segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

ITALO CALVINO

 
 
 
 

A LEITURA DA PAIXÃO
 
Toda a gente, que tem um hábito regular de leitura, já se perguntou, sem dúvida, porque passa horas substanciais do seu dia em redor desses objectos que vão enchendo a casa, dificultando a circulação, empurrando lentamente o leitor para fora do seu espaço. É evidente que existem sempre argumentos culturais e informativos; mas, muitas vezes, a inquietação e a dúvida desmontam esses alibis e a interrogação paira sobre um campo de obscura perplexidade que não desmobiliza, antes pelo contrário, fustiga essa paixão de ler.
 
Ora, pode afirmar-se, antes do mais, que Se Uma Noite de Inverno Um Viajante, a obra de Italo Calvino agora publicada, tenta precisar essa obscura perplexidade, esse percurso de paixão.
 
Este romance, desde 1979, data da sua publicação em Itália, tem sido saudado como uma das obras mais relevantes da recente literatura italiana e, além disso, reconhece-se nela a sinalização de um outro modo de entender a ficção que tem vindo a transparecer, aqui e além, nalgumas das obras mais interessantes destes anos oitenta.
 
Sobre este aspecto convém referir que, sendo talvez a obra mais complexa deste autor, podendo descortinar-se nela inúmeras pistas conexantes de leitura, não é meramente acidental a existência de uma inquietação filosófica bastante próxima das reflexões da semiótica e da teoria literária actual, em particular as reveladas nos trabalhos de Umberto Eco e Giorgio Manganelli.
 
Durante toda a obra, um eu narrador interpela um leitor/modelo que vai iniciar a leitura de Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, integrando-se, assim, no próprio romance, a encenação da sua leitura (repare-se na similitude que existe neste ponto com uma obra tão diversa como A História Interminável de Michael Ende). Simplesmente, esse leitor/modelo, por um erro técnico de edição, não consegue concluir a leitura do romance desse “tal Italo Calvino”. A exasperação de a concluir, vai levá-lo a mergulhar em inúmeras situações rocambolescas e a confrontar-se com uma leitora (como refere o Autor, a “Terceira Pessoa necessária para que um romance seja um romance”), a irmã desta leitora, as instituições académicas, os editores, um falsário, um escritor, organizações terroristas de mistificação literária, as ditaduras censórias do Terceiro Mundo, etc., e, em paralelo, iniciar a leitura de mais nove novelas de outros tantos autores oriundos de todos os cantos do mundo.
 
Todas estas situações se desenvolvem numa total despreocupação de qualquer tipo de verosimilhança e são apenas conduzidas por uma necessidade de coerência interna, o que permite a Italo Calvino encená-las com um “cândido” humor, que é um dos seus sinais estilísticos mais característicos. Por outro lado, os capítulos iniciais de novelas e romances são admiráveis textos breves, verdadeiras preciosidades de técnica narrativa, onde o autor consegue criar ambiências diversas e “simular” radicalmente estilos de outros escritores.
 
O autor, o “tal Italo Calvino”, torna-se, assim, uma figura exterior, distinta do eu narrador, e que, como ente divino, vai montando as “ratoeiras” por onde o leitor/modelo tem que passar. Ao leitor real, como diz Paolo Angeleri no seu prefácio, intitulado “O Leitor Protagonista”, fica aberta a possibilidade de um confronto dialógico com o leitor/modelo, e, por esse confronto, integrar-se melhor em todo o discorrer reflexivo sobre a escrita, o estatuto do escritor, as funções das personagens, etc. Contudo, e este é um dos aspectos inovadores deste romance, toda esta reflexão é sempre desenvolvida segundo a óptica da leitura.
 
 A necessidade de elaborar campos simbólicos onde se tende a estabelecer problemáticas que, estrutural ou conjunturalmente, personalizam cada um de nós, é, antes do mais, um mecanismo que pretende satisfazer a “continuidade da vida” e a “inevitabilidade da morte” que, tal como se refere perto do final deste romance, são as duas faces para onde remetem todas as narrativas. Por outras palavras, a narrativa é a encenação de um outro espaço/tempo para onde transita, de forma parcelar, quem a escreve e que é feita à dimensão e medida dessa mesma parcela. O espaço/tempo da ficção é, portanto, o de uma representação ou, como pretende Italo Calvino neste romance, o de uma “mistificação”.
 
A leitura satisfaz uma idêntica necessidade de representação ou de mistificação. Simplesmente, já que a encenação desse espaço/tempo é um objecto exterior ao leitor, este embate numa maior ou menor opacidade, obrigando-se a um íntimo processo de comunicação, feito de confrontos e complementaridades. O leitor fica, deste modo, condicionado a ”interpretar” essa encenação de espaço/tempo e a retirar sentido do romanesco, de acordo com um conjunto circunstancial bastante complexo, que podemos enunciar como o lugar da leitura. Em resumo, como diz Italo Calvino, o único “verdadeiro” romance é aquele que o leitor “refaz” pela leitura.
 
Mas será que o prazer da leitura se basta no prazer da mistificação? Se Uma Noite de Inverno Um Viajante explicita que a ficção é um tecido de ilusões onde o leitor se perde na sua apetência de amar, de querer: a personagem, o narrador, o autor são sempre objectos de amor; só que o leitor vai abraçando sucessivas ilusões, visto que aqueles objectos se vão diluindo pelas linhas do romance ao seu querer. É sempre a potencialidade dum acto de amor que leva à leitura e é sempre uma apetência de amar que dela fica. A leitura cria assim uma mediação, uma proximidade aos outros leitores, cultivando em todos uma sensibilidade sintónica de desejo, que propicia “outras” circulações ao amor.
 
E o autor? Como se refere no cap.VIII, o diário de Silas Flannery, autor/personagem de Se Uma Noite de Inverno Um Viajante, há, no estatuto do autor, uma irredutível solidão: ele sabe que a leitura do corpo narrativo é distinta da do corpo real, e que o acto de amor, que a leitura provoca, é irremediavelmente desviado do autor para o seu duplo. Por outro lado, como é salientado no mesmo diário, o autor sabe que, numa teia de significações e símbolos a que, de um modo ingénuo, chamamos realidade, é um mero codificador: entre a realidade e a escrita existe um hiato, com a forma de uma mão, que deixa atrás de si um não-escrito, um “indizível” mesmo - e é esse resto indizível que o autor queria que o leitor conhecesse...
 
Mas já vimos que, para Italo Calvino, o “verdadeiro” livro de um autor é aquele que é lido pelo seu leitor desejado, já que, o que ele escreve, é uma mera “falsificação” (daí a importância da personagem nuclear do falsário, enchendo o mundo de falsificações de romances e novelas, “roubando” textos a autores, dando falsas autorias a outros e por quem o autor/personagem confessa um grande fascínio). Por isso, o autor reconhece que existe qualquer coisa no leitor que ele não dominará, e que, portanto, a sua “posse” se restringirá à inoculação de uma “droga”, de um “sonho”, que permitirá ao leitor “iludir-se” da passagem do tempo.
 
O autor, repito, santifica-se, assim, em Se Uma Noite de Inverno Um Viajante, com a auréola da Grande Solidão. Este, tendo-se como único interlocutor, procurando em si mesmo o leitor mais amado, e sabendo que a sua escrita, como a mistificação resultante, é personalizada, reconhece que é a sua existência que dificulta (e ao mesmo tempo possibilita) a passagem daquilo que deveria vir de tudo para o Todo desejado.
 
O autor escreve o que deseja, o leitor lê o que deseja, e estes desejos ficarão sempre desencontrados, desviados para os respectivos duplos, e deixando um resíduo que, como referi no início, vai enchendo as nossas casas, dificultando a circulação, empurrando-nos lentamente para fora do nosso espaço... Como o eu narrador de Se Uma Noite de Inverno Um Viajante, ao comentar o acto de amor entre o leitor/personagem e a leitora/personagem, refere:
 
“ (…) na satisfação que sentes pela maneira como ela te lê, das citações textuais da tua objectividade física, uma dúvida se insinua: que ela não te esteia a ler uno e inteiro como és, mas usando-te, usando fragmentos de ti tirados do contexto para construir um partner fantasmático, que só ela conhece, na penumbra da sua semi-consciência, e que o que ela está a decifrar seja este apócrifo visitante dos seus sonhos e não tu.
 
(...) Se quiseres representar graficamente o conjunto, cada episódio com o seu cume, isso exigiria um modelo a três dimensões, talvez a quatro, nenhum modelo, toda a experiência é irrepetível. O aspecto em que abraço e leitura mais se assemelham é que no seu interior se abrem tempos e espaços diferentes do tempo e espaço mensuráveis.
 
(..,) amanhã, Leitor e Leitora, se estiverem juntos, se se deitarem na mesma cama como um casal arrumado, cada um acenderá o candeeiro na sua mesa de cabeceira e mergulhará no seu livro; duas leituras paralelas acompanharão a apresentação do sono; primeiro tu depois tu apagareis a luz; retornados de universos separados, encontrar-vos-eis fugazmente no escuro onde todas as distâncias se apagam, antes que sonhos divergentes vos puxem ainda tu para um lado e tu para outro. Mas não ironizeis esta perspectiva da harmonia conjugal: que imagem de casal mais feliz poderíeis contrapôr-lhe?”
 
Da paixão da leitura à leitura da paixão: dois termos que, de certo modo, são convertíveis e que definem o percurso de si para si de Se Uma Noite de Inverno Um Viajante.
 
Mas, como é referido de forma constante neste romance de Italo Calvino, este é em síntese, o Se Uma Noite de Inverno Um Viajante que existe “deste” lugar de leitura. Outros se deveriam criar, e não temos a menor dúvida em afirmar que a melhor forma de saudar a edição em Portugal deste romance é efectuar aquilo que ele tanto deseja: a ocupação entusiasmada do lugar de leitor.
 
Convém, por fim, referir que a edição portuguesa deste romance, acompanhado pelo prefácio já citado de Paolo Angeleri, por um estudo esclarecedor de José Manuel Vasconcelos sobre a obra do romancista, por um apêndice do autor em que esquematiza a própria feitura do romance, e por uma bibliografia (incluindo a indicação das obras editadas em Portugal), revela um cuidado em apoiar o leitor com o devido apetrechamento informativo, atitude que é pouco habitual no nosso país, e para a qual não será decerto estranho o apoio concedido pelo Instituto Italiano de Cultura.
 
Pena é que o editor não tenha realizado um esforço complementar, melhorando a composição e a impressão, de modo a produzir um objecto ainda mais aliciante. No entanto, esperemos que a publicação deste romance não se torne um acontecimento isolado e que obras como as de, por exemplo, Carlo Emilo Gadda, Elsa Morante, Dino Buzzati e Giorgio Manganelli venham a receber uma edição tão cuidada como esta, permitindo uma mais ampla divulgação entre nós da literatura italiana contemporânea.
 
Publicado no Expresso em 1985.
 
 
Título: Se Uma Noite de Inverno Um Viajante
Autor: Italo Calvino
Prefácio: Paolo Angeleri
Tradução: Maria de Lurdes Sirgado Ganho e José Manuel de Vasconcelos
Editor: Veja
Ano: 1985
287 págs., € 18,48
 
 


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

FRANK RONAN



 
 
 

A DOR DE CRESCER
 
O romancista Frank Ronan, comparado com outros escritores irlandeses contemporâneos ou mesmo com a sua repercussão em outros países, é um caso peculiar de sucesso público e crítico em Portugal: de facto, creio que nenhum escritor irlandês actual tem a sua obra completa publicada em português como é o seu caso. Isto deve-se ao relativo sucesso de vendas dos seus livros (em particular, de Os Homens Que Amaram Evelyn Cotton, Piquenique no Paraíso ou mesmo Os Homens Bronzeados Ficam Bonitos) e, obviamente, ao esforço do seu editor no nosso país.
 
Creio que este sucesso é resultante do facto de Frank Ronan ter sido encarado pelo leitor português como um representante (sobretudo com a primeira obra referida) de uma nova geração de escritores que parecia conseguir, através de um registo estilístico marcado pela fluidez e pela coloquialidade, uma maior “proximidade” aos problemas da sua própria geração, tratando com desenvoltura e uma frontalidade despreconceituada certas problemáticas sociais, como, por exemplo, a sexualidade. Por outro lado, parecia que a principal preocupação literária, que unia estes escritores, era atingir uma forte eficácia narrativa de modo a envolver e a cativar o leitor. Foi esta geração que, depois de ter feito uma larga “escola”, veio a ser conhecida como produtora do que mais tarde se chamou literatura “light”.
 
No entanto, no caso de Frank Ronan, creio que a utilização deste epíteto para caracterizar a sua produção narrativa foi um equívoco: mesmo que não se tenha acompanhado o seu percurso literário, título a título, basta a leitura do seu último romance, A Comunidade, agora traduzido para português, para se perceber que as preocupações do autor estão distantes daquele tipo de literatura.
 
A Comunidade narra o percurso de uma criança irlandesa até à adolescência (é curioso como, nos últimos anos, têm aparecido, nos circuitos internacionais de edição, inúmeras obras debruçando-se sobre os universos da primeira infância na Irlanda), filha da geração que protagonizou os anos sessenta e setenta. A criança vai, por isso, sofrer as consequências afectivas e emocionais das experiências comportamentais e sociais que esta geração resolveu levar a cabo, ao procurar libertar-se da mediocridade pardacenta que fora a vida dos seus pais. Porém, o autor resolveu iniciar a narração deste percurso, utilizando um registo extremo de farsa que, a pouco e pouco (mormente, a partir da fase em que a criança, raptada pelos avós maternos, vai viver com eles), abandona, passando para um registo mais trágico e emotivo. O contraste violento dos dois registos desequilibra o romance e provoca, no leitor, um conflito de perspectiva que anula o efeito de dimensão e relevo que têm as diversas situações no processo de crescimento afectivo da criança: só no seguimento da leitura se consegue perceber a que ponto a primeira fase da sua vida (aquela que vive na “comunidade” que dá origem ao título do romance) se torna uma “reminiscência” fundamental para o seu equilíbrio emocional na fase posterior (a que vive com os avós), absurdamente agreste e solitária. Quer isto dizer, que o registo de farsa utilizado de início revela-se, de certo modo, inexplicável e incoerente com o sentido do romance.
 
Por outro lado, esse registo parece um pouco desajustado, e até leviano, para analisar a problemática do desequilíbrio emocional e afectivo de filhos gerados em famílias não convencionais e/ou monoparentais. De facto, salvo raras excepções (recordo-me de alguns romances interessantes de John Irving), a literatura narrativa das últimas décadas ainda não produziu nenhuma obra verdadeiramente expressiva sobre este tema que tem, nos dias de hoje, tantas implicações sociais. É evidente que é um tema culpabilizador, tendente a posições extremadas, e que não pode ter uma análise linear e globalizante: veja-se, por exemplo, que a criança caracterizada em A Comunidade apenas obtém algum apoio afectivo e alguma referência comportamental de figuras que não têm nenhuma relação de consanguinidade com ela.
 
Poderá afirmar-se que os registos, em que A Comunidade se afunda, são resultantes da opção do autor em enfocar a envolvência social da criança sob o prisma do seu olhar e que, nesta circunstância, todos os comportamentos adultos aparecem como absurdos e irrisórios - seja o comportamento “beat” da “comunidade” em que vive a sua mãe, com os seus pretensiosismos místicos e demiúrgicos, seja o comportamento “padronizado” dos avós, apenas preocupados com as aparências e por obter reconhecimento social. No entanto, no caso de A Comunidade, esta opção parece-nos fácil em excesso: a dor de crescer é quase sempre demasiado lancinante (como revelam os trechos mais conseguidos do romance) para ser escamoteada por uma comicidade que, muitas vezes, aparece nestas páginas com uma dimensão grotesca.
 
 
Publicado no Público em 2002.
 
 
 
Título: A Comunidade
Autor: Frank Ronan
Tradução: Maria do Carmo Figueira
Editor: Gradiva
Ano: 2002
228 págs., 16 €
 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

FÉLICIEN MARCEAU

 
 
 
TEMPOS (APARENTEMENTE) LIGEIROS
 
Desde há alguns anos a esta parte que se generalizou a opinião de que o romance francês está em crise. Que, depois do “nouveau roman”, só um ou outro autor, já consagrado nos anos cinquenta ou sessenta e, por isso, com percursos literários esfumando-se actualmente na linha do horizonte, permanece importante. Que não há novos valores, que a mediocridade campeia, que se tornou uma das literaturas europeias mais desinteressantes nos dias de hoje.
 
É difícil ponderar estes juízos. Talvez assim seja, de facto. Mas, de qualquer modo, parece estranho que a literatura francesa, depois de ter tido um papel tão hegemónico e basilar na definição de gostos e tendências, tenha sombreado em tal apatia.
 
Em termos pessoais, duvido desta imagem que se faz da literatura francesa. Creio que o motivo desta “aparência” está na dimensão luxuriante do mundo editorial e literário francês. Isto é, este meio, repleto todos os dias de novos títulos, de prémios literários, de jovens autores, de diversas “saisons”, de casas editoras em permanente competição comercial, de revistas e publicações periódicas revelando constantes “genialidades”, tomou tais dimensões (só ultrapassado pelo universo editorial americano que também dá imagem semelhante de si mesmo), estabeleceu-se a tal ponto e definiu tão rigorosas “hierarquias” que provocou a “perdição” dos próprios produtores e analistas desse meio. Por isso mesmo, de forma permanente, se vê destacar obras literárias de facto inovadoras ao lado de outras que apenas são evidenciadas em consequência do labirinto de espelhos, de reverências irremediavelmente obrigatórias, que os “responsáveis” do meio literário francês criaram entre si.
 
 
O caso de Félicien Marceau é bem típico de tudo isto. De origem belga, este autor começou a publicar no finais da década de quarenta, impondo à sua obra um constante realismo balzaquiano, certeiro para efectuar um diversificado retrato dos costumes actuais franceses e para fazer, aqui e além, uma sortida também no romance histórico, temperando-o com um mais ou menos diáfano erotismo, muito sedutor e envolvente. Senhor de um estilo hábil e “humorado”, Félicien Marceau foi, pacientemente, elaborando uma obra já vasta em títulos, sempre sustentada por um quase ininterrupto sucesso de vendas e por um caloroso louvor crítico (a título de exemplo refira-se que Félicien Marceau já ganhou o Goncourt com Creezy, há já alguns anos traduzido para português). Tornou-se, deste modo, um autor respeitado e uma das mais elevadas referências no meio literário francês; mas ninguém poderá afirmar que Félicien Marceau, mesmo tão credenciado, tenha alguma vez produzido uma obra-prima ou que, seja de que forma for, tenha contribuído para a renovação das estruturas romanescas.
 
As Paixões Partilhadas, o seu último título, de imediato traduzido para português, não só evidencia bem esta mediania, como nada acrescenta de significativo à sua obra.
 
A acção do romance centra-se na descrição da vida de um casal, instituído nos anos trinta, e constituído por Cédric de Saint Damien, descendente de uma antiga família aristocrática do Languedoc, e Emmeline Ricou, filha de um grande comerciante, rapidamente enriquecido com a lª Guerra Mundial. Ao longo de vinte e nove capítulos, vemos como esta família, fundada nos valores aristocráticos, vai adequando o seu comportamento a um mundo adverso, abrindo as suas relações de amizade, criando imprevisíveis cumplicidades com o seu pessoal doméstico, instituindo um jogo amoroso que em silêncio admite os deleites das “fugas” à conjugalidade, e, enfim, como, de uma forma ao mesmo tempo convicta e leve, se vai esquivando aos espectros negros que a História lhes vai colocando no seu destino.
 
Sem sombras de dúvida que As Paixões Partilhadas pretende perpassar uma ligeireza que, a seu modo, reflecte uma alegria luminosa de viver e o prazer sereno dos pequenos gestos que provocam mudanças profundas nos modos de estar. No entanto, sendo um romance de fácil e até agradável leitura, não deixa de transmitir ao leitor a convicção de que toda a motivação que lhe deu origem é eminentemente fútil. Não será este romance, tão louvado pela crítica local, a prova cabal de que existe uma “mecânica perversa” no meio literário francês?
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
Título: As Paixões Partilhadas
Autor: Félicien Marceau
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Gradiva
Ano: 1988
221 págs., 8,56 €
 



sábado, 13 de fevereiro de 2016

HORACIO QUIROGA

 
 
 
 
PESADELOS EXEMPLARES
 
 
Na maior parte das vezes, quando aparecem referências à literatura latino-americana, há uma certa tendência em a amalgamar num todo indistinto. Creio que esta tendência acentuou-se com o chamado “boom” dos anos setenta (as personalidades literárias que deram rosto a este fenómeno eram, de facto, oriundas de diversos países da América Hispânica) e com a propensão para tipificar de uma forma homogeneizante esta produção narrativa. Não admira, por isso, que, mesmo sendo bem editada no nosso país, o leitor português tenha decerto alguma dificuldade em ter uma visão rigorosa de cada uma das literaturas nacionais que a integram e, em particular, sobre a importância que elas têm no seu todo. E este facto é tanto mais estranho quanto se pode afirmar com segurança que muitas destas literaturas nacionais tiveram uma maior relevância para a história literária do século XX que muitas literaturas europeias.
 
É natural, por isso, que muitos leitores portugueses, perante uma obra de um autor, por exemplo, uruguaio, se interroguem sobre o que conhecem da literatura que o enquadra. No entanto, basta recordar os nomes de Augusto Roa Bastos, Juan Carlos Onetti e Mario Benedetti, para compreender que esta literatura, apesar de uma acentuada rivalidade portenha, se tem disposto como uma espécie de constelação em redor da produção literária argentina e do pólo de irradiação cultural que tem sido a cidade de Buenos Aires. E esta situação concreta permite perceber como as diversas literaturas nacionais, que integram a chamada literatura latino-americana, se têm afirmado num processo centrífugo em relação a certas capitais (é o caso de Buenos Aires, Santiago do Chile, Bogotá, Havana e México), que têm funcionado, com a sua forte afirmação cultural, como locais de “fermentação” literária. 
 
Estas considerações vêm a propósito da edição, no nosso país, de uma colectânea de contos, intitulada Contos de Amor, Loucura e Morte, do escritor uruguaio Horacio Quiroga, que é considerado, tanto por argentinos como por uruguaios, como o fundador do conto moderno na literatura hispano-americana. Este escritor, depois de uma malograda tentativa nos domínios da poesia, logo no princípio do séc. XX, dedicou toda a sua vida literária à produção narrativa, em particular, ao conto. É indiscutível, desde o início, que a actividade literária de Horacio Quiroga é muito influenciada pelas narrativas de Edgar Allan Poe e, de seguida, pela obra de Joseph Conrad (principalmente pela sua visão da Natureza, uma vez que esta aparece também na obra de Horacio Quiroga como uma força maléfica ou que, pelo menos, testa a fibra moral dos homens). Até 1935, publicou cerca de uma dezena de obras narrativas, obtendo algum reconhecimento dos meios intelectuais, mas sem nenhum sucesso de vendas. Aliás, a sua vida, que transcorre entre Buenos Aires e uma região próxima da fronteira argentina-brasileira-uruguaia (Misiones), nos limites da selva, onde se dedica à actividade agrícola e comercial, foi continuamente marcada por falências, por uma crónica insuficiência económica e por um destino pautado por vários factos trágicos (é impressionante o número de familiares seus que se suicidam ou que morrem com acidentes de armas de fogo). Por fim, ele próprio, com cinquenta e nove anos, à beira da indigência e com um câncro, suicida-se em 1937.
 
Sem ser considerada a colectânea de contos mais importante (em geral é assim entendida a obra seguinte, intitulada Cuentos de la Selva), Contos de Amor, Loucura e Morte contem algumas peças que são indiscutíveis obras-primas e é bem exemplar para caracterizar as ambiências narrativas de Horacio Quiroga. Logo à primeira leitura se percebe que a maior parte destes contos se integra no género “fantástico”. Mas, no cenário sul-americano, o conceito de “narrativa fantástica” inevitavelmente se torna mais elástico e abrangente, diluindo as suas fronteiras com a narrativa realista (um bom exemplo deste facto está no conto “Os Pescadores de Vigas” desta colectânea): na maior parte das vezes, e a obra de Horacio Quiroga videncia bem este aspecto, o que demarca os dois tipos de narrativa é a perspectiva com que se trata determinado tema, acentuando-se, no caso da narrativa fantástica, a componente irracional da causalidade da trama.
 
Esta componente irracional, na obra de Horacio Quiroga, faz parte integrante do sentido do destino, dando-lhe, por isso mesmo, uma dimensão não só trágica como até terrífica. Neste aspecto, somos obrigados a reconhecer que esta visão trágica do destino está entralaçada com a própria experiência de vida de Horácio Quiroga e com o seu percurso excepcionalmente nefasto. De certo modo, a loucura e a morte aparecem sempre, nesta colectânea, como o fio de horizonte para onde todas as personagens são empurradas por “fracturas” de carácter, levando-as para situações assombradas pelos seus mais íntimos espectros. A dependência afectiva, a degradação moral, a ambição, o orgulho, a debilidade mental, etc., originam situações onde sempre a Natureza (e, em particular, a selva), com a sua pujança destrutíva, irrompe como anjo justiceiro, outorgando este estatuto trágico ao destino. 
 
Um aspecto peculiar da obra de Horacio Quiroga está relacionado com o importante papel que têm nela os animais. Estes animais, que aparecem nos seus contos muitas vezes como personagens principais, mesmo que “humanizados” em termos emocionais, mantêm, através de diversos artíficios narrativos, a sua perspectiva (toda a trama narrativa é colocada na óptica do animal), conferindo-lhes uma dimensão de fábula (alguns dos contos mais magníficos desta colectânea têm esta peculiaridade, como é o caso de “A Insolação” e de “Yaguaí”). No fundo, um dos objectivos subjacentes a estes contos com animais é o de reforçar a ideia de que emana da própria Natureza essa inevitabilidade trágica do destino.
 
Para quem desconhece a figura literária de Horacio Quiroga, este Contos de Amor, Loucura e Morte, pela sua elevada qualidade narrativa e pela forma como aborda certos temas, vai revelar-se como uma invulgar surpresa. Por isso, há que salientar a coragem de uma recente editora, como é a Cavalo de Ferro, por arriscar publicar, numa edição cuidada e com uma boa tradução, um autor que, sendo um clássico para a literatura latino-americana, era ainda quase por completo desconhecido no nosso país.
 
Publicado no Público em 2003.       
 
 
Título: Contos de Amor, Loucura e Morte
Autor: Horacio Quiroga
Tradução: Ana Santos
Editor: Cavalo de Ferro
Ano: 2003
161 págs., € 10,00