejo. No fundo, este painel central, ao mostrar a profunda imbricação (que, na sensibilidade do narrador, atinge por vezes o registo da alucinação) entre sentimento de culpa e de pecado com o sentido da fé e da punição cristã, evidencia como ela tem um papel nevrálgico para a estrutura emocional e sentimental do homem espanhol no período franquista.
 
Por conseguinte, o que o narrador descobre na praia e nos campos que rodeiam a casa estival de família – nos momentos em que vai “reconhecendo” o corpo, por vezes arredio, de Helena – é que a felicidade está sempre conectada com o sentimento de culpa e que esta conexão é – e será sempre – uma manifestação do “pecado original”: é essa a razão profunda porque os momentos amorosos lhe aparecem sempre cobertos de um manto de fluorescente tristeza. Na mente do narrador, esta descoberta torna-se a “chave” iniciática que permite entrar na câmara da idade adulta, levando-o a sentir uma cumplicidade surda, implícita, com a comunidade varonil da família (bem representada no trecho em que o narrador procura, com um enorme entusiasmo, entrosar-se no ritual dos serões de conversa, café e cigarros, após os jantares).
 
Em conclusão, creio que é mais correcto considerar, mesmo reconhecendo a existência de diversos elementos sedutores e envolventes em Helena O El Mar Del Verano (por exemplo, o ritmo frásico encantatório, resultante da sua estrutura repetitiva), que esta novela é apenas uma interessante “preciosidade literária”, bem invulgar, pela sua “leveza” narrativa, numa época que se distinguiu por obras romanescas tensas e crispadas tanto em termos literários como políticos.
 
Publicado na web em 2009.
 
 
Título: Helena O El Mar Del Verano
Autor: Julián Ayesta
Editor: Acantilado
Ano: 2002
87 págs., € 10,00
 
 
 


LILLIAN HELLMAN

 
 
UM RASTRO DE NÉVOA
 
Há livros que parecem ser escritos de coisa nenhuma. Como se registassem uma mera busca, a procura do fio que a meada das palavras e do tempo pretende esconder. É o caso de Talvez de Lillian Hellman
 
Esta “novela” é autobiográfica. Ou “talvez” seja. Porque, antes do mais, é resultante de um tremendo esforço de memória, numa luta dolorosa contra o envelhecimento, tentando descobrir a efectiva importância de pessoas, do que elas disseram, ou fizeram, e que “talvez” tenha ferido mais do que elas pretendiam ou eram capazes.
 
Mas os amigos morreram, os lugares transformaram-se. E o corpo começa, como um estranho, a viver, incapaz, por doença, de satisfazer o querer e o desejo, perdendo a certeza sobre um passado que só parece um contínuo desperdício de emoções e afectos.
 
Lillian Hellman sempre procurou, na sua produção literária, uma brutal sinceridade consigo própria, num irresolúvel ajuste de contas. E, por isso, Talvez (que título tão eficazmente adequado!) é o registo das próprias dificuldades resultantes do confronto entre a exigência dessa sinceridade e uma memória que já não consegue corresponder-lhe, e que torna difusa a existência de pessoas e de lugares que se sabe, no entanto, muitas vezes com que mágoa, que existiram.
 
Talvez é um livro comovente. Comovente pelo que tem de “exposto”; mas também porque é feito de contenção, de controle emocional. A aplicação de técnicas de concisão verbal e narrativa, oriundas de práticas jornalísticas, à área das estruturas novelescas é, sem sombra de dúvida, um dos maiores contributos estilísticos devidos a ficção americana, principalmente à chamada “geração perdida”. Lillian Hellman revelou sempre um particular domínio destas técnicas, o que faz com que o seu estilo tenha uma dimensão ética que acentua a expressividade dos elementos dramáticos.
 
Mas este livro é também bastante revelador da ambiência vivida no período entre as duas guerras mundiais. Período de descoberta, de afirmação crescente de valores e códigos comportamentais que caracterizaram os anos seguintes deste século. E, assim, vivido com o excesso lúdico que define os períodos de intensa inovação. As personagens que Talvez faz aparecer, numa névoa de álcool e outros estimulantes, vivem numa aparente, mas sedutora, gratuitidade.
 
Lillian Hellman é um daqueles casos, tão característicos da literatura americana, em que percurso pessoal e produção literária estão imbrincados em profundidade, dificultando uma avaliação objectiva da sua obra. Mas sobre o percurso de Lillian Hellman, que viveu uma relação tão dramaticamente exemplar com Dashiell Hammett, remeto os leitores para o apaixonado artigo assinado por Batista-Bastos, e publicado por alturas da morte da escritora, neste mesmo jornal.
 
De facto, Lillian Hellman sempre procurou, tanto na sua escrita, em particular dramática, como na sua vida, afirmar a intensidade e a paixão. Por isso, fez sempre uma defesa obstinada da liberdade de sentir e agir, até ao limite da contradicção e do erro, confrontando os poderes estabelecidos, mas também possíveis aliados e amigos, numa obsessiva necessidade de manifestar a sua independência. Ora, é isto que, na sinuosidade da memória e da escrita, Talvez procura registar.
 
Quero salientar, por fim, que esta edição, pela tradução muito conseguida de Carlos Leite, mas, em particular, pela capa de João Botelho, um notabilíssimo trabalho visual, transmite, a qualquer pessoa apaixonada por livros, um grande prazer pela sua posse. Pena é que, a ensombrá-la, tenha havido uma revisão gráfica tão pouco cuidada…
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
 
Título: Talvez
 Autor: Lillian Hellman
 Tradutor: Carlos Leite
 Editor: Relógio d’Água
Ano: 1984
71 págs., € 4,54
 
 



sábado, 1 de outubro de 2016

ALESSANDRO BOFFA

 
 
 

ÉS UM ANIMAL, LEITOR!
 
Certo dia, numa sessão pública sobre literatura para a infância e juventude, ouvi o escritor e poeta Manuel António Pina dizer que se irritava um pouco com esta classificação, porque, para ele, “a boa literatura para a infância e juventude é, antes do mais, boa literatura e ponto”. E recordava casos de obras clássicas bem conhecidas cuja inclusão na chamada literatura para a infância e juventude derivava mais do nível etário do leitor do que das características da própria obra. Confesso que, enquanto o ouvia, um pouco indeciso sobre a pertinência das suas afirmações, tentei recordar-me de casos de obras que ilustravam bem estas considerações: deixando de lado os casos clássicos, lembrei-me, entre outras, das obras “ditas de literatura para a infância e juventude” do próprio Manuel António Pina e das novelas de um escritor alemão de que gosto muito, Michael Ende (1929-1995).
 
Ao ler agora a única obra publicada de um autor italiano chamado Alessando Boffa, intitulada Sei Una Bestia, Viskovitz, recordei esta sessão e pensei que estava em presença de mais um bom exemplo para fundamentar as considerações de Manuel António Pina.
 
Torna-se difícil para mim recordar como descobri este autor de língua italiana. Creio que foi na web, na minha constante busca de obter informações para a base de dados que ando, há vários anos, a construir. Penso que deve ter ajudado a referenciá-lo o facto de saber que o seu livro foi publicado, na edição americana, por uma das editoras que mais aprecio (Alfred A. Knopf). De qualquer modo, aquilo que li na web acicatou-me o suficiente para comprar o seu livro e lê-lo - numa voragem.
 
Muito pouca informação consegui recolher sobre Alessandro Boffa. Sei que nasceu em 1955, em Moscovo, que é biólogo de formação e profissão, que tem vivido um pouco por todo o mundo e que, presentemente, vive entre a Tailândia e Roma…E que, em 1998, publicou Sei Una Bestia, Viskovitz, que obteve um significativo sucesso crítico (ganhou o Prémio Elio Vittorini) e comercial, tendo sido de imediato traduzido para diversas línguas e editado num número significativo de países.
 
Antes do mais, gostaria de tornar bem clara a minha posição em relação a esta obra, fazendo uma afirmação categórica: há já alguns anos que não lia nenhum conjunto de narrativas que considerasse tão deliciosamente divertido, fruto de um humor inteligente, e conseguindo, com argúcia (e uma boa dose de afecto), desvendar muitas das mais comuns fragilidades da condição humana… e animal. Algumas destas narrativas demonstram uma notável perícia ficcional e são tão habilmente construídas que se tornam de todo inesquecíveis. Estamos em presença – e não tenho nenhum receio em o afirmar – de uma “pequena obra-prima”.
 
A ambição de Alessandro Boffa, ao redigir Sei Una Bestia, Viskovitz, é inequívoca: construir um novo fabulário na tradição de Esopo e de La Fontaine. E – é outra aposta decisiva – com um programa narrativo na aparência simples e constante nas vinte “histórias” que constituem a obra: há um protagonista, Viskovitz, que deseja incessantemente “copular” com a bela Ljuba, aparecendo, em seu redor, um conjunto de figuras secundárias, os “companheiros” (?) Jana, Zucotic, Petrovic e Lopez que, com os seu conselhos e a sua acção, perturbam ou estimulam o problemático protagonista a “consumar” os seus desejos. Por conseguinte, o que na essência muda de história para história é o animal e, por consequência, as suas referências biológicas e etológicas.
 
De facto, sem ser uma obra de divulgação científica (é importante que o leitor não se iluda e tenha presente que o livro de Alessandro Boffa não pretende, de forma alguma, perseguir este objectivo), toda a trama narrativa de cada fábula procura respeitar, com alguma “recriação”, as características biológicas e comportamentais do animal que o protagonista e os restantes personagens encarnam. Saliente-se que, no essencial, não existe, também neste aspecto, nenhuma substancial diferença entre Sei Una Bestia, Viskovitz e a tradição fabularia já referida. Simplesmente, os conhecimentos científicos sobre o mundo animal aumentaram de forma expressiva nas últimas décadas e hoje é possível, como exemplifica bem esta obra, construir narrativas cujas personagens são caracóis, esponjas, louva-a-deus, escaravelhos, camaleões ou tubarões, e, com essa opção, arquitectar situações que, em termos analógicos, podem esclarecer inúmeras ambiguidades, obscuras fantasias, terrores, etc., que assaltam e inquietam os leitores humanos nas suas deambulações amorosas e nas suas tentativas para conseguir alguma felicidade e harmonia nesta vida.
 
Esta obra de Alessandro Boffa parte de uma constatação simples e facilmente admissível para o leitor: a de que os impulsos que estruturam a vida (a sexualidade e o desejo de reprodução, o instinto de sobrevivência e o repúdio da morte) são universais (isto é, comuns a todos os seres vivos) e, portanto, que existe este mínimo denominador entre os homens e os outros animais. Por isso, pode afirmar-se que está na matriz desta obra a convicção de que o leitor irá efectuar de forma constante, no acto de leitura, um exercício analógico entre as situações descritas no contexto animal e a sua própria experiência humana. E que esse exercício analógico se torna quase instintivo e, por conseguinte, subliminar a qualquer atitude consciente…
 
Contudo, não há nenhuma intenção “moralizadora” em Sei Una Bestia, Viskovitz, como existia na linha fabularia de Esopo e La Fontaine: é evidente que Alessandro Boffa sabe que hoje não é admissível associar a Natureza a qualquer tipo de ética – até mesmo no reino da fábula. Porém, pode-se, in extremis, deduzir destas histórias que os factores biológicos têm no comportamento e nas acções humanas uma capacidade condicionante superior ao que racionalmente se pode aceitar, considerando esta dedução como um princípio geral de uma ética.
 
Sem contar a trama de nenhuma destas fábulas, não resisto à tentação – com o fim de acicatar o apetite do leitor – de contextualizar algumas destas personagens. Imagine-se um caracol (recorde-se que é hermafrodita) que se apaixona por uma amada(o) que está à distância de uma vida; ou um louva-a-deus que só sobrevive em consequência de sofrer de ejaculação precoce; ou um camaleão, cujos problemas de identidade levam também a não conhecer de facto quem é a sua amada; ou as dificuldades de comunicação do esgana-gata (?), mergulhado no seu aquoso silêncio; ou a absurda história de amor de um leão que sobrevive à conta de documentários “wildlife”, etc., etc.
 
Percebe-se, por esta meia dúzia de exemplos, que a maior evidencia literária desta obra é o seu humor, presente não só na sintaxe, nas opções lexicais e na construção dos diálogos, mas principalmente na própria concepção das tramas narrativas. Além disso, dado o jogo de similitudes que as diversas situações descritas provocam, pode considerar-se que, numa perspectiva do público infantil, estas fábulas são excelentes instrumentos para o desenvolvimento da capacidade lógica.
 
Por tudo isto, deve compreender-se o nosso entusiástico conselho para que exista uma tradução portuguesa de Sei Una Bestia, Viskovitz no mercado editorial português: tenho quase a certeza que esta obra irá afirmar-se como uma boa via para estimular os hábitos de leitura entre a população juvenil e (porque não dizê-lo?) uma aposta interessante em termos comerciais.
 
 
Publicado na web em 2009.
 
 
Título: Sei una bestia, Viskovitz
Autor: Alessandro Boffa
Editor: Garzanti
Ano: 1998
141 págs., € 8,00
 
 
 
 
 
 


terça-feira, 27 de setembro de 2016

ÁLVARO MUTIS 2

 
 
 

O NAVIO DO ENCANTAMENTO
 
Quando se pensa, em termos literários, na Colômbia, um único nome parece pairar sobre este país: Gabriel García Márquez. No entanto, na Europa, e principalmente em Espanha, um outro nome, nos últimos anos, tem granjeado bastante prestígio, ao ponto de hoje ser encarado como um dos expoentes das literaturas latino-americanas contemporâneas: esse nome é o de Álvaro Mutis, o autor de quem foi agora traduzida pela primeira vez uma novela, A Última Escala do Tramp Steamer.
 
Nada, contudo, aproxima em termos literários o engenheiro Álvaro Mutis do seu nobilitado conterrâneo e amigo. Nascido em 1926, logo no final da década de quarenta começou a publicar poesia. Desde essa época até aos dias de hoje, Álvaro Mutis tem construído uma importante obra poética (muito louvada por outro Nobel: Octávio Paz) e que é, quase toda ela, centrada numa personagem que funciona como seu “alter-ego”: o marinheiro Maqrol el Gaviero.
 
Foi já depois do seu reconhecimento como poeta que este autor iniciou a sua produção narrativa, motivado pela necessidade de dar uma dimensão diferente à personagem de Maqrol el Gaviero. Hoje, novelas, como La Nieve del Almirante, Ilona Llega con la Lluvia e Un Bel Morir, entre outras, deram ao narrador um prestígio semelhante ao que já tinha como poeta e transformaram o conjunto da sua obra, interligada pelo mesmo protagonista, num dos mais aliciantes projectos literários das letras hispânicas.
 
Todo o universo narrativo deste autor tem um ascendente marcadamente cosmopolita. As suas referências literárias têm origem em Stevenson, Melville e, de forma bem explícita, nessa figura de charneira da literatura inglesa do princípio do século que é Joseph Conrad. Porém, foi essa formação “europeia” que tem permitido a Álvaro Mutis efectuar uma original e polémica reflexão sobre o percurso e o papel da cultura europeia no confronto com as realidades americanas. Além disso, sabendo o estatuto que a personagem tem para o autor, compreende-se que Maqrol el Gaviero seja também caracterizado como um “europeu” em “terras estranhas”.
 
A Última Escala do Tramp Steamer é uma das poucas novelas de Álvaro Mutis que parece sair do ciclo de Maqrol el Gaviero. No entanto, nem por isso deixa de ter uma estrutura narrativa menos conradiana do que qualquer uma das outras. Como em Conrad, aqui encontramos o narrador que tem conhecimento da acção através do testemunho directo dos protagonistas, que intervém de forma cúmplice nessa mesma acção e que, por fim, sente uma certa necessidade ética em a transmitir em termos narrativos.
 
A trama desta novela tem a simplicidade das histórias de amor impossível e que, por isso mesmo, são vividas com a intensidade do que se sabe, desde o princípio, que é precário.
 
O narrador, andarilho do mundo, encontra, nos lugares mais díspares do globo, um velho cargueiro do tipo “tramp steamer”. Essas autênticas aparições, pelo seu carácter de excepção, fazem, aos olhos do narrador, com que aquele barco - sem rota certa, em serviço de fretagem entre os portos da Europa e da América, e que, a todo o momento, parece naufragar - se torne uma metáfora premonitória de um destino, ao mesmo tempo, pessoal e universal.
 
Porém, o narrador vem a saber, por longas conversas nocturnas com um companheiro de viagem a bordo de um rebocador descendo o rio Orinoco até à foz, que o acaso quis que essas aparições fizessem dele testemunha involuntária (e há, nesta situação do narrador, uma determinada perspectiva do estatuto do escritor) de uma história de amor efémera – porque inconciliável culturalmente - entre um basco e uma libanesa; uma história de amor que nasceu por causa daquele velho cargueiro, que nele foi vivida e que o ansioso desejo dos amantes em mantê-la explica, no fundo, a sua “resistência” quase milagrosa às intempéries.
 
A ambiência da obra e o tom melancólico com que esta história é narrada transmitem uma imagem nostálgica e um pouco fatalista da existência. De facto, as personagens agem como se estivessem convictas de que, como sinal de Graça dado pela Criação, todos têm de cumprir uma história de amor: a existência toma-se num percurso de iniciação ao encantamento e, depois da consumação deste, numa funesta descida em que o corpo se prepara para se afundar na corrente do esquecimento. Pelo meio, fica a obrigação de, através dos filamentos subterrâneos da amizade e da arte, se expressar o sentido com que a existência jovialmente se sacrificou.
 
É nítido, em A Última Escala do Tramp Steamer, no seu estilo fluente, classicizante e erudito, o gosto de contador de histórias de Álvaro Mutis. Esta novela, até na sua textura singela e concisa, lembra o rebocador em que o narrador desce a corrente serena de um rio, deixando que o leitor descubra as sinuosidades das margens, que se deslumbre com um céu repleto de estrelas e que vá adquirindo a certeza que, ao chegar à foz, irá achar que foi gratificante a viagem.
 
Publicado no Público em 1993.
 
 
Título: A Última Escala do Tramp Steamer
Autor: Álvaro Mutis
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
Editor: Asa
Ano: 1993
127 págs., € 8,06