segunda-feira, 22 de agosto de 2016

FLEUR JAEGGY

 
 

 
VIAGEM NO MAR DA MORTE

 
Creio que a primeira vez que me chamou a atenção o nome de Fleur Jaeggy foi por causa de um título de uma obra sua: I Beati Anni Del Castigo. De facto, conheço poucos títulos que sejam tão intrigantes e fascinantes. Primeiro, pelo seu sentido litúrgico e sacrificial. Segundo, pela musicalidade das palavras.

 
Quase de imediato, intrigou-me o nome da autora, Fleur Jaeggy, muito invulgar para uma italiana. Vim mais tarde a saber que não era italiana, mas suíça. Julguei de início que fosse originária dos cantões cuja população fala italiano, o que mais me acicatou o interesse, pois não conhecia nenhum autor que aí tivesse nascido. Por fim, descobri que a autora tinha nascido em Zurique, em 1940, que viera muito nova para Roma e que, desde 1968, passara a viver em Milão, assumindo a língua italiana como sua. 

 
Numa segunda fase, fui constatando certas “afinidades electivas” de Fleur Jaeggy. Primeiro, que, ainda muito nova, fora uma amiga chegada de Ingeborg Bachmann (1926-1973) - essa inqualificável e atormentada escritora que, com Thomas Bernhard, domina como figura tutelar a literatura austríaca do pós-guerra - e que esta acompanhou os inícios literários de Fleur Jaeggy, fascinada pela sua sensibilidade peculiar e o seu talento estilístico. Segundo, que, em 1968, casou com uma das figuras cimeiras da cultura italiana contemporânea, o escritor e editor Roberto Calasso (1941), não só um admirável prosador e ensaísta (relembro As Núpcias de Cadmo e Harmonia e Os Quarenta e Nove Degraus, publicados pela Ed. Cotovia, e A Literatura e os Deuses, pela Gótica) como um notabilíssimo editor, responsável por uma chancela italiana - que é um caso quase milagroso de coerência intelectual e estética - chamada Adelphi.

 
Em seguida, ao ler algumas referências à obra de Fleur Jaeggy, percebi que esta tem sido comentada e elogiada por escritores de enorme prestígio na literatura contemporânea, como Joseph Brodsky, Giorgio Manganelli, Pietro Citati, Susan Sontag (que considerou, no “Times Literary Suplement”, a tradução em inglês de uma das suas novelas como o livro mais importante publicado nesta língua em 2003), Cathleen Schine e Tim Parks. Por último, que as suas obras têm recebido inúmeros galardões italianos (Prémios Bagutta, Boccaccio Europa, Moravia, Viareggio) e têm sido traduzidas para várias línguas.

 
Por tudo isto, há quem considere Fleur Jaeggy uma das mais importantes autoras de língua italiana da actualidade. Em Portugal, creio que é quase de todo desconhecida e nunca foi traduzida nem publicada.

 
O conjunto da obra desta autora é muito escasso: em quarenta anos, publicou meia dúzia de títulos e as suas obras caracterizam-se por serem tão breves quanto densas. De facto, é habitual referir-se, quando se fala de Fleur Jaeggy, à qualidade do seu estilo: percebe-se que as suas novelas são amadurecidas palavra a palavra, procurando construir um tecido discursivo incisivo, despojado, de uma transparência mais aparente do que efectiva, pois que se pressente uma margem de obscuridade que nos deixa intrigados quanto a essa ludibriante clareza.

 
Para concluir esta introdução genérica, saliento que, tendo em consideração o crescendo de referências e comentários críticos, os seus últimos livros são, quase por unanimidade, considerados como os mais perfeitos: o já referido I Beati Anni del Castigo (1989), La Paura del Cielo (1994) e o derradeiro, até hoje, Proleterka (2001).

 
Foi já conhecedor destas e de outras referências sobre a autora, que comecei, de forma um pouco acidental (a pedido de um editor amigo), por ler a sua última novela.

 
A uma primeira abordagem, Proleterka parece ter uma trama mínima: centra-se na narração de uma viagem de cruzeiro pela costa grega (num barco jugoslavo chamado Proleterka) de uma jovem e do seu pai, que a realizam com o intuito de compensar desta forma o desconhecimento mútuo. De facto, até aquele momento (a jovem tem perto de dezasseis anos), nunca passaram um período tão longo de convivência (catorze dias): “a filha de Johannes” fora afastada do pai pela família materna (em particular pela avó, Orsola, verdadeira “mater familias”) que procurou, por esta via, esgarçar todos os vínculos entre eles, ostracizando o pai, como reacção à sua falência (ele pertencia a uma secular linhagem de industriais têxteis), uma vez que, em termos sociais, passara a ser encarado como um homem derrotado e “indigno”.

 
Encena-se, portanto, a viagem como narrativa mítica de iniciação (as obras de Fleur Jaeggy, em particular as três referenciadas, são uma espécie de reflexão sobre os mitos enquanto narrativas, recriando situações variantes). Este valor iniciático da viagem torna-se ainda mais evidente quando se descobre que a adolescente vai aproveitá-la para se abrir à iniciação sexual com dois elementos da equipagem do navio: a experiência servirá para afirmar o seu corpo como entidade “sensorial” livre e autónoma, estabelecendo um estatuto, dentro da comunidade fechada de tripulantes e passageiros, gerador de desejo e ciúme, e, em paralelo, para tornar claro à figura paterna – mesmo que assuma esta atitude como humilhante – que já não há espaço possível para a sua dominação.

 
Por outro lado, mais do que metáfora da vida, esta viagem revela-se como uma autêntica deambulação pelo mar da morte, principalmente quando o leitor percebe que o pai, quando efectua o cruzeiro, já se encontra “tocado” por uma doença terminal. De facto, Proleterka inicia-se com a vigília da filha ao cadáver de Johannes, antes da incineração, e o tom seco e distante, quase lúdico, em que se comenta a situação (a jovem coloca, como se fosse uma oferenda, dentro do casaco do pai, um prego, com o intuito de que este presencie a própria combustão do corpo e que reste, com as cinzas, como despojo simbólico de uma relação que não chegou a ser), reforça o sentido da surda tragédia de “gaspillage” de afectos (quem é realmente o pai? que emoções esconde aquele rosto debaixo da máscara da convencionalidade?) que se cristaliza na recalcada dor da narradora.

 
A família aparece, assim, não só como uma redoma asfixiante da curta existência da adolescente, mas também como núcleo de um jogo de “armadilhas”, onde os afectos se perdem em constantes equívocos, deixando sequelas de sofrimento que se arrastam ao longo da vida (veja-se o caso do pai “biológico” que aparece no final da obra). Por isso, a narrativa de Proleterka desenrola-se numa constante alternância de momentos, ziguezagueando entre diversas épocas da existência das personagens principais e transmitindo a sensação de que essas recordações são como focos mais ou menos intensos, vindos do reino das sombras e dos espectros, que não só tornam inteligível a dolorosa insensatez daquele cruzeiro como permitem perceber o seu peso no fluir emocional do dias: são os mortos que tonalizam o tempo, asfixiando a existência dos vivos.

 
A intensidade dos momentos narrados leva, concomitantemente, a autora a introduzir na obra uma estratégia de alternância do narrador: de facto, por vezes há um “eu” narrador, bem identificado com a adolescente, e, noutros trechos, a narração é feita por uma terceira pessoa do singular que aparece como uma espécie de desdobramento da personagem principal, “olhando do exterior” para os seus actos e emoções.  

 
Por fim, em reforço do fascínio de Proleterka, há que salientar a forma como são descritos os universos sociais das classes altas da “Mittle-Europe”, com as suas figuras carregadas (e condicionadas) de civilidade formal e referências culturais, vivendo numa ambiência “fanée” de interiores repletos de flores, rendas e tecidos adamascados, linhas melódicas de pianos, odores adocicados de perfumes e pó-de-arroz, que dá a esta obra uma aliciante reminiscência proustiana.

 
Proleterka é, pelo seu estilo, problemática e capacidade descritiva, uma obra verdadeiramente encantatória, justificando que fosse (bem) traduzida para português e introduzida no mercado pelos nossos editores.

 

Publicado na web em 2008.

 (Foto da Autora de Christoph Ruckstuhl).

 
Título: Proleterka
Autor: Fleur Jaeggy
Editor: Adelphi
Ano: 2001
114 págs., € 13,00

 



sexta-feira, 19 de agosto de 2016

MARIO VARGAS LLOSA 2

 



ENTRE A LIBERTAÇÃO E O DELÍRIO

 

Observando à distância o chamado “boom” latino-americano do início dos anos setenta, dois aspectos, de ordem diversa, parecem hoje ser os mais “instrutivos”: primeiro, que aquele foi, em grande parte, resultante da capacidade dos agentes editoriais de Barcelona em afirmar-se nos circuitos internacionais que definem o gosto e a apetência literária, evidenciando-se assim o percurso que iria transformar aquela cidade no verdadeiro pólo irradiante da literatura em língua espanhola; segundo, que foi, antes do mais, um fenómeno mediático, produto de uma hábil utilização dos canais informativos e publicitários, o que mais uma vez realça que este tipo de fenómenos, em vez de ser encarado como um parasita encravado no seio da “pureza” da literatura, deverá, pelo contrário, ser assumido como um elemento determinante para a compreensão da história literária contemporânea.

 
Estas considerações vêm a propósito do lançamento em português de mais uma obra de um autor protagonista do referido “boom”, o peruano Mario Vargas Llosa. Pertencente a uma das mais prestigiadas literaturas hispano-americanas (lembremo-nos de autores como César Vallejo, José Maria Argüedas e Ciro Alegria ou, mais próximo de nós, Alfredo Bryce Echenique), este romancista integra o lote de autores que naquela altura foi lançado, de forma espectacular, nos circuitos internacionais da edição, aproveitando as obras da sua primeira fase, sem sombra de dúvida, as mais significativas, pela acutilância na observação das crispações de uma sociedade fechada e violenta e pela tentativa de, através da análise de um microcosmos, referenciar, em termos simbólicos, toda a ambiência social peruana (recorde-se, por exemplo, o magnífico Conversas na Catedral).

 
A Tia Júlia e o Escrevedor, o romance agora traduzido, pertence, com Pantaleão e as Visitadoras, a uma segunda fase romanesca, bem mais interessante do que as ambiciosíssimas últimas obras, tanto mais não seja pela constante e acertada utilização do humor como forma de realçar algumas das incongruências mais excessivas da sociedade peruana.

 
Este romance desenvolve-se em dois registos estilísticos diferentes, alternados capítulo a capítulo, mas com uma função estrutural na economia da obra: por um lado, narra-se, utilizando um registo verista e objectivo, a iniciação amorosa da personagem principal, identificada, de forma deliberada, com o autor (tem o nome de Mario ou Varguitas), com uma parente por afinidade, a tia Júlia, e, ao mesmo tempo, a relação de amizade daquele com um colega de emprego, Pedro Camacho, prolífero escritor de radionovelas; por outro, expõem-se as tramas dos inúmeros folhetins diários deste radionovelista, através de um estilo rebuscado e melodramático.

 
Assim, e num constante crescendo, nós percebemos que, conforme aquela experiência amorosa se intensifica, confrontada com interditos sociais que a encaram apenas como uma corrupção de um menor por uma familiar, é obrigada, para se concretizar e afirmar, a peripécias cada vez mais rocambolescas. Em paralelo, os folhetins de Pedro Camacho, em consequência do seu esgotamento, vão-se tornando também mais catastróficos e delirantes, entrecruzando-se os enredos das diversas radionovelas, “matando” e ressuscitando as personagens de episódio para episódio, alterando-lhes o nome e o comportamento de cena para cena, até transformar a sua escrita num “magma” (para utilizar uma expressão querida a Vargas Llosa) onde o pulsar referencial da realidade se metamorfoseia na mais absurda fantasia.

 
Este confronto estilístico de A Tia Júlia e o Escrevedor permite assim salientar uma das suas ideias matriz: a de que existe uma proporcionalidade directa entre a apetência do romanesco de uma sociedade e a subjugação desta a hierarquias e estereótipos morais rígidos e a necessidades materiais asfixiantes. E da mesma forma que a libertação dessa teia, que surdamente mina o prazer de ser, só se consegue através de golpes de pulso e de gestos espectaculares que transformam a existência num fabuloso folhetim, assim também só é compensada essa realidade por um romanesco carregado de todas as tónicas do barroco e do excesso. Isto é: a própria realidade vai empurrando o romanesco para o delírio. É este o sentido do destino absurdo de Pedro Camacho que, por necessidades materiais e para conseguir a independência e a permanência da sua “arte”, se vê obrigado a escrever mais de dezasseis horas por dia, até se consumir na sua própria escrita.

 
Por outro lado, torna-se assim notório, em A Tia Júlia e o Escrevedor, que o nível do registo narrativo não é só uma opção estilística quanto às formas de representação do real, mas uma opção determinada pelas características do ponto de partida que ela vai recriar: o relato pretendido como verídico atinge, no final do romance, as ambiências romanescas dos folhetins iniciais de Pedro Camacho.

 
De qualquer modo, o resultado deste contraponto estilístico que estrutura A Tia Júlia e o Escrevedor é um empolgante fresco sobre a sociedade andina dos anos cinquenta. A tradução parece-me, em termos globais, correcta, em particular tendo em consideração as dificuldades dialectais que a obra apresenta, e por conseguir demarcar com habilidade os seus diferentes registos narrativos.

 


Publicado no Expresso em 1988.

 

 
Título: A Tia Júlia e o Escrevedor
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradutor: Cristina Rodriguez
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
340 págs., € 18,90

 

 



quinta-feira, 11 de agosto de 2016

EDUARDO GALEANO

 
 
A POÉTICA DA MILITÂNCIA
 
Há já uns anos, uma pessoa minha conhecida – provavelmente a mais brilhante contadora de histórias do nosso país – dizia, à laia de desabafo, que adorava Lo Libro de los Abrazos de Eduardo Galeano e que iria fazer tudo para convencer um editor a traduzi-lo e a publicá-lo em Portugal. Foi este entusiasmo, expresso por uma pessoa que muito respeito e prezo, que me levou a conhecer melhor este autor e, em particular, esta obra.
 
Diga-se de passagem que, à primeira vista, parece um pouco estranho que este autor seja tão pouco conhecido e editado no nosso país, pois Eduardo Galeano é um dos intelectuais mais prestigiados e influentes na (e da) América do Sul. Num trabalho recente, publicado no suplemento Babelia do “El País”, sobre a evolução da literatura latino-americana após o “boom”, a sua trilogia narrativa Memoria del Fuego (1982-1986) era considerada como uma das obras fundamentais desta literatura nos últimos trinta anos.
 
Porque, não há dúvida nenhuma, a edição portuguesa tem dado alguma atenção à produção literária latino-americana…E, por isso, parece estranho que este autor tenha sido publicado em pequenas editoras (Dinossauro, Livros de Areia) que - mesmo tendo catálogos interessantíssimos – têm uma frágil distribuição; ou que a obra publicada na Ed. Caminho tenha tido tão pouca repercussão na comunicação social atenta à literatura. Ora, as obras publicadas de Eduardo Galeano (que foram, seguindo a referência acima feita das editoras, As Veias Abertas da América Latina, Futebol: Sol e Sombra e De Pernas Para o Ar: a Escola do Mundo às Avessas) não só são das que mais contribuíram para o prestígio e popularidade do autor como também são exemplares das características literárias de toda a sua obra.
 
Eduardo Galeano nasceu em 1940 no Uruguai, um dos países da América Latina com uma relevante literatura: recordo, a título de exemplo, autores como os contistas Horácio Quiroga (1878-1937), já editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, e Felisberto Hernández (1902-1964), o magnifico romancista Juan Carlos Onetti (1909-1994), de quem a Ed. 70 publicou há muitos anos uma novela, e ainda Mário Benedetti (1920-), Cristina Peri Rossi (1941-), com um livro editado na Teorema, Mário Delgado Aparaín (1949-), com três novelas publicadas na Asa, e Cármen Posadas (1953-), também editada na Quetzal e na Temas & Debates.
 
Como uma boa parte dos autores sul-americanos, Eduardo Galeano começou como jornalista e foi a partir desta actividade que enveredou pela literatura, evidenciando-se como ensaísta, ficcionista e poeta. Porém, ao contrário de muitos escritores que, a pouco e pouco, se foram afastando das técnicas de escrita do jornalismo, Eduardo Galeano nunca abdicou desta sua profissão e, paralelamente, procurou fundir essas técnicas jornalísticas – em particular as da crónica - com as de romancista e poeta. De certo modo – e isso já foi referenciado por alguns comentadores da sua obra – desenvolveu uma linha narrativa que tem como antepassado ilustre o escritor americano John dos Passos (estou a referir-me à trilogia Memoria del Fuego que parece ter algumas similitudes técnicas com a trilogia U.S.A. do autor americano).
 
Eduardo Galeano é bem conhecido em toda a América Latina pelas suas posições de esquerda e pela sua militância pelas causas da democracia, da justiça social e do ambiente. Não admira, por isso, que tenha sido, na década de setenta do século passado, perseguido e preso pela ditadura militar no seu país e, mais tarde, após um primeiro exílio na Argentina, pela ditadura militar de Videla, onde chegou a integrar as listas de condenados dos esquadrões da morte. Viveu então, durante cerca de dez anos, exilado em Espanha, só regressando a Montevideu em 1985.
 
Bastante profícuo (já publicou mais de quarenta títulos, entre poesia, ensaio histórico, crónica, “relatos”, pequenas novelas e, por fim, romances), Eduardo Galeano obteve o reconhecimento internacional com uma das obras traduzidas para português, As Veias Abertas da América Latina (1971), onde reflecte sobre a exploração secular que a América do Sul tem sofrido por parte de povos e nações colonizadores. Mas a obra que, em termos consensuais, é reconhecida como o seu trabalho de mais elevada qualidade literária, é, como já referi, a trilogia romanesca Memoria del Fuego, onde, através de várias técnicas narrativas e da utilização de materiais documentais (alguns deles assumidamente forjados) de diversa origem, coloca em acção inúmeras personagens históricas que interagem com outras inventadas (e que representam distintos extractos sociais), narrando assim a história da América do Sul desde a época pré-colombiana até aos dias de hoje.
 
Outra obra de Eduardo Galeano com enorme prestígio e popularidade é este Lo Libro de los Abrazos (1989) que acabei de ler. A primeira evidência para o leitor, quando abre o livro, é que ele foi pensado como um todo, procurando interligar todos os seus elementos: a paginação e as gravuras - que o preenchem da primeira à última página - foram concebidas pelo próprio autor e visam criar a ambiência necessária para os textos “respirarem”.
 
A componente escrita desta obra é constituída por pequenos textos de feição muito diversa e que variam entre o poema, a crónica, a narrativa e o panfleto. Mas, em particular, nos textos mais conseguidos, percebe-se que existe, tanto pelo ritmo frásico como pela estrutura narrativa, uma concepção poética subjacente à sua construção que procura induzir no leitor um “efeito revelador”. Assim, essa “poiesis” visa, nos textos de Lo Libro de los Abrazos, actuar como uma “semiosis” que destaca do real os “sinais” da “intensidade lírica” abafada sob a banalidade quotidiana e o “dístico”, a frase pintada e a sentença proclamada que revelam – mais do que pretendem – as contradições culturais e políticas das sociedades latino-americanas e a avidez de sangue e suor dos actuais modelos globais de exploração económica. Esse trabalho de “desocultação” utiliza diversos instrumentos e, entre estes, deve ser destacado o humor: é ele que leva à aproximação de metáforas, a associar conceitos de universos distintos (similar ao exercício de “colagem” das ilustrações do livro), num jogo de aparências (i)lógicas tendencialmente surrealizante.
 
Eduardo Galeano tenta, com Lo Libro de los Abrazos, demonstrar como a poesia e arte são, antes dos mais, manifestações da “sabedoria” que impregna o quotidiano e a vida anónima dos povos: o “olhar” do poeta tem o dever militante de as descobrir e de saber transmiti-las por palavras e imagens. A literatura, na concepção do autor, é, por conseguinte, uma cabeça de Janus, conciliando a poesia e a militância e sabendo que um dos seus “rostos”, conforme o momento e a circunstância, estará mais “exposto” e “ocultando” o outro.
 
Ora, na nossa perspectiva da literatura, é esta a maior fragilidade do projecto literário de Eduardo Galeano: poesia e militância são inconciliáveis e está na própria tentativa de conciliação a “contaminação degradante” da literatura. Não quero dizer com isto que seja impossível a existência de problemáticas sociais e políticas no universo literário; simplesmente, irrompem na obra sem necessidade de qualquer conciliação com o discurso militante (relembro, a título de exemplo, algumas obras de autores tão inconciliáveis com o discurso militante como Samuel Beckett ou J. M. Coetzee).
 
É, por isso, que o leitor fica muitas vezes perplexo perante os textos de Lo Libro de los Abrazos: um bom número deles atinge a “magia verbal” da mais genuína poesia (chamo a atenção, por exemplo, da sublime série de textos aforísticos de La Noche) e, ao lado, página contra página, descobre-se o panfleto de todo desinteressante em termos literários…   
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Eduardo Galeano
Título: Lo Libro de los Abrazos
Editor: Siglo Veintiuno
Ano: 2003
265 págs.,  € 15,20  
 

 
 



KAREN BLIXEN

 
 
 
A ORDEM DOS MITOS
 
Conta Truman Capote que, quando, no final dos anos cinquenta, Karen Blixen visitou Nova Iorque, algumas pessoas, mais desatentas, ficaram surpreendidas que ainda fosse viva. E ele próprio, mesmo tendo em conta o comportamento requintadamente mundano desta velha aristocrata dinamarquesa, reconhecia que havia qualquer coisa de “deslocado” na presença daquela figura frágil no meio sofisticado e cosmopolita de Nova Iorque.
 
No entanto, a baronesa Karen Blixen-Finecke tivera, desde bastante cedo, uma grande receptividade no meio literário anglo-saxónico (note-se que a sua obra Seven Gothic Tales, a primeira a ser assinada com o seu pseudónimo Isak Dinesen, apareceu em inglês, ainda antes de ser editada na sua língua materna, e que a autora tanto escrevia nesta língua como em dinamarquês) e que o próprio Hemingway, vindo de um universo ideológico bem distinto, tinha louvado, de forma entusiástica, o seu romance autobiográfico África Minha, no momento da sua publicação em inglês, ainda na década de trinta. Mas se a popularidade universal da autora era, desde há muito, um facto, em Portugal, Karen Blixen só começou realmente a ser conhecida, após o sucesso do filme Out of Africa, tendo-se, desde então, traduzido as suas obras com uma notável regularidade.
 
As colectâneas, agora publicadas, Novos Contos de Inverno (retirado do livro Last Tales) e Histórias do Destino, confirmam, mais uma vez, o sentido da pequena anedota que referimos, isto é, o carácter “deslocado” desta autora no contexto da produção literária do século XX.
 
Em primeiro lugar, porque, em termos estilísticos, é possível estabelecer constantes correlações entre a obra de Karen Blixen e a ficção vitoriana (saliente-se, por exemplo, como o seu descritivismo é, de uma forma quase constante, pigmentado de fantástico), ao ponto de fazer desta autora como que uma espécie de derradeira representante daquela literatura, trabalhando já no nosso século. Assim, o ambiente aprazível de “Um Conto no Campo” ou típico de “Uma Temporada em Copenhague” têm uma dimensão eminentemente funcional, procurando, por contraste, realçar a problemática em jogo entre personagens.
 
Em segundo lugar, pelo quadro cronológico das próprias histórias, visto que poucas são as que se situam no nosso século. Por exemplo, nestas duas colectâneas, em oito contos, cinco passam-se no séc. XIX e os restantes ainda são mais recuados.
 
Mas, em particular, o que dá a ambiência “deslocada” à obra de Karen Blixen é a sua dimensão vincadamente antimodernista, pela rejeição de qualquer inovação formal. Esta atitude advém, antes do mais, da profunda convicção da autora de que a acção do tempo nada altera, em substância, à problemática ontológica do homem. Pode-se, por isso, dizer, desde que se retire toda a conotação negativa da palavra, que a obra de Karen Blixen tem um cariz reaccionário, pois existe nela um pressuposto doutrinário que a leva a recusar, de forma liminar, a ideia de que o progresso, tal como é entendido desde as filosofias racionalistas do séc. XVIII, possa trazer qualquer resolução aos problemas com que o homem se confronta. É este um dos sentidos de “Um Conto no Campo”, quando a pretensão “iluminada” da personagem principal, em reparar antigas injustiças cometidas, se revela inútil, não só porque a ordem divina desordena as convicções dos homens, mas também porque mostra o valor apenas simbólico e fictício da justiça humana.
 
Como, de modo diverso, demonstram estes dois livros, a obra de Karen Blixen coloca-se predominantemente numa atitude de compreensão expectante: a aceitação, antes do mais, de que a realidade é feita de inumeráveis contrários em situação equiparável, e, por conseguinte, integrados no Uno que é emanação do dedo demiúrgico de Deus. Daí que o softa Saufe descubra, no conto “O Mergulhador”, que a serenidade atemporal, que a figura de Deus inspira aos seus criados, tanto se possa atingir voando (como os anjos) ou mergulhando (como os peixes) … Ou, em “A Festa de Babette”, que o ódio revolucionário é também uma emulação provocada pela necessidade de justiça, e que, tanto um como a outra, mal desapareçam aqueles que os originaram, podem ser compensados com um belo acto gratificante.
 
A arte seria, assim, a materialização dessa compreensão expectante, tornando-se o autor numa espécie de catalisador e transfigurador, pela invenção e criação, de um “duplo” da realidade. Porém, ninguém deve cair no logro mortal de pretender “recriar” esse “duplo” na própria realidade, pois, quando Mr. Clay, em “A História Imortal”, procura “realizar” a história dos marinheiros que ouviu quando se dirigia para Catão, vai perceber que, ao transformar os outros em ”marionetes” da sua ambição, está a ser um instrumento de Deus para repor a justiça que ele próprio destruiu. Assim, o simples contributo da arte estará em ajudar o homem a assumir em si o seu contrário, de forma a conseguir, sem angústias nem tormentos, sintonizar com o impulso vital que o constitui e do qual é uma minúscula partícula no “continuum” do tempo.
 
O objectivo da arte narrativa de Karen Blixen é, em resumo, representar a problemática essencial e atemporal do Homem e, nesse sentido, nada mais adequado do que a aparente singeleza dos meios narrativos do conto. É este, pelo seu despojamento, que melhor consegue a circularidade dos mitos, essa “outra ordem” que cristaliza a vontade de Deus. Como afirma a própria Karen Blixen: “Sem contos, a espécie humana teria perecido como o teria sem água. A arte divina é o conto. No princípio era o conto”.
 
Este posicionamento particular da obra de Karen Blixen, no quadro literário do nosso século, bastaria para fazer dela uma criadora invulgar, principalmente num domínio tão difícil como o conto. Mas chegará para caracterizar, em termos artísticos, essa narrativa única, e inesgotável, que é “A História Imortal”? É, confesso, difícil falar, em relação a este conto, de contenção discursiva (a frase, com que se conclui esta ficção, ficará, sempre, como uma encarnação inexplicável de uma arte mágica), da essencialidade de traços com que são resolvidas caracterialmente as personagens, da intuição com que se deslocou semelhante enredo para os cenários orientais, etc., etc., porque se ficará sempre com a ideia de estar numa marginalidade insatisfatória. Não sei se, de facto, no século passado, esta história era imortal porque, corporizando um desejo colectivo dos marinheiros, se transmitia de barco em barco, de geração em geração. Mas uma coisa é certa: para quem a ler, esta será a história imortal de Karen Blixen, porque, ao partilhar a sua cristalina beleza, sentirá que lhe ficará gravada como um sinal imorredoiro e que, desde esse momento, fará parte do conjunto de eleitos que descobriu um património em cumplicidade sublime.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: Novos Contos de Inverno
Autor: Karen Blixen
Tradutor: Luzia Maria Martins
Editor: Relógio d’Água
Ano: 1988
171 págs., esg.
 
 
 
Título: Histórias do Destino
Autor: Karen Blixen
Tradutor: Maria José Jorge
Editor: Querco
Ano: 1988
186 págs., esg.
 



 



sexta-feira, 5 de agosto de 2016

ALAIN MABANCKOU

 
 
 
O “DUPLO” ANIMAL
 
Tenho escrito e dito que a literatura narrativa atingiu hoje uma dimensão nunca alcançada na história literária, tendo em vista a sua expressão geográfica: os modelos da narrativa escrita ocidental foram, nas últimas décadas, conquistando territórios (mesmo com algumas formas “miscigenadas” com modelos locais e regionais de narrativa escrita e oral) e agregando à história da literatura outras culturas e sensibilidades. Isso é visível em certas regiões da Ásia, mas em particular da África.
 
Se descontarmos algumas tentativas de expressão literária nas décadas de trinta e quarenta, pode dizer-se que a afirmação das literaturas africanas, em particular nas regiões sub-saharianas, foi feita, através das chamadas línguas dos países colonizadores, após a II Guerra Mundial e, na maior parte das vezes, em simultaneidade com as guerras de independência. Goste-se ou não, inevitavelmente essa produção literária ficou marcada por necessidades imediatas de intervenção política e militar. Além disso, a segregação racial, a miséria, o analfabetismo e o neocolonialismo económico continuaram a impor, mesmo após a independência dos países africanos, a necessidade de produzir uma literatura de combate, de frente pública e de testemunho. Por isso mesmo, todos os conflitos mais íntimos e pessoais das personagens narrativas apareciam numa dependência, mais ou menos mecânica, dos conflitos sociais e políticos e, de certo modo, só serviam para ilustrar os efeitos destes. 
 
Nos anos setenta e oitenta, com a consolidação das independências políticas, essa necessidade de intervenção imediata afrouxou em certos países africanos, permitindo uma gradual diversificação dos temas tratados e das técnicas narrativas. Foi a partir dessa altura que certos autores granjearam projecção internacional (em particular, sul-africanos, nigerianos, senegaleses, angolanos e moçambicanos), em grande parte devido à sua capacidade de aliciar, em termos estilísticos, leitores de outras paragens: o sucesso de quase todos os autores africanos foi obtido na Europa e nos Estados Unidos, sendo quase por completo ignorados (eu diria tragicamente, dado o nível baixíssimo de escolaridade e o fraco poder de compra das populações africanas) entre os leitores dos países de onde são originários.
 
Estas considerações vêm a propósito da leitura do romance Mémoires de porc-épic de Alain Mabanckou, um escritor originário da República do Congo (mais conhecida por Congo-Brazzaville).
 
Creio que o leitor português comum não conhece nem ouviu falar de nenhum autor deste país e, provavelmente, até se interroga se possui uma literatura digna deste nome. Não admira, porque, de facto, nenhum autor do Congo-Brazzaville atingiu a mínima projecção internacional e apenas alguns nomes e obras têm reconhecimento entre especialistas de literatura africana do universo francófono.
 
De qualquer modo, registo aqui, para satisfazer uma possível curiosidade do leitor, os nomes de alguns autores mais prestigiados do Congo-Brazzaville, como Jean Malonga (1907-1985; considerado o “pai” da literatura congolesa), os poetas Tchicaya U Tam’si (1931-1988) e Henri Lopes (1937) e os novelistas Emmanuel Dongala (1941) e, em particular, Sony Labou Tansi (1947-1995); recentemente, porém, o autor primeiro referido, Alain Mabanckou (1966), atingiu uma projecção já significativa, com a obra que acabei de ler: em 2006, Mémoires de porc-épic obteve, em França, o Prix Renaudot, tendo sido, de um modo genérico, bem aclamado pela crítica deste país.
 
Pode dizer-se que a ideia base de Mémoires de porc-épic é interessante, principalmente porque nos remete para os “contos” de tradição oral africanos: todos os homens têm um “duplo” animal nefasto, pois, por vezes, comete, pelos homens, os erros e os “pecados” mais vis e sangrentos, satisfazendo assim os seus desejos obscuros e imorais.
 
O romance é constituído pelas “confissões” de um porco-espinho à sua “baobab” (embondeiro), depois de Kibandi, o homem de quem era “duplo”, ter morrido, e de, portanto, perceber que os seus dias também estavam contados…Essas confissões vão revelar que este “duplo”, perverso e traiçoeiro, tinha “comido” muitos humanos, isto é, que tinha originado a morte ou mesmo assassinado, de forma brutal, vários inimigos ou indivíduos que, por ciúme, inveja ou despeito, o seu “mestre” humano sentiu desejo de eliminar ou apenas de “afastar”.
 
Através destas “confissões”, vai aparecendo um conjunto de personagens picarescas e características das pequenas comunidades rurais, ainda de base tribal, e outros, já ocidentalizados e “ilustrados”, que representam o modelo social que se perfila no horizonte destas comunidades e que irá, decerto, alterar a sua trama milenar de instituições sociais e de relações interpessoais, assim como a sua relação com a Natureza.
 
De certo modo, Mémoires de porc-épic procura efabular esta situação de transição das comunidades rurais do Congo-Brazzaville. E é nesse contexto que deve ser entendida a notória intenção de retomar uma certa tradição oral dos contos populares. Por isso, um dos aspectos mais aliciantes para o leitor, ao iniciar a leitura desta obra, é constatar como Alain Mabanckou tentar reformular essa tradição em termos literários… A solução parece-nos, contudo, um pouco convencional: opta-se por uma construção frásica de tipo torrencial, com diminuta pontuação, pelo aproveitamento da gíria popular e pela repetição de certos vocábulos, imagens e metáforas, transformando-os em “leitmotivs” discursivos.
 
Porém, a maior fragilidade deste romance está, no entanto, na inexistência de uma estrutura narrativa consistente: o carácter “confessional”, com que o romance é alinhavado, favorece a sucessão de histórias e anedotas numa continuidade cronológica, sem crescendo de intensidade ou de dramatismo, como camadas que envolvem um inexistente núcleo central. Por isso, o autor vai perdendo-se em inúmeras divagações desequilibrantes, terminando o romance, como se não descobrisse outra solução, de forma um pouco abrupta e inepta…
 
A minha opinião final é que Mémoires de porc-épic é uma obra que se centra numa ideia literariamente bem intencionada, mas concretizada de forma insuficiente… E este juízo leva-nos também a questionar sobre o nível a que chegou a produção literária da edição francesa no ano de 2006, para se conceder a esta obra um dos prémios mais prestigiados deste país.
 
 
P.S. – Já depois de ter redigido esta recensão, constatei que uma já velha chancela portuguesa - que acreditava que se encontrava em fase de “limbo” editorial – iniciou uma nova colecção de obras narrativas, chamada “Raízes”. A sua orientação – parece-me – é de publicar obras oriundas de literaturas do Terceiro Mundo; e, quanto tomei conhecimento dela, já tinha editado, entre muitos autores interessantes (eu chamo a atenção para o escritor do Djibuti, Abdourahman A. Waberi, dos Camarões, Léonora Miano, do egípcio Rachid El-Daïf, dos senegaleses Fatou Diome e Boris Diop, e da indiana Ananda Devi), este romance de Alain Mabanckou.
 
Confesso que ainda não tive tempo para analisar a tradução portuguesa. Mas, de qualquer modo, gostaria de perguntar uma coisa: como é possível que uma colecção com estas características – única em Portugal – edite títulos atrás de títulos sem ter nenhum eco na imprensa portuguesa?
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Alain Mabanckou
Título: Mémoires du porc-épic
Editor: Seuil
Ano: 2006
228 págs., € 15,68