sábado, 27 de janeiro de 2018

OSVALDO SORIANO

 
 
 

VÍTIMA DA REALIDADE
  
Entre os anos trinta e cinquenta, a Argentina passou por um conjunto de transformações económicas e sociais que lhe configurou uma realidade a que só a distância poderá dar a ilusão de ser similar à do restante continente sul-americano: uma enorme concentração urbana, resultante de uma acelerada industrialização, colocou, em efervescente confronto, uma classe media próspera (“filha” da intensa imigração, de origem espanhola e italiana, que acorreu, no início do século, a este pais, como se fosse a Terra Prometida) e uma massa operária de origem mestiça, desenraizada culturalmente, sem grande consciência política, mas galvanizada por partilhar o bem-estar social que aquela classe média adquirira. O peronismo e o pós-peronismo, as ditaduras militares e as democracias restritas são não só sequelas desse confronto, como vão contribuir, pela arbitrariedade política com que o pretendem “camuflar”, para agravar esta situação social.
 
Porém, esta complexa realidade socio-política tem-se revelado “imperativa” para uma excepcional produção artística e literária - a que não deve ser estranho também o elevado índice, no contexto hispano-americano, de alfabetização da população - e que transformou Buenos Aires na verdadeira capital cultural da América do Sul. Se considerarmos a obra de autores como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato ou Júlio Cortazar, pode-se mesmo afirmar que essa realidade, mais do que “imperativa”, se tornou “alucinante”, tal a importância que tem, na complexidade e diversidade destas obras, o elemento fantástico.
 
Em boa justiça, deve ter-se presente este quadro social para se melhor compreender a novela, agora traduzida, Quartéis de Inverno, de Osvaldo Soriano. Este autor, pertencente à geração posterior à do “boom”, tem produzido uma obra que se tem situado em registos que, a seu modo, estão nos antípodas das dos autores consagrados já referidos. De facto, desde as suas características estilísticas à recorrência de uma certa “mitologia’, a etiqueta mais adequada a esta produção narrativa é a de “cinematográfica”. A secura frásica, o ritmo da acção e a linearidade narrativa fazem não só lembrar a escrita de “guião” fílmico, como tornam evidente que não andam muito longe dela dois grandes “patronos”: Ernest Hemingway e Raymond Chandler.
 
Quartéis de Inverno narra a deslocação a uma pequena povoação de província, sede de um aquartelamento, de um cantor de tangos e de um “boxeur” que, por razões “alimentares”, vão ‘abrilhantar” as festas anuais lá do sítio. Mas, desde o início, o que se evidencia é a sangrenta presença das forças militares que tudo controlam, remetendo a população para uma clandestinidade de fantasmas que, pela sombra, vão dando, aqui e ali, sinais do seu mal-estar face à indiscriminada brutalidade das armas. Contudo, esse surdo mal-estar basta para empurrar as “vedetas” para o estatuto de “malditos”, ao ponto de se tornar nítido que elas servem de simples pretexto para fazer distinguir a opressiva superioridade do exército.
 
É evidente que este cenário concentracionário pretende representar, através de uma situação concreta, o contexto político da Argentina durante a década de setenta e assinalar como a instituição militar, desde que não seja contida no quadro legítimo da defesa social, se pode tomar instrumento arbitrário de obscuros interesses particulares, chegando à situação gratuita de brutalizar a sociedade pelo gosto mórbido de ver estampar-se o medo no rosto daqueles que podem dominar pela tortura e pela violência.
 
O interesse maior de Quartéis de Inverno está efectivamente na forma como utiliza a ambiência do chamado “romance negro” para fins de denúncia politica. É certo que a novela prende o leitor por uma bem “oleada” técnica narrativa, ainda por cima servida por uma cuidada tradução: mas o excesso de maniqueísmo de que Osvaldo Soriano não quer nem pretende fugir, transformam-na numa obra que nada acrescenta para a compreensão de uma realidade que, no fundo, faz também dela sua “vítima”.
 
Publicado no Público em 1994.
 
 
Título: Quartéis de Inverno
Autor: Osvaldo Soriano
Tradução: António José Massano
Editor: Asa
Ano: 1994
159 págs.., esg.
 
 


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

MICHEL RIO 2

 
 
 

AS TREVAS E A LUZ
 
O problema de uma certa ideologia e de alguma literatura (e aqui pontifica, e de que maneira, a literatura francesa deste século) foi o de crer que o homem é Deus: foi essa a imagem a que algum humanismo não conseguiu (ou não quis) fugir. Mas, nos últimos anos, talvez décadas, a História tem provado como isto foi um enorme logro. E que matou tanta ou mais gente que as catástrofes naturais, por exemplo.
 
Hoje devia ser mais do que sabido (mas é, de facto, esquecido com facilidade) que o homem é erro. E que é na luta contra o erro que se tem afirmado como homem. Nunca foi posto em dúvida, que se saiba, o sentido da luta da razão contra o caos. Desde que se tenha a ressalva, naturalmente, de entender como caos muito do que foi assumido como razão e de que esta assuma a paixão como elemento ordenante, redutor do caos.
 
É de tudo isto que trata Merlim de Michel Rio. E é assombroso (mas sintomático) que um escritor, no final deste século, sinta necessidade de escrever um romance sobre este tema. E faça um livro optimista, ferverosamente apologista do sentido histórico da razão.
 
Michel Rio resolveu ir buscar um mito das primeiras ficções. Quer isto dizer, ao tempo em que estas introduziram, de forma sub-reptícia, alguns grãos de loucura nos fundamentos da Verdade. E desse mito fazer um profeta laico, um defensor da força espiritual contra a força física. O que este romance narra é o tempo das névoas, em que os homens viviam asfixiados por todas as naturezas, em que as instituições não tinham tido força para as afastar, impondo-se como Lei. E o contributo de um mito, disfarçado aqui de homem, para a impor.
 
Tudo o que há é guerra”, diz uma personagem crucial deste romance. E Merlim vai lembrando-se desta frase para a combater. Artur e a Távola Redonda são criações de Merlim para fazer crer aos homens e ao (seu) espírito que aquela afirmação não é um destino irreparável.
 
A paixão, quando irrompe, corta, nestes tempos, a direito como uma navalha e todo o tipo de incestos são aqui cometidos, todo o tipo de adultérios são sem mácula. A paixão é, em Merlim, o sedutor, o indominável, o irremediável hemisfério sul do espírito. Mas ele é também entendido como o principal fornecedor de matéria-prima do prazer e da paixão. E esta como corpo, como quotidiano necessário para o trabalho da razão. E, contudo, como sua principal inimiga também: Merlim apaixona-se; mas salienta sempre que o papel do soberano, por dever de eternidade, está em afirmar a Lei contra a paixão.
 
Espero que esteja de férias, leitor. Se estiver, leia este livro. Michel Rio é um autor francês com um certo traquejo profissional (este é o seu sétimo romance). Não se pode dizer que seja na verdade um criador, mas é brilhante. E tem inegáveis méritos de estilista, que a tradução, felizmente, deixa revelar. Talvez o leitor, no fim, não se sinta muito mais culto, mas fica, de certeza, empolgado e reflexivo sobre aquilo que há muito já reflectiu.
 
Segundo Merlim, a razão deixou ruir várias vezes o mundo enquanto Merlim foi vivo. Quantas vezes irá ruir mais? Que cada um tropece nas ruínas da sua vida... Aprenda, leitor, aquilo que já sabe: a razão é sempre curta. É mesmo a sua qualidade mais essencial. Aprenda que a Fata Morgana, a exilada, canta e encanta, como uma sereia, sempre, sempre, a sua razão e a sua verdade, leitor. Merlim, antes de desaparecer da história e se tornar de novo mito, enterrou o cadáver de Artur, o campeão da Justiça, junto de Morgana, a irmã, amante e inimiga. E o “recado” torna-se óbvio: nem estamos em Camelot, nem estamos em Avalon, mas a meio caminho, num canal (o Canal da Marcha) por onde a vida passa.
 
Confundi-o, leitor? Não queria, confesso. Por isso, utilizo, como um comentarista medieval, um argumento de autoridade: a crítica francesa, ao analisar este romance, lembrou Shakespeare. Aquele (com Cervantes) que tinha um pé nas trevas e outro na luz. Será esse o caminho de um iluminismo deste fim de século? Será, pelo menos, uma suave ponderação para se ter ao sol de Setembro.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Merlim
Autor: Michel Rio
Tradução: Telma Costa
Editor: Teorema
Ano: 1990
139 págs., € 8,98
 
 


domingo, 14 de janeiro de 2018

LOUISE ERDRICH

 
 
 

 
SEM RESERVAS
 
Quando Filtro de Amor apareceu em 1984, certos críticos perceberam que, com este romance, qualquer coisa se “deslocava” nas letras americanas. E, no entanto, quase todos concordavam que nada havia nele de radicalmente inovador.
 
Pelo contrário, Filtro de Amor, de uma jovem escritora de trinta anos, retomava a seu modo uma das mais genuínas tradições literárias americanas. Nas suas páginas, renascia aquele realismo existencial, de forte carga simbólica, que, vindo de Herman Melville e Sherwood Anderson, tinha sido de forma exaustiva cultivado pela literatura sulista: Eudora Welty, Flannery O’Connor, Carson MacCullers e, obviamente, por essa ave de rapina que continua a pairar e ensombrecer o acidentado chão da literatura contemporânea — William Faulkner... só que vinha de uma escritora do Dakota do Norte e, ainda por cima, meio-índia Chippewa: Louise Erdrich.
 
Mas se o aparecimento de Filtro de Amor parecia vir dissolver as unidades que compõem o universo literário norte-americano (era de facto sintomático que uma escritora do Norte - e índia - produzisse uma obra que dava uma importância crucial à territorialidade e ao clã, a um exaustivo tratamento psicológico das personagens e reforçasse a dimensão simbólica das situações dramáticas), por outro lado, este romance instituía, pela sua qualidade artística, uma literatura índia moderna, peça que faltava no complexo “puzzle” que é a produção literária dos Estados Unidos.
 
A crítica americana, além disso, expressava a opinião de que os melhores termos para caracterizar Filtro de Amor eram palavras inteiramente fora de moda como militância, identificação, exemplaridade.
 
De facto, é notório que Filtro de Amor está empenhado, sem ambiguidades, em explicitar o mal-estar sociocultural de um povo que, tendo dominado todo um continente, hoje se encontra confinado a reservas, reduzido a duas centenas e meia de milhar e é utilizado ridiculamente para propaganda turística e humilhantes “westerns”. Na verdade, não há aqui nenhum folclore de pacotilha: as personagens, que por estas páginas aparecem, vivem uma fruste marginalidade, lutando pelas mais elementares condições de subsistência, desenraízados dos seus hábitos económicos e culturais. Aqueles que tentam manter as ancestrais tradições de caça e de pesca (como o velho Eli), são encarados, pelos da sua raça, como figuras selvagens e estranhas; porém, ao mesmo tempo, todas estas personagens se sentem como descendentes dos antigos senhores das grandes planícies, e, por isso, regaem contra este contexto, através de uma deslocação “pervertida” (a fuga, o trabalho itinerante, o álcool e até, de certa forma, a clausura monástica).
 
A autora, para revelar toda a densidade desse mal-estar e o perspectivar de uma forma globalizante, resolveu optar por narrar, de forma descontínua, a crónica de duas famílias durante os últimos cinquenta anos, utilizando uma técnica simples, mas muito eficaz: diversas situações, determinantes no destino dessas famílias, são descritas por oito narradores distintos, o que não só lhes intensifica o carácter fulcral para cada personagem, como lhes transmite uma significação colectiva, dado que assumem um sentido simbólico que identifica bem a complexa instabilidade que vive todo o povo índio.
 
No entanto, não se julgue que as preocupações literárias de Louise Erdrich são apenas colectivistas. Pelo contrário, a construção elíptica dos diálogos, a descrição sintética dos comportamentos, a densa caracterização das personagens são feitas com tal poder empático, que o leitor fica em dúvida que estas sejam na realidade ficcionais. As catorze narrativas interrelacionadas, que constituem Filtro de Amor, encenam situações-limite, exemplares no seu dramatismo, para a compreensão ética e psicológica de cada personalidade central. Histórias, como as de “Gansos Selvagens”, “O Descapotável Vermelho” e “Coroa de Espinhos”, para apenas citar algumas, são não só tramas fulgurantemente originais, como, pelo seu desenvolvimento narrativo, conseguem expressar, de forma inesquecível, a intensidade da paixão, o vibrar dos afectos daquelas figuras que, vivendo e morrendo nas suas casas rurais, deambulando pelas estradas e móteis do interior, alcoolizando-se e adormecendo ao balcão de bares das cidades de província, são arrumadas, de forma anónima e retórica, sob o epíteto de “América profunda”.
 
Quando fechamos este livro, encontramos na contracapa o rosto de uma mulher bonita e serena. E jovem, também. E espantamo-nos: quantas vezes, de onde menos se espera, aparece a navalha que rasga o filtro da contenção e nos reconcilia com vida e a literatura. Não há dúvida: Filtro de Amor é a comprovação que o realismo americano se encontra bem de saúde. E recomenda-se.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Titulo: Filtro de Amor
Autor: Louise Erdrich
Tradução: Fernanda Barão
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
251 págs., 12,59 €
 
 


quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

JORGE IBARGÜENGOITIA 2

 
 
 
CONSPIRAÇÃO FRACASSADA
 
Quando, há quatro anos, a Editorial Caminho publicou o romance As Mortas de Jorge Ibargüengoitia, muito boa gente ficou impressionada com aquela centena e meia de páginas: descobria-se um autor pertencente a uma literatura (a mexicana), da qual só se conhecia uma bendita trindade (Rulfo, Fuentes e Paz), e logo com uma pequena obra-prima de crueza e humor, de realismo alucinado. As Mortas, com a sua ironia ao mesmo tempo trágica e gélida, conseguia realmente revelar por que motivo as componentes de mestiçagem cultural, de telurismo miserável, de suburbanismo concentracionário dão aquela configuração de carnalidade e morte, de realidade à beira do abismo, que caracteriza o universo social mexicano.
 
Por tudo isto, era com uma séria expectativa que se encarava a tradução de uma nova obra de Jorge Ibargüengoitia. E talvez também, por tudo isto, é que Os Conspiradores desiludiu tanto.
 
Os Conspiradores é uma tentativa de ficcionar uma das primeiras insurreições independentistas do México, a rebelião do padre Morelos, no início do séc. XIX, uma das manifestações que prenunciava a maturação social existente nesta colónia espanhola para a independência (que decorreu cerca de dez anos depois). Note-se, contudo, que Jorge Ibargüengoitia não pretendeu fazer obra de rigor historiográfico, e, por isso, deu outros nomes aos líderes do movimento e acrescentou situações que só se justificam pela liberdade criadora; mas os principais acontecimentos narrados e o seu contexto cronológico não deixam dúvidas quanto à insurreição descrita em termos romanescos.
 
Esta rebelião, como sucedeu noutras regiões, foi, em grande parte, resultante do descontentamento da população crioula (descendente dos espanhóis nascidos na colónia) por ser, de forma sistemática, preterida nas funções de gestão da sociedade colonial em relação à oriunda de Espanha. Mas se o estatuto da população crioula lhe dava condições para liderar o movimento independentista, o mal-estar era muito mais generalizado, tocando a população mestiça e índia, miseravelmente explorada nas grandes propriedades fundiárias e na produção mineira. Natural, por isso, que os acontecimentos provocados pala rebelião ultrapassassem os seus principais promotores, transformando-se num movimento contra qualquer ordem social e económica, de profunda inspiração religiosa.
 
Ao descrever toda esta situação, Os Conspiradores pretende também realçar certas contradições que estão na base de alguns dos acontecimentos mais dramáticos da história contemporânea do México: os brutais desníveis económicos que propiciam cíclicas explosões de fúria popular e repressões sanguinolentas; o carácter espontâneo e massivo do sentimento de rebelião, sempre asfixiado por uma radical escassez de meios para se impor, que irrompe de uma crónica resignação à miséria e às distinções sociais; a dinâmica insurrecional da religiosidade popular e o estatuto apaziguador e conservador da Igreja, etc. Por outro lado, como é notório na caracterização dos protagonistas desta rebelião, visa-se também demonstrar que são essas contradicções o que, no essencial, referencia o comportamento dos agentes individuais: entre o legalismo, a corrupção e o populismo, entre a megalomania militar e a impreparação política, os líderes dos movimentos revolucionários nunca conseguiram de facto, naquele país, dar um sentido abrangente à vontade popular, soçobrando sempre perante situações indomáveis e destruidoras.
 
Mas o carácter trágico deste tipo de acontecimentos assume sempre, neste romance, uma dimensão banal e vulgar. E isto deve-se, na nossa opinião, a dois factores. Em primeiro lugar, se, em termos históricos, pode parecer correcta a opção de dar uma configuração de “memórias” de um protagonista secundário ao material narrativo (tendo em conta a importância do memorialismo no séc. XIX), esta revela-se desadequada em termos literários, porque introduz um elemento de distanciamento emocional que esbate a dimensão “viva” dos acontecimentos narrados, e, ao mesmo tempo, desactiva a introdução do humor - instrumento estilístico fundamental em Jorge Ibargüengoitia -, na medida em que este aparece identificado com a posição parcelar do protagonista-narrador. Em segundo lugar, o estilo seco, pretensamente objectivo, e o linearismo narrativo (só entrecruzado de recorrências do narrador) retiram qualquer textura épica às situações descritas e transformam os seus protagonistas em títeres medíocres.
 
Por fim, gostaria de expressar aqui a convicção, dada a importância cultural de uma editora como a Caminho, de que se deve decerto a um mero lapso a inexistência na obra de qualquer referência ao tradutor.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Os Conspiradores
Autor: Jorge Ibargüengoitia
Editor: Editorial Caminho
Ano: 1990
195 págs., esg.
 
 
 



quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

ERIK ORSENNA

 
 
 
TAREFA INGLÓRIA
 
Um dos critérios mais sintomáticos, que o meio editorial português tem utilizado, para a escolha, com vista a eventual tradução e edição, de títulos e autores franceses, é o dos prémios literários. É um critério frágil e revelador das dificuldades que, na actualidade, os nossos editores têm em se orientar na selva da produção literária e do movimento editorial gaulês. Tanto mais que é sabido que a concessão de um prémio a uma obra, nos casos, pelo menos, mais importantes, como é o Goncourt, é em grande parte consequência de um complexo jogo de influências que as casas editoras exercem sobre os membros do júri (na generalidade, autores dessas mesmas casas editoras).
 
Erik Orsenna ganhou o prémio Goncourt em 1988, com o romance A Exposição Colonial (já editado no nosso país), e, por isso mesmo, foi bastante referenciado durante esse ano no meio literário francês. Naturalmente, integrou também a comitiva de escritores que se deslocou a Portugal no ano seguinte, no âmbito do programa das “Letras Francesas”; no entanto, como sucede sempre nestes intercâmbios, o que se pretende nestas circunstâncias não é tanto chamar a atenção para este ou aquele autor (a composição destas “embaixadas” é, de um modo quase inevitável, resultante de condicionalismos vários), mas permitir uma imagem diversificada da produção literária de um determinado país e propiciar contactos entre criadores e públicos. E, de facto, Erik Orsenna, com Goncourt e tudo, era um dos autores menos significativos da comitiva, não só porque é muito pouco prolífico (em catorze anos, publicou quatro títulos), mas, sobretudo, porque nunca ultrapassou um valor literário mediano.
 
Traduzir e editar um romance como A Vida Como Em Lausanne pareceu-nos, assim, um trabalho com muitas possibilidades de se tornar inglório. O projecto narrativo deste romance é, por si só, já estreito e perigoso: retratar a mediocridade existencial de certa camada dirigente da actual República Francesa, utilizando por eixo o percurso de um político centrista que descobre, como paradigma de vida, os valores cinzentos de uma cidade como Lausanne.
 
Tudo isto é, obviamente, estereótipo; mas, ainda assim, poderia dar origem a uma panorâmica balzaquiana da presente sociedade francesa. Em particular, se tivermos em conta que o referido percurso se inicia, antes da I Guerra Mundial, com os ambiciosos desígnios poéticos que a mãe, ainda na concepção, projecta para o futuro político, e se desenrola, entre amores abúlicos e carreiras fracassadas, ao longo de todos os grandes acontecimentos por que passou a França contemporânea.
 
Para que tal sucedesse, seria necessário, porém, que o autor não perspectivasse, utilizando um humor muitas vezes de gosto duvidoso, as situações e as personagens de forma redutora e caricatural. Esse olhar desfigurante, que o autor lança sobre todas as personagens (mesmo sobre aquelas que pretende tratar de forma benévola, como são os casos da mãe da personagem principal ou da única paixão por esta nomeada), faz com que a mediocridade alastre como uma pasta gelatinosa sobre os movimentos sociais e políticos que deram corpo à França deste século, transformando-os num cortejo carnavalesco de factos e figuras. Por outro lado, não se vislumbra no romance outro fio condutor que não seja uma permanente deriva entre esses factos históricos, integrados, por vezes de forma forçada, na história individual da personagem principal.
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A utilização constante da elipse e uma minuciosa fundamentação histórica, bem reveladora da dimensão profissional com que Erik Orsenna entende o trabalho literário, são os principais méritos de A Vida Como Em Lausanne. Mas uma tradução literal em excesso e uma pontuação descuidada fazem com que o texto em português se torne muito confuso e, por vezes, absurdo. Além disso, a inexistência de um correcto trabalho de edição que esclarecesse, através de notas de rodapé, as infinitas alusões e referências ao mundo cultural, social e político francês, faz com que este romance se torne ilegível ou, pelo menos, bastante insignificante para o nosso leitor comum.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: A Vida Como Em Lausanne
Autor: Erik Orsenna
Tradutor: Franco de Sousa
Editor: Editorial Estampa
Ano: 1990
268 págs., € 3,00