quarta-feira, 28 de junho de 2017

MARGARET ATWOOD

 
 
 

O OLHAR PERTURBANTE
  
Há livros onde é incómodo entrar: são escritos como se dois amigos, de toda uma vida, conversassem sussurradamente sobre os recantos mais íntimos das suas almas e nos recantos mais íntimos das suas casas, justificando-se, solicitando desculpas, confirmando afectos. Qualquer interrupção é uma intromissão indelicada. Mas, ao mesmo tempo, tal como nesse balanço privado, esses livros irradiam, na exposição das suas experiências específicas, um apelo a uma empatia particular, a uma paixão distinta; ficamos, por isso, indecisos entre o pudor e uma aberta identificação com as palavras que pressentimos de cansaço, de carência, de fragilidade.
 
Desde as primeiras páginas de Olho de Gato, percebemos que a narração biográfica de Elaine Risley, a sua personagem principal, é, antes do mais, um longo monólogo confessional para uma amiga. Esta pintora de meia-idade, ao regressar à cidade onde passou a infância e a adolescência, para a realização de uma retrospectiva de consagração, sente-se impelida a confrontar-se com o seu passado e a perceber a origem das suas fixações e referências. Por isso mesmo, este romance é também uma espécie de catálogo interpretativo daquela exposição: todos os capítulos (cada um deles tem o mesmo título de um dos seus quadros) se iniciam com uma secção situada no presente da personagem principal que, por sistema, provoca reminiscências e alusões à sua infância e adolescência (desenvolvidas em termos narrativos nas secções seguintes), em que viveu as situações que tornaram aquela cidade (Toronto) tão umbilical e insuportável e se cristalizou a simbólica pessoal que preenche a sua figuração pictórica.
 
Filha de um biólogo em permanente trabalho de campo e de uma mãe que se isola num universo muito pessoal, Elaire Risley passa a sua primeira infância longe de figuras do sexo feminino e, quando vai residir para Toronto, tem inúmeras dificuldades em padronizar o seu comportamento pelo das colegas de escola e amigas. O seu desajeitamento vai tornar-se, por isso, nas suas relações de amizade, alvo natural de quem é transparente e fácil porta-voz da norma, como sucede com a sua amiga Cordélia. A sua sensibilidade subjuga-se à culpa que lhe provoca o olhar de Cordélia, fazendo com que todas as suas amizades, como é comum nas relações infantis, se tinjam de terrores, perversões, ódios ferozes, desejos de morte (é bem curiosa a acentuada analogia de ambiência que existe entre este romance de Margaret Atwood e alguns desenhos sobre temas infantis de Paula Rego). Como numa câmara escura, estes sentimentos fantasmagorizam todas as situações e objectos, redobrando-lhes a significação e deixando, no universo infantil de Elaine Risley, marcas dolorosamente indeléveis: todo o seu crescimento vai transformar-se num constante acto de esforço para criar uma aparente insensibilidade ao pânico que levou uma criança de nove anos a beira do suicídio.
 
Mas crescer não alterou nada: é esta a constatação que assombra Elaine Risley quando, regressada a Toronto, observa o conjunto dos seus quadros. A pintora continua, com a mesma ansiedade, à espera que chegue a sua amiga Cordélia, temendo, da mesma forma que na infância e na adolescência, o julgamento mordaz desta sobre a sua vida e a sua obra.
 
No entanto, Cordélia provavelmente já não existe (ou transfigurou-se no olhar dos outros?) e Toronto já não é igual à da sua infância. Só que a “câmara escura”, donde vinham as vozes e os olhares que a culpabilizavam e apavoravam, não desapareceu com o tempo. O tempo apenas serviu para destruir (ou alterar) as referências exteriores, para confirmar o mergulho definitivo dessa “câmara escura” dentro de si: o “olho de gato”, o berlinde que a pintora guarda desde pequena e que a fita com o seu olhar vítreo e inalterável, nunca mais a abandonará e identificar-se-á por completo com a sua forma de estar e sentir.
 
Este romance de Margaret Atwood. é um perfeito exemplo de como é impossível demarcar o estilo de um modo de olhar. A originalidade das metáforas e associações, do material seleccionado do magma da realidade, a perspicácia da reflexão sobre o quotidiano, os afectos e o crescimento - tudo, enfim, que enforma e distingue, em termos estilísticos, Olho de Gato no conjunto da produção literária recente - tem uma inequívoca matriz unificadora no olhar, torturado e sofrido, de Elaine Risley.
 
Oriundo do Canadá, essa “fronteira” que ainda imaginamos como uma infinita e desolada floresta nevada, e de uma literatura que mantem um inevitável estatuto periférico, Olho de Gato poderia ser uma espantosa revelação (em particular, para quem não tivesse dado conta da edição portuguesa de um outro romance de Margaret Atwood, Crónica de uma Serva) de uma romancista (e poetisa) que é considerada como um dos autores mais importantes do seu país e dos mais interessantes em língua inglesa. Poderia, porque as qualidades desta obra são só pressentidas na edição portuguesa. A sua tradução é uma verdadeira catástrofe, com construções frásicas primárias e inúmeras vezes incorrectas, uma pontuação calamitosa. Para editar desta forma, mais vale nada fazer: contribui-se para afugentar o leitor, já tão “escaldado” de medíocres traduções, e empurra-se um romance, e provavelmente toda a obra de um autor, para o purgatório dos “monos” que apanham poeira nos armazéns das editoras. Olho de Gato não merecia este “nosso” destino.
 
Publicado no Público em 1990.

(Foto da Autora de Jean Malek).
 
  
Título: Olho de Gato
Autor: Margaret Atwood
Tradução: Ana Heizkessel
Editora: Publicações Europa-América
Ano: 1990
372 págs., € 18,42
 



terça-feira, 27 de junho de 2017

SAMUEL BECKETT

 
 
 

A IMPRECAÇÃO CONTRA O TEMPO

 Uma das particularidades mais salientes da obra de Samuel Beckett, uma das mais decisivas para perceber como o homem deste século se assume em termos ontológicos, é que os seus textos (peças, romances, narrativas, poemas) não devem ser encarados de forma autónoma: na sua diversidade, eles são a reposição de uma mesma e contínua angústia metafísica, um linguajar de uma única fala. Por isso, torna-se muito difícil escrever especificamente deste Pioravante marche agora editado.

Uma das questões determinantes na obra de Samuel Beckett é a sua radicalidade ética e estética. De facto, os textos deste autor partem do princípio de que quase nada existe antes deles. Talvez se vislumbrem ténues vestígios de um corpo, penumbras de um lugar, restos de uma entidade. Mas também muito pouco existe depois deles. O receptor não passa de uma testemunha anónima de uma fala que existe por si e que não procura nada nem ninguém. Na linha do tempo, esta fala mantém-se na expectativa. De uma difusa compreensão que há-de vir, de um lampejo que, em definitivo, cegue.

 
A esta radicalidade estética ajusta-se um posicionamento ético que entende a literatura como uma espécie de emanação natural do absurdo metafísico que fundamenta a existência humana: a consciência da morte. Mas esta não é só entendida na sua dimensão física, mas reflexo maior da absoluta incomunicabilidade das consciências. A vida é urna simples viagem vertiginosa para a desagregação, uma paciente decomposição das ilusões até se atingir toda a opacidade do outro e se ficar com a certeza residual de um corpo, de um lugar. E a literatura é a única arma, romba e frágil, que se pode erguer contra o tempo. Esta sua exclusiva tarefa, obriga-a a descarnar-se de atributos, a revelar-se no osso da palavra.

 
Não há, no entanto, dúvidas em Samuel Beckett sobre qual o resultado desse duelo entre a literatura e o tempo. Mas esse resultado em nada alterará o devir da literatura: a fala, e isto basta para infinitamente a justificar, é a expressão mínima de um organismo no confronto inglório contra o tempo, a imprecação possível perante a brutal injustiça da criação divina.

 
Sob o aparente exercício da lógica de Pioravante marche, traduzido de uma forma provocatória e polémica (mas correcta) por Miguel Esteves Cardoso, sob este discurso que, em coerência, se contradiz, que se limita à síncope curta da palavra, vindo de um indefinível narrador, perseguindo informes personagens que corporizam interrogações essenciais, passa uma torrente subterrânea que, de um modo desesperado, “não sai”, mas que a todos nós referencia.

 

Publicado na Ler em 1988.

(Foto do Autor de Jane Bown).

 

 

Título: Pioravante Marche
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Miguel Esteves Cardoso
Editor: Gradiva
Ano: 1988
87 págs., esg.