quinta-feira, 31 de março de 2016

PRAMOEDYA ANANTA TOER

 
 
 
AS EXIGÊNCIAS DA TERRA
 
Uma das fases decisivas na afirmação literária dos povos do Terceiro Mundo, em particular nos domínios da narrativa escrita, está associada ao processo (por vezes longo) da sua luta activa pela independência política e de refutação dos sistemas de dominação colonial. Em muitos casos, foi este o período “fundador” da sua narrativa escrita, o que, mais uma vez, parece vir confirmar as velhas teorias luckasianas de associar o aparecimento desta expressão artística ao processo histórico de conquista do poder por parte das burguesias nacionais. É o caso da Indonésia, onde, com algumas antecedentes excepções, a narrativa literária escrita, como movimento de expressão artística, apareceu no período de repúdio do sistema colonial; e, nesse aspecto, a obra de Pramoedya Ananta Toer, como componente de proa desse movimento, é decisiva e, em muitos aspectos, exemplar.
 
Simplesmente, as circunstâncias históricas em que aparecem estas obras condicionam, muitas vezes, a sua temática e mesmo a concepção dos modelos narrativos. As exigências da luta política e a denúncia de estruturas socio-económicas acentuadamente injustas (para não dizer criminosas) das populações colonizadas levam estes autores à produção de obras com um grau de intervencionismo mais imediato ou, pelo menos, a inscrever-lhes, com preponderância, o objectivo de contribuirem - aproveitando os efeitos dramáticos do texto narrativo - para reforçar a formação da consciência cívica dos seus leitores. Esta opção, em si mesma positiva e louvável, pode, no entanto, originar uma maior “temporalização” das obras; isto é, agrilhoá-las a um circunstancialismo temporal que, de uma forma inevitável, condiciona a sua leitura noutro espaço e noutro tempo.
 
Creio que é este o caso do último romance editado no nosso país de Pramoedya Ananta Toer, intitulado Uma Estranha Terra. Este autor indonésio que, em consequência das suas posições políticas e da sua luta pela defesa dos direitos humanos, passou uma boa parte da vida preso ou em retenção domiciliária - chegando ao ponto de lhe retirarem os meios para escrever (como é referido na edição, Uma Estranha Terra foi, antes de ser redigido, “fixado” oralmente no Campo Prisional de Buru) – tornou-se um símbolo vivo, por um lado, da tentativa de criação de um imaginário literário nacional, por outro, do escritor que, por exigências cívicas inadiáveis, se viu obrigado a condicionar a criação desse imaginário a objectivos de intervenção política.
 
O facto de Uma Estranha Terra ser um romance histórico (a sua trama passa-se nos finais do séc. XIX) deve-se, com alguma probabilidade, a necessidades de fugir a uma contemporaneidade que, sem sombra de dúvidas, condicionaria a circulação da obra. É certo que a história deste jovem nativo que, ainda no liceu, revela aptidões intelectuais e literárias precoces a par de um enorme fascínio pela cultura europeia, é tingida com colorações de época. Mas o interesse fundamental da obra é demonstrar como essa cultura ocidental, mesmo embebida de humanismo, era um alicerce central dos impérios coloniais, visto que fundamentou um quadro legal muitíssimo discriminatório entre cidadãos de origem europeia, mestiços e nativos, ao ponto de, através de brutais arbitrariedades, coagir o seu destino, como – é o caso referido na obra - o de não reconhecer os direitos maternos a nativas que tivessem filhos de europeus ou o de considerar nulos os casamentos interraciais. Ora, este tema, pertinente até ao fim do “apartheid” e dos impérios coloniais, tem hoje, felizmente, uma dimensão em grande parte “histórica”: à excepção de certos movimentos grupusculares que perderam o sentido da História e que apenas procuram aproveitar-se das tensões socio-económicas para tentarem fazer renascer posições sociais segregativas, ninguém, com significativas responsabilidades, seja qual for a sua fundamentação política, assume hoje, em termos históricos, a defesa da existência de Estados que incorporem, no seu quadro legal, um tratamento discriminatório, com base na distinção étnica, dos seus cidadãos.
 
Por isso mesmo, as componentes mais interessantes deste romance estão hoje na sua galeria de personagens e no tratamento literário de alguma sabedoria tradicional indonésia. Em particular, destaca-se a figura feminina de Nyai Ontosoroh (a amante nativa, “comprada” aos pais, de um rico proprietário holandês) que, com uma invulgar força de carácter, e contra todos os interesses colonialistas, consegue não só gerir e fazer prosperar os negócios da família, mas também adquirir alguma educação europeia e transmitir essa formação aos seus filhos. Ou ainda a do pintor francês, alistado no exército colonial holandês, que, depois de ter participado em violentas operações de repressão das rebeliões dos indígenas de Aceh e ter ficado ferido, se apaixona por uma indígena e, atormentado pela desmesura criminosa dos seus actos passados, procura redimi-los através do afecto à filha mestiça. Ou, por fim, a assombrosa história de uma prostituta japonesa que, depois de ter percorrido os bordéis de diversos portos do Extremo Oriente, acaba vendida, já corroída de sífilis, por meia dúzia de tostões, a um proxeneta chinês, proprietário de uma “casa de prazer” em Java.
 
A personagem principal, o jovem estudante nativo em redor do qual vai aparecendo esta fascinante galeria de personagens de “Uma Estranha Terra”, é, em certa medida, um “alter-ego” do autor, principalmente no doloroso dilema que vive entre o fascínio da cultura europeia, a consciência crescente do carácter desumano do regime colonial e a necessidade de contribuir para revitalizar a tradição cultural indonésia. Hoje, em que se pode considerar que boa parte da obra de Pramoedya Ananta Toer já está concluída, pode afirmar-se que o seu prestígio literário – e sem menosprezo pela invulgar coragem cívica que revelou toda a sua vida – está, no fundamental, em dois aspectos da sua obra: a simbiose que conseguiu realizar entre duas tradições culturais que, em termos históricos, se opuseram e, sobretudo, na sua capacidade de transfigurar em personagens as inquietações e o sofrimento profundos de uma sociedade tão heteróclita e culturalmente rica como é a indonésia.
 
Publicado no Público em 2003.
 
 
Título: Esta Estranha Terra
Autor: Pramoedya Ananta Toer
Tradução (da versão inglesa): Daniela Garcia
Editor: Quetzal Editores
Ano: 2003
415 págs., esg.
 
 



BOHUMIL HRABAL 1

 
 
 
 

FELIZ APRENDIZAGEM DA MORTE
 
  Prestem muita atenção ao que vos vou contar agora.”
 
Uma das mais fascinantes áreas de reflexão e estudo da historiografia recente é a que se tem definido pelo epíteto de “análise das imagens da História”. No essencial, esta debruça-se sobre as formas como se relaciona o percurso individual e a história colectiva e, em particular, pelas “imagens” ou “tratamentos” que a evolução social sofre no discurso pessoal. Tem-se assim conseguido sobressair, de forma metódica, as modalidades como ao nível do privado tem sido “vivida” a História. Nesta área de investigação, os grandes romances contemporâneos têm-se revelado como excelentes objectos de estudo. E, dentro desta ordem de ideias, a leitura de Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, o primeiro romance de Bohumil Hrabal traduzido para português, faz-nos crer que, pela sua imaginação esfuziante e barroca, pela dimensão simbólica e metafórica das situações narradas, se conseguiria estabelecer um inesgotável manancial de recorrências generalizáveis que permitiria compreender como no foro privado se viveram os vinte anos (1930-1950) mais importantes da historia contemporânea da Checoslováquia.
 
Bohumil Hrabal é geralmente considerado, com Milan Kundera e Josef Skvorecky, um dos maiores escritores checos vivos. Começou a publicar já tarde, com perto de cinquenta anos, no início da década de sessenta, obtendo logo com o seu primeiro livro, Pequenas Pérolas do Fundo, um enorme sucesso e tornando-se, desde essa altura, um dos escritores mais populares do seu país natal. Na década de setenta, apos a passagem no circuito internacional do filme Trens Rigorosamente Vigiados de Jiri Menzel, retirado de uma sua novela homónima, começou a ser traduzido, adquirindo um amplo reconhecimento, sobretudo nos países anglo-saxónicos.
 
Entretanto, começaram os seus problemas com o poder político e a censura. Após a “Primavera de Praga”, Bohumil Hrabal foi impedido de publicar e, durante oito anos, não apareceu nenhuma obra sua nas livrarias (este romance, Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, só circulou na Checoslováquia como “samizadt”). A partir daí, iniciou-se um jogo do gato e do rato ou de braço-de-ferro com o poder socialista checo, aqui e além ganho por Bohumil Hrabal, o que lhe tem permitido publicar mais alguns romances e novelas. Ultimamente, e dada a popularidade e o prestígio do autor entre a população, o poder político encontra-se indeciso entre seduzi-lo para a sua órbita ou, pura e simplesmente, tentar silenciá-lo através de interditos de publicação.
 
Contudo, não se pode afirmar que a obra de Bohumil Hrabal pretenda um deliberado e claro confronto com o poder socialista. De facto, ela coloca-se noutro registo, visto que reflecte um “olhar” que não é atravessado por nenhum “corpus” ideológico, um “olhar” que não pretende acusar mas compreender. E só por isso esta obra é incómoda para um poder que está convencido de que profetiza o futuro da História.
 
É habitual associar (como faz Jorge Listopad no “Prefácio” desta edição) a obra deste autor à de Jaroslav Hasek e de Franz Kafka e considerar que o grupo surrealista de Praga (esta cidade foi um dos centros mais profícuos deste movimento artístico) anda por perto. E referir também que ela articula, em profundidade, a tradição romanesca novecentista com as experiências da modernidade e que, por isso, é um dos exemplos mais acabados e perfeitos da ficção contemporânea da Europa Central. Cita-se ainda Rabelais, pelo humor e peio gosto do excesso. Mas, já agora, parece-me também importante salientar, tendo em consideração principalmente o romance agora publicado, o contributo da literatura tradicional. Confesso que pouco ou nada sei da literatura tradicional checa, mas, tendo em vista algumas características universais deste tipo de literatura, creio que deve ser de realçar a utilização permanente de “leitmotivs” (como aqueles com que iniciamos e acabamos este texto), técnica que remete para a base oral daquela literatura, a constância de certos ritmos frásicos que a tradução (segundo Jorge Listopad, “magnífica”) consegue deixar transparecer, o aparecimento de algumas imagens onde é bem manifesta a sua origem popular, etc.
 
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um longo monólogo biográfico de um jovem que iniciou a sua carreira profissional na indústria hoteleira como “groom” e que, passo a passo, e após ter casado com uma sudeta nazi e herdado uma valiosíssima colecção de selos apreendida aos judeus, torna-se milionário e dono de um dos hotéis mais luxuosos de Praga, para, por fim, depois da ascensão do socialismo ao poder, ver os seus bens confiscados e ser retido num alucinante campo de reeducação. Todo o romance é um frenético repositório de peripécias resultantes das relações que a personagem principal vai estabelecendo com os clientes, os colegas (em particular, os mordomos) e os patrões.
 
Mas esta sinopse nada reflecte da extrema originalidade desta obra. Porque ela é, antes de mais, estilística: o doseamento explosivo de um humor soberbo com uma ternura, que sabe aceitar, mesmo nas figuras mais medíocres e pobres, os seus defeitos e fraquezas, dá uma dimensão estética inconfundível a este romance. É como se este estilo fosse a sedimentação do olhar de uma criança truculenta e sábia que conseguisse, com a sua clareza, tornar translúcido o mundo e o comportamento dos homens. Situações como a do vendedor-ambulante que se sente realizado ao ladrilhar o chão do quarto com as notas que ganha, ou àquela em que a personagem principal desiste “in extremis” de se enforcar porque embate nos sapatos de um enforcado, ou ainda a cena de amor do Presidente checo com a sua amante numa casa de bonecas, como tantas outras que se poderiam referir, são não só inesquecíveis, como, na sua dimensão pícara, exemplares na representação do carácter, por natureza, “impuro” (para louvor dos Deuses, note-se) da condição humana.
 
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um típico romance de aprendizagem e formação. Cada capítulo e cada fase do “trabalho hoteleiro” da personagem principal são não só a caracterização, num espaço fechado, da ambiência social e cultural porque a Checoslováquia passou no período já referido, mas um estádio da aprendizagem de vida de um homem que pouco mais tem de seu do que a memória de uma infância habituada a desenrascar-se e a sobreviver (e estão lá todas as aprendizagens possíveis: do sexo, do amor, do dinheiro, do prestígio, da amizade, das limitações de si próprio e dos outros, etc.).
 
Mas, e principalmente, como revela o belíssimo capítulo final, aprender a viver é fazer una intensa aprendizagem da morte. É a própria personagem principal que o refere: “(...) cheguei à conclusão que a essência da vida está na interrogação sobre a morte: como me vou comportar quando chegar a minha hora? Na verdade, a morte, ou melhor, aquela interrogação de si próprio, é uma conversa colocada no ângulo de visão do infinito e da eternidade, a solução da morte é o começo do pensamento sobre a beleza, porque saborear o absurdo deste nosso caminho que, afinal, sempre acabará por um fim precoce, esse prazer e vivência do seu próprio aniquilamento é o que enche o homem de amargura, por consequência, de beleza.” É assim que ela aprende que “o inacreditável se torna realidade” e que, por tão inacreditável, se torna insustentável sabê-lo sem o partilhar com os outros. Daí a necessidade da escrita. Da escrita que deu origem a este Eu Que Servi o Rei de Inglaterra.
 
Depois de ler este romance, temos que ter uma outra atenção para quem nos serve no restaurante ou no hotel. Nunca se sabe se quem nos serve também já não serviu o rei de Inglaterra e, por isso, tem a irónica sabedoria de nos conhecer melhor do que nos próprios e estarmos, sob esse olhar, mais nus e expostos do que sob o olhar da nossa mãe quando nascemos…
 
“Já chega? Por hoje, é tudo.
 
Publicado no Expresso em 1889.
 
  
Título: Eu Que Servi o Rei de Inglaterra
Autor: Bohumil Hrabal
Tradução: Ludmila Dismanová e Mário Gomes
Prefácio: Jorge Listopad
Editor: Ed. Afrontamento
Ano: 1989
199 págs., € 8,91
 
 


terça-feira, 29 de março de 2016

TERRY MCMILLAN


 
A VOLÁTIL ESPUMA DOS DIAS
 
 
É interessante constatar como a literatura afro-americana foi reflectindo a evolução da situação social, económica e política da comunidade que a criou. De uma forma necessariamente linear, e deixando de lado alguns exemplos com um valor “arqueológico” (quer isto dizer, com uma importância mais documental do que literária), pode afirmar-se que a narrativa afro-americana começou a ganhar visibilidade, mesmo ainda revelando certas fragilidades literárias, na década de cinquenta com a obra, muito comprometida com as concepções marxistas, de Richard Wright. Nas duas décadas seguintes, com as obras de James Baldwin, Ralph Waldo Ellison, Langston Hughes e LeRoi Jones, a tónica maior desta literatura passou a ser a denúncia inflamada das situações de segregação racial, com textos de variável cariz panfletário, mas onde a problemática da negritude era sempre crucial. Na década de oitenta, com as obras de Toni Morrison, Ernest J. Gaines, Alice Walker e Charles Johnson, a tónica deslocou-se para a análise do percurso doloroso da comunidade afro-americana, entre a saga histórica e a reflexão mais ou menos intimista dos traumas desse percurso, em particular das fases da escravatura e da posterior integração urbana.
 
Observando de uma forma retrospectiva, parece agora que esta progressão, na aparência inevitável, assume as feições de um processo de crescimento, tendo só, na década de noventa, atingido um estádio em que esta literatura não está, pelo menos de uma forma espartilhante, condicionada pelos problemas da segregação racial e da afirmação social de uma comunidade. Ou, por outras palavras, mesmo sabendo que são ainda inúmeras as situações que tornam crispada a coexistência das comunidades branca e negra nos Estados Unidos, parece que os autores afro-americanos se dispõem a debruçar-se de uma forma mais acentuada sobre os conflitos internos da sua própria comunidade, provavelmente estimulados por um público que procura compreender por que meandros afectivos e comportamentais se vão sedimentando o reforço da sua cidadania e a participação crescente da sua comunidade na vida social, económica e política americana.
 
Um exemplo esclarecedor desta opção mais recente da narrativa afro-americana é a obra de Terry McMillan. Esta autora, nascida, em 1951, numa família humilde e destroçada pelo álcool, teve uma infância difícil e foi apenas através de um emprego fortuito na adolescência (arrumadora de livros nas estantes de uma biblioteca) que descobriu a literatura e que a sua comunidade escrevia livros. Tirou um curso de jornalismo, alcoolizou-se e viciou-se em cocaína (como tantos outros membros da sua comunidade), desintoxicou-se, tirou um novo curso de “escrita criativa” e, no final da década de oitenta, conseguiu publicar o seu primeiro romance (Mama), recebido com reticências pela crítica, mas acolhido de forma muito favorável pela população afro-americana que se sentiu reflectida nas suas personagens. Porém, com o seu terceiro romance, Waiting for Exhale, Terry McMillan alcança a unanimidade, tanto da crítica como do público, e o sucesso foi tão estrondoso (quatro milhões de exemplares vendidos) que a autora passou a ser uma figura popular em todo os Estados Unidos. Saliente-se que a crítica reconheceu principalmente a boa caracterização das personagens, um eficaz sentido da dramaticidade narrativa, a argúcia em destacar certos pormenores, tanto comportamentais como sociais, dando vivacidade e realismo às situações, e a forma como conseguiu cadenciar os diálogos num ritmo entre o humorado e o enternecido. No fundo, Terry McMillan, explorando a sua própria experiência pessoal, é uma genuína seguidora da tradição realista americana, aqui utilizada de um modo inovador ao serviço das problemáticas específicas das mulheres afro-americanas, estando neste facto, decerto, uma das principais razões da enorme sedução que a sua obra exerce dentro da sua própria comunidade.
 
O seu quinto e último romance foi agora editado no nosso país com o título Tarde e a Más Horas. O romance desenrola-se em torno de uma sexagenária afro-americana, sofrendo gravemente de asma, e estrutura-se de uma forma muito simples: cada capítulo, “girando” entre a personagem principal e cada um dos seus familiares mais chegados (o marido, de quem está separada, três filhas e um filho, todos eles, por sua vez, já com família constituída), dá “voz” às suas adversidades afectivas, profissionais, de reconhecimento social, mas, em particular, às suas inquietações com a imagem que conseguem transmitir entre si e, em particular, àquela mulher que continua a funcionar como “trave mestra” de uma família cada vez mais fragmentada e com notórios problemas de identificação (pode dizer-se, neste sentido, que Tarde e a Más Horas confirma o império da raíz matronal na sociedade americana). Com esta simples estrutura, Terry McMillan consegue desdobrar um humorado e diversificado fresco que exemplifica bem, antes do mais, o complexo estatuto actual da população negra dentro do Estados Unidos e, por outro, como o seu processo de afirmação dentro do modelo socio-económico liberal motivou a presente forte instabilidade das famílias afro-americanas.
 
De facto, em Tarde e a Más Horas encontramos um quadro social que vai desde a personagem que, através de uma “nova” empresa e dos “media”, atinge sucesso profissional e financeiro ao “loser”, perdido entre álcool e prisões por pequenos delitos, ou à baixa funcionária de um serviço público que procura, à beira do desespero, “salvar” a sua numerosa família da ruína e da desagregação. Desde rupturas a reconstituições precárias em novas famílias, da solidão “workaholic” a abusos sexuais sobre menores, da dependência a drogas ou ao álcool a desintoxicações, da violência doméstica a frágeis momentos de comunicabilidade e compreensão, de tudo um pouco se encontra neste romance.
 
Porém, e este é sem dúvida o principal mérito desta obra, há um olhar afectivo sobre as fragilidades e imperfeições de todas estas personagens que envolve o leitor e estimula-o a seguir os seus esforços em resistir às tentaculares inseguranças e em procurar ver claro no novelo dos ressentimentos e das pequenas vitórias. No fundo, estas personagens aparecem ao olhar do leitor como seres que se desgastam numa ansiedade que, a cada curva do destino, perde a razão de ser como se mais não fosse do que a volátil “espuma dos dias”. E esta imagem (roubada a Boris Vian) transmite-nos bem um dos efeitos primordiais do estilo de Terry McMillan: uma leveza que transfigura as tragédias pessoais numa ténue bolha facilmente rebentável na superfície ondulada do tempo.
 
É evidente que o projecto literário de Terry McMillan corre um risco a cada virar de página: um sentimentalismo que pode destroçá-lo, tornando os seus romances insuportáveis. Não é o caso de Tarde e a Más Horas que, durante mais de quatrocentas páginas, resiste com humor e sabedoria a este percalço. Por isso mesmo, e esta é a grande falha desta obra, a situação narrativa com que arremata, de um modo artificioso e teatral, quase que faz soçobrar um romance que é, quase sempre, deliciosamente “humano” e de uma inteligência reconfortante.
 
Publicado no Público em 2002.
 
 
Título: Tarde e a Más Horas
Autor: Terry McMillan
Tradutor: Cláudia-Müller Porto
Editor: Gradiva
Ano: 2002
429 págs., esg.
 
 



segunda-feira, 28 de março de 2016

WILLIAM FAULKNER

 
 

 
UMA TRAGÉDIA DE SOMBRAS
 
 
Quando o corpo de William Faulkner, em Julho de 1962, desceu a terra, o “som e a fúria” de uma imensa obra de ficção planava sobre uma vasta região, transfigurando-a num novo lugar da geografia mítica da literatura: o Sul dos Estados Unidos. Ninguém mais podia olhar do exterior para a sua natureza e para a sua população, sem ouvir, como que em banda sonora, o assombroso “cântico” desta obra, colando-se a elas e dando-lhes uma auréola de irreal singularidade...O seu ciclo obsessivo, de um estilo luxuriante e caoticamente sôfrego, repleto de personagens que, cruzando-se de romance para romance, sangravam um tempo e uma ética brumosos, em permanente decomposição por excesso de memória e de dor, tinha-se imposto, de forma imorredoura, como um dos mais inovadores da literatura contemporânea.
 
É certo que a sua obra sempre fora acusada de transmitir uma imagem parcial (dirão mesmo, com conotação pejorativa, “regional”) da realidade americana, da sua problemática estar deslocada do “mainstream” da literatura originária, de ter um estilo gongórico e árduo (“exasperante” chamava-lhe Jorge de Sena que, no entanto, muito o apreciava). Mesmo na Europa, e em especial em França que se orgulha de ter “descoberto” William Faulkner e onde, no imediato pós-guerra, a sua obra foi muito apreciada (Sartre chega a escrever que ele é adorado como um deus pelas novas gerações), ela nunca atingiu grandes tiragens — em particular, se as compararmos com as dos romances do seu “eterno rival”, Hemingway.
 
Porém, a obra de William Faulkner ecoa de forma excepcional no trabalho de inúmeros escritores actuais de diversas línguas e quadrantes geográficos. Mais: estes escritores não só reconhecem a sua “genialidade”, como afirmam, sem equívocos, que era impossível escreverem como escrevem sem que a obra de William Faulkner não lhes tivesse aberto as portas. De facto, mais do que a unanimidade no elogio (que ainda hoje está longe de existir), o que se admira, por parte de certos escritores, é a convicção sem pudor na dívida e a veneração pública e incondicional ao “mestre”.
 
William Faulkner é, entre os escritores deste século, um dos que, de forma mais acentuada, integra uma componente trágica em inúmeras das suas obras. É ela o cerne e o tom narrativo de, por exemplo, O Som e a Fúria, de Luz em Agosto, de A Fábula, assim como do romance, agora traduzido, de título bíblico, Absalão, Absalão!.
 
A tragédia tem sempre uma acção de presente não-visível. Quer isto dizer, que a sua acção ou é “prevista” (no sentido em que é sempre determinante a intervenção divina sobre o “fatum” humano) ou - principalmente neste tempo por maioria agnóstico - rememorada, na medida em que só a consumação dos actos lhes pode dar ou não aquela significação.
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É neste último sentido que a obra de William Faulkner tem uma constante propensão trágica, mesmo quando os seus romances explicitam outros registos: não se pode esquecer que todos os valores desta obra referenciam um universo anterior à Guerra de Secessão, um Sul que foi em definitivo marcado pelo troar das armas e pelo sangue. Além disso, a essa unidade de tempo referencial, que está subjacente mesmo nos romances em que a acção é contemporânea (como Sartre afirma: nos romances de William Faulkner não existe presente, tudo é pretérito imperfeito), o autor ainda acentuou a ambiência trágica, ao conceber um “palco” onde se processa a acção da maioria dos seus romances e que passará a funcionar como microcosmos de todo o Sul: o condado de Yoknapatawpha.
 
Assim, como sucede em Absalão, Absalão!, as personagens arrastam – em si mesmas ou em memória de outrem – códigos de honra e de ignomínia dos períodos heróicos em que a terra estava ainda virgem da propriedade e onde só o poder da força (provocando sujeições raciais e sexuais) conseguia libertar da miséria. E arrastam esses códigos pelo espaço claustrofóbico em que foram concebidos, entrechocando ambições ocultas, pesadelos familiares, vinganças de sangue. O destino trágico torna-se, portanto, um acaso sempre plausível. Não é - pelo contrário - a catadupa infindável de acontecimentos nefastos que dá apenas a dimensão trágica a Absalão, Absalão!. A saga dos Sutpen, com o seu rol de segredos infames, de miscigenações culpabilizadas, de incestos e assassínios, pela sua situação extrema, tem um valor simbólico do destino, putrefacto e magnífico, desse Sul das dignidades cavalheirescas, das plantações de algodão, da escravatura. Todas as personagens nascem já envelhecidas com o peso de uma memória irremediavelmente trágica.
 
No essencial, os Sutpen sabem que são meros títeres dos princípios e valores que originaram a divisão da terra, que hierarquizaram os homens, que os serenaram perante a culpa e a morte: tudo os marcará sem nada decidirem. E todos eles terão de pagar, de geração para geração, o pecado original de procurarem sobreviver.
 
Mas esta dimensão trágica da memória, esta sensação de todas as personagens serem peças de um jogo conduzido “ailleurs”, é reforçada pela estrutura do romance. De facto, todo ele é construído em infindáveis e sinuosas “falas” de alguém que tem necessidade de transmitir uma informação insuportável. E todas essas “falas” vão desembocar no jovem universitário Quentin Compson - espécie de “alter-ego” do autor e personagem essencial de vários romances de William Faulkner - que, por sua vez, asfixiado pela “história” dos Sutpen, sente necessidade de a contar a um colega de quarto, oriundo do Norte, de forma a que este compreenda a terra de onde o amigo vem.
 
É notório, pelo carácter obsessivo, dilacerante, com que Quentin Compson rememora os acontecimentos da família Sutpen e as suas implicações, que toda a tragédia se processa na cabeça dele, naquela memória que já não domina e determina todo o seu comportamento. Quentin Compson é um velho (“sou mais velho aos vinte anos que muitos que já morreram”, afirma a certo passo), um ser obscurecido pelas “sombras” dos Sutpen. Mesmo ele já não existe: é uma simples “voz” dos fantasmas que lhe exigem o testemunho como forma de “salvar” um sentido existencial.
 
Quentin Compson, depois de finalizar a história dos Sutpen, procura descortinar, nos labirínticos reposteiros das suas “falas”, um sentido e relembra que todas as personagens nasceram para “punir” outras personagens. Até a derradeira vergôntea dos Sutpen é um “nigro” imbecil — e “ninguém o pode agarrar e nem sempre ele se deixará ver” — que irá castigar, com a sua simples e anónima existência, toda uma história de aviltamentos da sua raça.
 
É de toda a justiça realçar, por fim, que esta edição de Absalão, Absalão!, pelo cuidado manifestado no seu “editing”, é, de facto, modelar. No entanto, confesso que a tradução já não me parece tão convincente. É certo que traduzir William Faulkner é um trabalho bem difícil e, de certo modo, impagável. Mas se não questiono o rigor e a busca de cientificidade da tradução, dá-me a ideia, contudo, que esse rigor atabafou, algumas vezes, a versatilidade literária de um estilo excepcionalmente complexo.
 
 
Publicado no Público em 1992.
 
(Foto do Autor de Martin J. Dain)
 
 
Titulo: Absalão, Absalão!
Autor: William Faulkner
Tradução: Maria Jorge de Freitas
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
269 págs., € 16,65
 

 


segunda-feira, 21 de março de 2016

AMY TAN

 



UMA MÃE, UM PRINCÍPIO

 

Um dos mais expressivos sinais da existência de progressos de democracia sociocultural nos Estados Unidos manifesta-se na afirmação literária, nas últimas décadas do séc. XX, das minorias étnicas. De facto, só nas décadas de oitenta e noventa - se excluirmos o caso da minoria negra –, é que as diversas comunidades, do gigantesco mosaico étnico que constitui os Estados Unidos, conseguiram introduzir-se nos circuitos das grandes editoras americanas e, a partir daí, obter o reconhecimento da crítica e do público leitor. É o caso da minoria sino-americana, radicada principalmente na Califórnia, representada já hoje por diversos autores (saliento, a título de exemplo, os nomes de Maxine Hong Kingstom e Ha Jin), mas, entre os quais, sem sombra de dúvidas, se destacou, pelo seu sucesso nacional e internacional, a escritora Amy Tan.

 
Esta autora, filha de pais chineses que emigraram para os Estados Unidos após a II Guerra Mundial, nasceu na Califórnia, no início dos anos cinquenta. Como é natural, toda a formação da autora absorveu os códigos socioculturais das duas culturas (chinesa e americana), tendo tirado uma licenciatura em linguística e iniciado a sua actividade profissional a trabalhar com crianças deficientes. Foi já tardiamente, após a morte da mãe (e quando descobriu, por acaso, que a mãe tinha outro nome e outra identidade na China), que resolveu começar a escrever, publicando, só em 1989, o seu primeiro romance, O Clube da Sorte e da Alegria, que foi um tremendo sucesso público (mais de um milhão de exemplares vendidos) e da crítica (foi finalista do National Book Award e do National Book Critics Circle Award). Depois, publicou mais três romances (todos eles traduzidos e editados em Portugal, sendo o último, A Filha do Curandeiro, muito recentemente), sempre com enormes sucessos de vendas, ao ponto de transformar a autora numa figura mediática e popular nos Estados Unidos.

 
Toda a obra desta autora - funcionando cada romance como uma espécie de variante analítica - se tem centrado, por sistema, na mesma temática: a revalorização, sentimental e filosófica, da tradição cultural chinesa no contexto americano e a tentativa de evidenciar a importância da ancestralidade familiar – em particular, na relação mãe-filha – como pilar essencial na definição de um quadro de valores e, por consequência, como elemento orientador para o estabelecimento de um posicionamento específico no contexto mais amplo da cultura americana.


Neste sentido, A Filha do Curandeiro é bem exemplar. Basicamente, o romance centra-se numa mulher de meia-idade, filha de chineses, e com uma vida profissional e afectiva muito desgastante e absorvente, que, de súbito, percebe que a sua mãe começou a ter falhas de memória, a fazer confusões trágicas, tendo, por conseguinte, sintomas da doença de Alzheimer: ao tentar compreender melhor o passado da mãe, descobre então que desconhece o seu percurso, mesmo quem era de facto a sua família, tomando consciência - um pouco tarde de mais – das profundas motivações do seu comportamento na aparência estranho. É esta situação – resultante em grande parte, não só das dificuldades de relacionamento entre gerações, mas do próprio afastamento das suas raízes culturais – que vai obrigar a personagem principal a uma tentativa de reencontro com o passado familiar, conseguindo-o através da “tradução” de um manuscrito que a mãe lhe deixou, onde esta expõe a sua existência desde o nascimento até chegar aos Estados Unidos. A transcrição deste “manuscrito” constitui a componente central do romance (A Filha do Curandeiro dispõe-se na forma de um tríptico) e nele se espelha, através do trágico destino daquela figura feminina, a postura sociocultural de uma família de comerciantes da China na primeira metade do séc. XX e as vicissitudes que sofre em consequência das bruscas mutações políticas do país. No final, este mergulho numa cultura milenar, repleta de códigos e de ritos ancestrais, de todo alheios à pretensa racionalidade ocidental, transfigura a personagem central, serenando a sua relação com a mãe, e tornando-a mais disponível para compreender a dinâmica afectiva e intelectual que o modelo social americano lhe impõe.

 
Amy Tan revela, mais uma vez, que domina com profissionalismo os registos narrativos, conseguindo uma obra que associa uma certa densidade lírica e trágica com uma inegável capacidade de anotar comportamentos e situações pertencentes a uma sociedade bem distante, cultural e temporalmente. No entanto, a leitura de A Filha do Curandeiro leva, a qualquer leitor que tenha acompanhado a sua obra, a colocar uma questão: não será inevitável que a autora encaminhe a sua obra para outros registos e temáticas, sob pena – a manter-se a tendência actual – dos futuros romances se tornarem repetitivos e monótonos?

           

Publicado no Público em 2002.

 

 
Título: A Filha do Curandeiro
Autor: Amy Tan
Tradução: Ana Fonseca
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
340 págs, € 17, 62
 
 
 



quinta-feira, 17 de março de 2016

ROBERTO CALASSO

 
 
 
AS MÁSCARAS DOS DEUSES
 
Uma das características de alguma da actual ficção (aquela que certos comentadores ousam definir como pós-moderna) relaciona-se com uma nova análise da estrutura dos mitos. De facto, um sintoma comum a escritores de origem e qualidade muito diversa (lembro, a título de exemplo, John Barth, Michel Rio, Gesualdo Bufalino e Christoph Ransmayr) é a tentativa de equacionar a funcionalidade do mito como figura paradigmática, de modo a que as personagens (mesmo originais) se ajustem com rigor às necessidades (narrativas, estéticas, epistemológicas) actuais.
 
É óbvio que esta tendência não é só dos dias de hoje (não é a novidade o que aqui se pretende), mas o seu carácter sintomático e deliberadamente intencional talvez o seja. Esta atitude é resultante, também é óbvio, da generalizada e forte consciência de que o real literário é sempre um simulacro de si próprio: natural é, por isso, a reflexão sobre os mitos, dado o seu estatuto de fundadores da narratividade e a sua capacidade de abrangente integração e interpretação. Por outro lado, essa reflexão poderá libertar a ficção daquilo que, para alguns autores, é um dos seus maiores perigos: a banalização das personagens e situações (utilizando-se aqui o termo banalização no mesmo sentido em que alguns cineastas falam, com riscos idênticos, de banalização da imagem).
 
É neste contexto que se deve entender a obra de Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia. Aqui o projecto é radical e simples: estabelecer, em síntese global, um novo “olhar” sobre os mitos clássicos gregos.
 
Antes de mais, convém salientar que esse olhar advém de um pressuposto determinado: o de que toda a cultura grega (pelo menos até Platão) assume a sua mitologia como uma hermenêutica. Quer isto dizer, que o comportamento humano é um tecido forrado pelo comportamento divino: nada na existência se produz sem que a teia de fios que conduz à divindade se faça sentir. Daí que a intensidade da vida seja entendida, como Roberto Calasso várias vezes refere, como o excesso resultante da imposição do divino no humano. Essa perturbação, resultante de uma hierogamia, é aplacada pelo sacrifício, que satisfaz os deuses, não só porque realça a sua qualidade excepcional (a imortalidade), mas porque, em contraste, dá consciência aos homens da sua “culpa original”: serem mortais e o seu sangue alimentar-se da morte para existir e circular. Por outro lado, toda a sabedoria humana alvejada parte deste princípio (a presença constante do divino) e, por isso, visa uma temperança que é, por dominância, estética, isto é, “morta”.
 
Repare-se que esta hermenêutica tem origem num acto erótico (a hierogamia), numa posse total. Daí que, para os Gregos, o acto erótico, entre deuses e homens ou entre homens, fosse aquele que permitisse atingir o conhecimento perfeito; o acto erótico transmite do amante ao amado a “graça” (a “charis”) que faz resplandecer o seu olhar, aproximando-o da natureza divina: “luz sobre luz”.
 
Mas, ao mesmo tempo, o acto erótico revela aquilo que, para Roberto Calasso, é fundamental no processo de conhecimento dos Gregos: o simulacro. O acto erótico é um acto de si para si mesmo, simulado pelo objecto amado; é um re-conhecimento, tornando-se a pupila do objecto amado na de Hades (a Morte), onde o amante se reflecte e descobre a precaridade da sua existência, a sua diáfana aparição entre o invisível e o invisível.
 
Percebe-se, assim, porque é que a realidade é translúcida: ela é a simulação de uma outra realidade, a dos deuses, dos heróis, de toda uma multidão de Seres onde de facto se decide a realidade material que os “modernos” assumem como única. Daí a “irresponsabilidade” e a ligeireza de toda a cultura grega, caracterizada pelo relevo da determinante estética e o sub-lugar do ético. E, por outro lado, a importância que nesta cultura tem a fatalidade, o complemento inevitável da irresponsabilidade: Ananké, a única deusa que não vale a pena nomear, porque não ouve.
 
O que querem os homens dos deuses? Pouca coisa (na verdade, os homens vivem bem sem os deuses porque estes vivem sempre com eles): uma certa beleza, distinta daquela que, na vida, está contida no excesso fatal que é a morte. Por isso, os Gregos foram, como se afirma em As Núpcias de Cadmo e Harmonia, grandes criadores de moldes, de molduras: a arte é, por essência, a criação de uma forma, de uma ordem, onde se procura “ocultar” o excesso natural através da “techné”. Por outro lado, a retórica, refere o anónimo autor de A Cerca do Sublime, citado por Roberto Calasso, é uma tentativa de transmitir “luz” ao já iluminado, sendo esta habilidade, em exclusivo humana, aquela que se aproxima mais das características demiúrgicas dos deuses.
 
A arte, e principalmente a literatura, é, por conseguinte, uma narrativa onde se procura envolver o mito. Esta simulação, procurando abranger, de forma fragmentária, todas as variantes do mito, pretende atingir o conhecimento através de um artifício de ofuscação, uma vez que o seu significado, para que seja perfeita, deverá ser apenas “uma pequena tira oscilante de lã”, presa a uma forma, que alude mais do que desvenda: “o primeiro inimigo do estético é o significado”, afirma-se a determinado passo de As Núpcias de Cadmo e Harmonia.
 
Por isso, quando os deuses e os heróis resolveram iludir a sua permanente presença entre os homens (os últimos heróis foram Édipo e Odisseus, mestres da palavra), quando os homens se afastaram dos deuses, dando sentido à sua existência através da hipótese da “salvação” (e aqui tiveram um papel importante os órficos e Platão), “o contacto com os seres e lugares primordiais apenas poderá acontecer através da literatura”. As núpcias dos heróis Cadmo e Harmonia foram o derradeiro momento da “máxima aproximação” entre os deuses e os homens; depois, envelhecidos, expulsos de Tebas por Dionisos, Cadmo, o fenício, aquele que espalhará pela terra grega as “pegadas de mosca” do alfabeto, e Harmonia, “a que concilia o oposto e o selvagem”, foram obrigados a continuar sua errância e a dar início à História.
 
Convém assinalar, a terminar, que a leitura aqui feita de As Núpcias de Cadmo e Harmonia é só uma forma, retoricamente humilde, de caminhar pela beleza fulgurante desta prosa pura (no sentido mais preciso que este termo deve ter - o de um texto que vive da deriva permanente entre géneros). Impossível pretender acompanhar a sua sinuosidade, colmatar a sua ilusória fragmentação. A justeza entre forma e perspectiva (e esta é notoriamente pré-romântica) consegue que esta obra de Roberto Calasso nunca se transforme num manual sobre a mitologia grega, mas antes num tratado que parece que não o é; ou seja, onde os sentidos são, em permanência, integrados e centrifugados. É desta justeza, resultante de uma reflexão classicizante e inovadora sobre a cosmovisão homérica, que advém a imensa importância desta obra: ninguém mais, depois da leitura de As Núpcias de Cadmo e Harmonia, pode continuar ingenuamente convicto do estatuto irreversível da modernidade.
 
 
Publicado no Público em 1990
 
Título: As Núpcias de Cadmo e Harmonia
Autor: Roberto Calasso
Tradução: Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Editor: Edições Cotovia
Ano: 1990
396 págs., € 5,00
 




terça-feira, 8 de março de 2016

NICHOLAS SPARKS

 
 
 
BONS SENTIMENTOS
 
Se há princípio milenar que, nas últimas duas décadas, voltou a ser frontalmente assumido, é o de que não vem mal nenhum ao mundo por ler uma história (boa ou má). Pelo contrário, decerto algo de positivo virá. E se uma história não chega para fazer um romance, não há dúvida que uma história (ou uma simples personagem, por exemplo) pode bastar para permanecer como um imorredoiro marco da arte narrativa para quem a lê, tornando-se decisiva para consolidar os seus hábitos de leitura.
 
O romance Um Momento Inesquecível (tradução questionável de A Walk to Remember) de Nicholas Sparks não pretende ser mais do que uma história contada de uma forma clara e sentida. Não chega para fazer um bom romance? Pois não; mas não vem mal nenhum ao mundo por isso. Nicholas Sparks é um daqueles autores americanos que tudo o que publica se transforma numa verdadeira “árvore das patacas”: os seus livros vendem-se às largas centenas de milhares de exemplares, só nos Estados Unidos, e, para além disso, são traduzidos e vendidos por todo o mundo. Criou um público – em particular, feminino - que espera com ansiedade os seus livros e os seus editores têm a garantia de que, seja o que for que tenha a sua autoria, terá sempre alguns milhares de leitore(a)s incondicionais.
 
Um Momento Inesquecível é, na nossa opinião, um romance interessante para jovens; não só porque se centra numa história de amor de adolescentes, repleta de bons sentimentos (e se os bons sentimentos - tal como uma história - não chegam para fazer boa literatura, também não fazem mal nenhum aos jovens) e de redenções, mas também porque, sem nenhumas pretensões, se expõe um processo de aprendizagem e a descoberta de um percurso para a maioridade.
 
O mérito do título em português é realçar uma das motivações do narrador (que, tendo todos os elementos de identificação iguais aos do autor, parece ser, por conseguinte, um seu “duplo”): ele percebe que está na “brevidade” uma das componentes da “perfeição” de uma história. Para além desta, a outra motivação é fruto da “gratificação” que sente, agora que se encontra a meio caminho do fim da vida, pelo papel que esta experiência desempenhou para mudar a sua atitude perante a vida e a sua concepção do mundo e da natureza. A aprendizagem, que absorveu com a sua vivência, deriva da obstinação da sua amada (uma jovem cujos valores religiosos e éticos são tão arreigados que fazem dela uma figura arcaica, ridícula e desajustada em termos sociais) em praticar a bondade e em “aceitar os desígnios de Deus”, ao ponto de essa atitude transfigurar a sua beleza, e de acreditar nesses princípios como se fossem o único caminho possível, sem rancores nem dúvidas, mesmo quando sabe que a sua morte é o futuro imediato.
 
Percebe-se, por tudo isto, que existe, em Um Momento Inesquecível, alguma dependência dos modelos da literatura de “self-help” que tanta importância sociocultural tem nos Estados Unidos (e que, a pouco a pouco, também começa a ter na Europa e até no nosso país). Mas, por isso mesmo, parece-nos que a integração desta obra na colecção “Grandes Narrativas” (do mesmo modo que o magnífico A História Interminável de Michael Ende ou as obras de Jostein Gaarder ou mesmo as de Susanna Tamaro), ao lado de títulos de Abelaira, Mourão-Ferreira, Alçada Baptista ou Helder Macedo (e isto para só referir alguns autores portugueses), é, na nossa perspectiva, uma estratégia editorial no mínimo bizarra, já que, de certeza, irá provocar equívocos num público eventualmente “fiel” à colecção.
  
Publicado no Público em 1999.
 
 
Título: Um Momento Inesquecível
Autor: Nicholas Sparks
Tradutor: Jaime Araújo
Editor: Editorial Presença
Ano: 1999
155 págs.,  esg.