terça-feira, 5 de abril de 2016

BOHUMIL HRABAL 2

 


CICATRIZAR
 
Por vezes, o tempo parece que sofre uma ferida profunda e que deixa de crescer. Para que ela cicatrize, é necessário exorcizar o tempo que ficou para trás dessa ferida. Mas para muitos já é tarde de mais, já envelheceram e não têm ânimo para recuperar: ficam irremediavelmente presos a esse tempo, espectros em vida, memórias palpáveis de algo que já não existe.
 
A Terra Onde o Tempo Parou, a última “autobiografia mistificada” de Bohumil Hrabal a ser traduzida (a classificação é do próprio autor), é uma tentativa de compreender, através de uma saga familiar, gentes expurgadas da história. Neste sentido, esta novela, ao evocar essas gentes que duplamente morreram, é, como toda a efectiva criação, um exorcismo da morte, urna forma particular de cicatrizar as feridas que atingiram a Checoslováquia deste século: a ocupação nazi, a implantação do Estado socialista.
 
À primeira análise, para quem leu Comboios Rigorosamente Vigiados ou Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, esta novela não traz nada de novo ao que se conhece da obra de Bohumil Hrabal. Mas esta constatação é verdadeira e falsa. Todos os romances e novelas deste autor estão muito interligados e prolongam-se uns nos outros (não admira por isso que, por exemplo, o tio Pepin, personagem determinante de A Terra Onde o Tempo Parou, ressuscite em As Núpcias na Casa, um romance posterior ainda não traduzido). Bohumil Hrabal escreve e reescreve as suas obras (correm varias versões dos seus romances no seu país natal) num autêntico exercício terapêutico em que, ludibriando a memória com a imaginação, recria um tempo próprio, transfigurado. O exercício, como qualquer modalidade terapêutica, repete-se na forma e no estilo, mas é a própria repetição que possibilita a Bohumil Hrabal construir constantes (e inesquecíveis) variantes de personagens e situações com que povoa um tempo que é um reflexo aquoso do passado.
 
É comum salientar-se a originalidade do humor de Bohumil Hrabal — e hoje já não há a menor dúvida em afirmar, com segurança, que ele é um dos maiores humoristas deste século. Mas poucas vezes vi referido como esse humor está relacionado com o trabalho que o autor exerce sobre a sua memória e o seu passado. E esse trabalho de reactualização e recriação do passado que provoca em Bohumil Hrabal uma aguda consciência da forma como a morte redimensiona as existências. O humor é resultante desta compreensão de que o logro é o elemento essencial do humano e que, por consequência, tudo e nada tem uma infinita importância. Por isso, o humor de Bohumil Hrabal nunca reduz ou caricaturiza, antes, de um modo constante, afirma a absoluta dignidade de se ser imperfeito.
 
Mesmo romances tão nostálgicos como A Terra Onde o Tempo Parou são, por conseguinte, atravessados por uma truculenta alegria que é uma das mais espantosas expressões de vida na literatura contemporânea. Quando o pai Francin regressa do asilo onde foi despedir-se do tio Pepin, que, a morrer, se interroga pelo “que será do amor”, sabe que o tempo do deão que se excitava a cheirar o traseiro das criadas, das “belas meninas” dos bares que o tio Pepin cativava com danças espalhafatosas e conselhos de “higiene sexual”, do talhante que clamava pelas ruas da terra a chegada do Armagedão e da sua mulher de imensa cabeleira perfumada, etc., o seu próprio tempo, já desapareceu e que não lhe deram as chaves para abrir o novo. Por isso, em cima de uma ponte sobre o Elba, pegou no chapéu de marinheiro com que o tio Pepin seduzia as “belas meninas” e lançou-o ao ar; o boné brilhou ao sol e caiu sobre a corrente sem se afundar, deslizando até ao mar e deixando-lhe uma “lembrança luminosa”. É essa luz que indica ao pai Francin qual o lugar da morte na vida; e é essa luz que os romances de Bohumil Hrabal ajudam o leitor a descobrir, antes de chegar o momento de ficar com os seus olhos definitivamente vítreos.
 
Publicado no Público em 1990.


(Foto do Autor de Hana Hamplová).
 
 
Titulo: A Terra Onde o Tempo Parou
Autor: Bohumil Hrabal
Tradução: Ludmila Dismanová e Mário Gomes
Editor: Ed. Afrontamento
Ano: 1990
131 págs., € 6,56