quarta-feira, 29 de junho de 2016

CÉSAR AIRA

 
 
 

A NARRATIVA VERTIGINOSA

 

É sabido que uma das tendências dominantes da narrativa argentina contemporânea (basta recordar as obras, por exemplo, de Macedonio Fernández, Ricardo Güiraldes, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo, Roberto Arlt, Leopoldo Marechal, Julio Cortázar, Ernesto Sabato, Manuel Puig e, de uma forma mais peculiar, de Ricardo Piglia) se caracteriza pela constante imbricação da realidade com o fantástico, como se estes dois pólos, por um sistema de vasos comunicantes, estivessem em constante contaminação. É certo que esta tendência foi flutuando de matiz, conforme as opções estéticas e a fundamentação teórica das vanguardas e correntes literárias onde estas obras se integraram, mas nada disto obsta a esta asserção. E mesmo quando certos autores se insurgiram contra esta tendência, defendendo posições mais entroncadas no realismo (é o caso de Juan José Saer que chega ao ponto de acusar os escritores sul-americanos de se enfeudarem a uma determinada opção estética por necessidade de satisfazer a visão europeia do que entende como “produção narrativa latino-americana”), semelhante recusa só contribuiu para confirmar o seu vigor.

 
Ora, a importância da obra de César Aira advém, antes do mais, por transmitir, de uma forma imprevista e original, um novo fulgor a esta tendência.

 
César Aira muito pouco tem dado a conhecer do seu percurso biográfico. Sabe-se apenas que nasceu em Coronel Pringles em 1949, que vive, desde 1967, em Buenos Aires, que dá aulas de literatura nas Universidades de Buenos Aires e de Rosario e que, em paralelo, se tem dedicado à tradução de autores europeus, em particular franceses.

 
Creio que este desconhecimento não se deve apenas à natural preocupação do autor em não desvendar nem publicitar o seu universo privado, mas também à convicção de que os seus potenciais leitores se devem concentrar na sua produção literária e no seu trabalho sobre a literatura como fenómeno estético. De facto, César Aira, ao longo dos últimos vinte anos, tem efectuado uma peculiar reflexão sobre o património literário sul-americano, revendo-o à luz de novos critérios (cujos resultados se têm manifestado em polémicas intervenções na comunicação social, em conferências e cursos de literatura, mas também em ensaios publicados, dos quais se destaca os que realizou sobre Copi e Alejandra Pizarnik, mas, em especial, o seu Dicionário de Autores Latinoamericanos), ao mesmo tempo que publicou uma profícua produção narrativa e dramatúrgica: ao todo, desde que foi impressa a sua primeira narrativa em 1975, intitulada Moreira, César Aira já editou mais de três dezenas de títulos.

 
Foi, contudo, com a sua segunda obra, Ema, la cautiva, publicada já em 1981, que César Aira obteve o reconhecimento nacional, em consequência da polémica que originou no seio da crítica, entre entusiastas e detractores, entre os que destacavam a imprevisibilidade da sua trama e a originalidade da reflexão que lhe servia de força motriz e os que consideravam que a sua obra revelava um enfeudamento excessivo à produção literária de Jorge Luis Borges e Roberto Arlt. A partir desta altura, e a um ritmo intenso, César Aira publicou inúmeras novelas, onde se evidenciam La luz argentina, Una novela china, La liebre, La guerra de los gimnasios, Cómo me hice monja (cuja tradução agora se publica), Los misterios de Rosario, El Sueño, Las Curas milagrosas del Dr. Aria, El congreso de literatura, Varamo e Cumpleaños.

 
O conjunto mais expressivo da produção narrativa de César Aira é constituído por pequenas novelas (o autor chama-lhes “novelitas”) que classifica, com alguma ironia, como uma espécie de notas de pé-de-página de uma enciclopédia que, como alvejado projecto totalizante, deverá “constituir” a própria vida. Nessas pequenas novelas, César Aira procura evidenciar a dinâmica interna e autónoma das estruturas narrativas e a sua potencialidade em induzir “outras realidades” ou, por outras palavras, uma realidade própria. Partindo, na sua maior parte, de circunstâncias menores (muitas vezes a trama das suas novelas é pouco mais do que um “fait-divers”; por vezes, dá a ideia que, para César Aira, o quotidiano existencial não passa de uma sucessão de “fait-divers” entrecruzada de tédio…), o autor procura “seguir” o percurso que determinou o estímulo para a produção da obra, sacrificando a essa necessidade interna eventuais inquietações estilísticas (como já afirmou, as suas novelas exigem a virtude da falta de estilo). Nesse sentido, as suas “novelitas” revelam uma constante experimentação dos elementos narrativos (relação entre autor e narrador, entre monólogo e diálogo, anotações derivativas, papel da ironia, pastiche de outros universos literários, ritmo da acção, função dos elementos descritivos, etc.), questionando o modo como intervêm na encenação de possíveis verosimilhanças e utilizando-os de acordo com uma fluidez narrativa que procura levar o leitor a aceitar a coerência específica da obra. Não admira, por isso, que muitas das suas novelas contenham um momento abrupto da acção que transfigura o seu contexto inicial e faz confluir, subitamente, real e fantástico, num ambiente onde se diluem os contornos entre estes dois elementos.

 
Como Me Tornei Monja, a colectânea de três “novelitas” que agora se publica (em 1998, por alturas da sua edição no país vizinho, foi considerado pelo jornal “El País” como uma das dez obras mais importantes publicadas), reflete de forma exemplar esta caracterização genérica.

 
De facto, pode afirmar-se que a estratégia narrativa de César Aira nesta colectânea é, antes do mais, questionar as convenções do leitor quando lê. Tal sucede, de forma mais exaustiva, na “novelita” que dá título à obra, sem dúvida a mais complexa, onde, entre muitos outros aspectos, para além da análise, em situação, da já referida relação entre autor e narrador, se deslaça a conexão entre trama e título, se questiona, através da identificação de género sexual, a relação entre as personagens secundárias e o narrador, e se interroga de forma constante aquilo que o leitor entende como real e fantasia, etc.

 
O objectivo, comum às outras duas “novelitas”, intituladas “A Prova” e “O Choro”, é sempre o mesmo: abalar a convenção matriz do leitor assente na procura de verosimilhança. Não através de um confronto directo a essa convenção, mas, pelo contrário, através de um hábil intrincar de trama e estilo, conseguir tornar o inverosímil aceite como verosímil. Como “tour-de-force”, a comprovar a eficácia da estratégia, o autor coloca, no desenrolar da trama, um incidente (no caso destas “novelitas”, sempre violento) que transfigura o seu percurso, tornando-o imprevisível e dando uma sensação de vertigem ao leitor. Paralelamente, a reforçar esta mesma sensação, manifesta-se também a forma como se expressa a corrente da consciência do(s) narrador(es), num permanente deslizar entre delírio e vigília, que, ao questionar o que entende como realidade, encaminha o leitor para uma permanente incerteza em saber para que universos o conduzem.

  

Adaptado da introdução publicada na edição portuguesa de Como Me Tornei Monja em 2006.

 

 

Título: Como Me Tornei Monja
Autor: César Aira
Tradutor: José Agostinho Baptista
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2006
224 págs., 15,00 €


 




terça-feira, 14 de junho de 2016

STIG DAGERMAN 2


ATINGIR O CORAÇÃO DO MUNDO
Todos nós conhecemos histórias de suicidas. São gente de carreira breve e obstinada. Mas, nos casos mais convictos, geralmente bem sucedida. Quem os conheceu sabe que o seu olhar tem a dureza de quem descobriu qualquer “certeza inatingível”, porque veio do lado invivível. Face a eles, pode usar-se da retórica. Mas fica-se sempre inábil: mais vale esperar que regressem a uma outra certeza mais tangível, mais cutânea, mais terrena e, desse modo, ponderem que, para lá de tudo, é sempre melhor mudar de carreira.
Stig Dagerman tem fama de ser um escritor suicida. Criou, por isso, uma auréola de radical santidade. E, por outro lado, contribuiu para generalizar a convicção de que os suecos são um povo de suicidas. Mas é urgente assinalar que esta fama é lamentavelmente redutora. Porque Stig Dagerman é só um dos mais perturbantes e complexos escritores do pós-guerra.
O pequeno livro agora publicado, A Nossa Necessidade De Consolo É Impossível De Satisfazer, parece, pelo título, confirmar essa imagem que se criou do escritor. De imediato, o título retém: pressente-se que entramos numa zona limite, de grau zero, onde a literatura ainda não é possível devido à intensidade da dor. E que a escrita está aqui na sua função primeira, ancestral: a de registar o grito.
Abre-se o livro e percebe-se que é oriundo das enevoadas (e sempre presentes) paragens da morte. E, por isso mesmo, inconsolavelmente optimista.
Sabe-se da morte e ela enche de negrume tudo. Não há, de facto, consolo possível. Mas vive-se, ama-se, escreve-se, luta-se. Porque sabe-se também que, mesmo nas dependências que nos fazem ver o que não há, existem fulgores. E que eles nada têm a ver com o tempo, esse monstruoso inimigo.
Por isso, descobre-se a beleza. Aquela que nos faz os gestos certos, soberanos. Aquela que cria o logro do divino em nós. E escreve-se: “Nem a vida é mensurável, nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana - força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando a sua liberdade.”
E descobre-se a liberdade. Mas tudo a afasta: em primeiro lugar, a nossa consciência que nos desloca da serenidade da Natureza; em segundo lugar, os outros que nos desconhecem e quantificam. Por isso, temos o imenso consolo da luta. Por um lugar primordial na Criação. Por um destino inqualificável entre destinos únicos e partilháveis. E escreve-se: ”E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo. É este o meu único consolo.
Como fazer uma recensão a um livro destes? Não sei. Ou melhor, sei: escrevê-la como se escreve uma missiva de solidariedade a quem, no meio das poucas certezas, soçobrou numa incerteza derradeira. E transmitir-lhe de uma forma tardia uma certeza inútil: a de que um encontro com páginas como estas é ainda um consolo possível e necessário. Que, de facto, as suas “palavras tocaram o coração do mundo”.
Publicado no Expresso em 1989.
Título: A Nossa Necessidade De Consolo É Impossível De Satisfazer
Autor: Stig Dagerman
Tradutor: Paula Castro e José Daniel Ribeiro
Editor: Fenda Edições
Ano: 1989
28 págs., esg.