sexta-feira, 29 de junho de 2018

WILLIAM S. BURROUGHS e JACK KEROUAC

 
 
 
 
 
A ETERNA ADOLESCÊNCIA A CAMINHO DO NEGRO FIM DO MUNDO
 
Quando se silenciou o troar apocalíptico das bombas e dos canhões da II Guerra Mundial, os Estados Unidos, que tinham passado quase incólumes no conflito (sem invasões nem destruições no seu território e com menos de meio milhão de vítimas militares – isto é, apenas 1% das vítimas globais da Guerra), encontravam-se, no início da década de cinquenta, num aparentemente imparável ciclo de crescimento económico. A irradiação do bem-estar e do consumo em vastos segmentos da população, que até aí tinham vivido na penúria da Depressão e da Guerra, mergulhava o “bom americano” num imenso optimismo, fruto da crença num linearismo desenvolvimentista que iria trazer, segundo parecia, a “paz universal” e a “felicidade eterna” na terra. Foi neste ambiente social e económico, que dava a impressão de condenar toda a gente a um modelo de vida e a uma forma de estar padronizada, que apareceu na costa Oeste, a contragosto, toda uma geração de intelectuais, a “beat generation”, que procurava um “outro” território existencial, dando origem a uma imprevisível tormenta na desmesurada nau americana.
 
Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Gary Snider, Neal Cassady, etc., têm, de facto, em comum, uma necessidade de fuga (Gilles Deleuze, em 1977, considerava-a como a característica determinante de toda a literatura anglo-americana deste século; mas não há dúvida que, onde ela se torna ostensivamente evidente, é na produção literária da “beat generation”): a filosofia oriental, o uso regular de estimulantes e alucinogénios, a afirmação da sexualidade, o pacifismo e o anti-nuclearismo, o renascimento de certa americanidade (a de Whitman, Pound e Henry Miller, por exemplo) resumem-se a uma procura frenética de práticas quotidianas alternativas, à exploração de campos “off que, obviamente, ultrapassam em muito o domínio da produção artística e literária. O peso social destas práticas, e das propostas ideológicas decorrentes, foi tremendo, e quem queira perseguir a genealogia dos fenómenos sociais mais expressivos dos anos sessenta e setenta terá que, de forma inevitável, passar pela acção cultural da “beat generation”.
 
Todo este processo se encontra hoje, contudo, bem distante: a editora e livraria de Lawrence Ferlinghetti, que publicou todos estes autores, a City Light Books, tornou-se um templo institucional em San Francisco, a Universidade de Berkeley o panteão da sua glorificação, os autores “beat” mitos vivos e... mortos. E, como é natural, a avaliação rigorosa da sua produção literária e artística começou a efectuar-se, mais ou menos liberta da fascinante circunstancialidade que a envolveu.
 
William S. Burroughs e Jack Kerouac são, reconhecidamente, os maiores prosadores desta geração. E, curiosamente, qualquer deles pretendeu esquivar-se a uma imagem de estritos romancistas.
 
O primeiro, depois de passar por uma dolorosa experiência de toxicómano, dependente de opiáceos, por longas estadias na América do Sul e na África do Norte (a sua permanência em Tânger, em consequência do seu comportamento anómalo, tornou-se lendária), foi alvo, em Boston, por alturas da edição americana da sua segunda obra, Naked Lunch, de um julgamento muito polémico, acusado de obscenidade e atentado aos costumes: o livro (já traduzido para português com o título A Refeição Nua) é resultante de um conjunto de anotações feitas no período da dependência e, posteriormente, no de tratamento por apomorfina.
 
No seguimento desta experiência narrativa, Burroughs vai dedicar-se, durante quase uma década (1959-1967),a um trabalho experimental sobre a linguagem (aplicando, de um modo sistemático, o “cut-up”, método inventado por um seu amigo, o pintor Bryon Gysin, e oriundo de experiências pontuais de Tzara e de algumas concepções teóricas de Cage e MacLuhan), pretendendo estabelecer um elo de comunicação pré-racional com o leitor, e convencido de que a literatura tinha de se converter num instrumento de guerrilha contra a semântica e contra racionalidade que lhe está subjacente, entendidas como os principais suportes do sistema tecnológico, entendido pelo autor como opressivo, em que se vive.
 
Cidades da Noite Vermelha, o último livro de WiIIiam S.Burroughs, como os dois anteriores, é resultante de uma nova “viragem” literária do autor, consciente do “fiasco”, em termos de comunicabilidade, que foi a aplicação radical do “cut-up”. Interligando dois enredos, um, de flibusteiros, passado no séc. XVIII, outro, oriundo do romance negro americano (para lá de outros excertos dramáticos), o romance pretende explicitar a existência, em diferentes épocas, de uma surda guerra que forças obscuras movem com vista a transformar virologicamente a humanidade: conclui-se com um enredo de antecipação, onde, em gigantescas e espectrantes metrópoles, se estabelece uma imagem apocalíptica do nosso futuro, feita de violência e quotidiana criminalidade, de mutação e “perversão” sexual, de circulação permanente de opiáceos.
 
Mas a presença, em catadupa, de imagens brutais de violência, de aviltamento do outro, de degradação, muitas vezes associadas à homossexualidade masculina, só fazem sobressair, à revelia do alarme pessimista sobre o futuro da humanidade, que Cidades da Noite Vermelha pretende ser um “olhar puritano” sobre a actual sociedade, que desvirtua e torna inevitavelmente estéril esse mesmo alarme.
 
Por outro lado, o uso “disfarçado” do “cut-up” e o recurso a métodos narrativos retirados dos “comics” e da ficção “marginal” de aventuras desequilibram a estrutura romanesca desta obra e transformam-na num mero (mas brilhante) depositário de técnicas narrativas.
 
A este nível, o apontamento mais interessante relaciona-se com o “renascimento” de personagens e situações pertencentes aos anteriores enredos na terceira parte de Cidades da Noite Vermelha: ao integrá-las na trama final, William S. Burroughs consegue não só desfazer qualquer “ilusão naturalista”, que tivessem criado os anteriores enredos, por serem construídos por processos narrativos clássicos, como recria, em compensação, a ilusão de que o texto é um mecanismo que se autorreproduz, deixando um lastro semântico.
 
Esta obra torna bem evidente que a produção literária de William S. Burroughs se encontra, pelo menos numa fase provisória, numa situação sem saída criativa. Mas essa não será a situação de todo um conjunto de romancistas que, nas décadas de sessenta e setenta, se preocuparam em especial com uma reflexão sobre a linguagem e as técnicas narrativas, subvalorizando os registos especificamente dramáticos?
 
Quanto a Jack Kerouac, essa necessidade de fuga, de libertação de um quotidiano programado, determinou que a sua obra rejeitasse a especificidade do “literário” (entendido nos limites poéticos e estilísticos modelados pelas obras de Henry James e de Hemingway, autores, por ele, menosprezados): a escrita tinha que se tornar o instrumento imediato e testemunhante de um existir “poético”, isto é, emocionalmente intenso, e o romance uma torrente de palavras que pretendia apanhar o pulsar da vida, transformando-se no monumento épico do momento (os antecedentes desta escrita estão, como é bem explícito, em Céline e em Henry Miller, por exemplo).
 
The Dharma Bums (traduzido para português com o título infeliz de Os Vagabundos da Verdade), o seu terceiro livro, é, como a maioria da restante obra deste autor, a fixação romanesca de material autobiográfico: neste caso, as suas convivências com o budismo zen.
 
Mas, para lá da especificidade do enredo, o que é hoje realçante neste livro, como no já clássico On the Road, é ainda conseguir fascinar-nos, mesmo sofrendo de evidentes ingenuidades narrativas, por personagens que estabeleciam novos modos de viver, por imortais adolescentes sempre disponíveis à descoberta e à invenção de um outro sentir. E, inegavelmente, estes romances de Kerouac, ao dimensionarem de um modo poético todo um conjunto de sinais da civilização urbana, transformaram os Estados Unidos no paraíso daqueles que ainda acreditam ser possível o nomadismo como forma de estar.
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
Título: Cidades da Noite Vermelha
Autor: William S. Burroughs
Tradutor: Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Editor: Difel
Ano: 1984
320 págs., esg.
 
 
Título: Os Vagabundos da Verdade
Autor: Jack Kerouac
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Minerva
Ano: 1984
303 págs. , esg.
 


 

 
 
 
 
 
 

 


segunda-feira, 25 de junho de 2018

PETER TAYLOR

 
 
 
 

O RINGUE FAMILIAR
  
Certo dia, um director editorial, vivendo em Manhattan, recebe dois telefonemas das irmãs, informando-o de que o seu octogenário pai, em Memphis, anunciou a sua intenção de se casar de novo. Estes telefonemas, exigindo que ele tomasse posição sobre o assunto, vão impeli-lo a fazer um balanço sobre a forma como decorreram as suas relações familiares, em particular como lhe perturbaram a vida, mesmo quando, mais tarde, se convenceu que se tinha, na prática, libertado delas.
 
É este o ponto de partida (e de chegada) de Convocação Para Memphis, o segundo romance de Peter Taylor, um escritor sulista que adquiriu, nas três últimas décadas, algum prestígio nos Estados Unidos, em especial no domínio das “short-stories”.
 
Com um esquema narrativo já clássico — todo o romance se desenrola em redor de um acontecimento perturbante que provoca no narrador a necessidade de reformular posições e comportamentos —, Peter Taylor vai efectuar uma pormenorizada reflexão sobre a instituição familiar, numa linha de preocupações que tem pontuado alguns dos actuais ficcionistas norte-americanos (e cujo exemplo mais interessante continua a ser, na nossa opinião, o de John Irving).
 
Assim, Convocação Para Memphis alonga-se numa fatigante análise caracterial dos membros da família do narrador, centrando-se particularmente no comportamento do pai, cujas opções vão condicionar em definitivo a existência dos restantes elementos familiares. Uma falência fraudulenta e a rotura com um amigo levam o pai a deslocar a sua família, nos anos quarenta, de Nashville para Memphis, e esta transferência para um novo ambiente sociocultural vai provocar não só a desagregação psicológica da mãe, mas uma série de consequências nefastas para os filhos: a impossibilidade de casamento para as duas filhas, o envio, como voluntário, de um dos rapazes para a guerra, onde vem a morrer, e a fuga do outro para Nova lorque.
 
Mas, o que está aqui em causa, é se o arbítrio do pai, resultante da autoridade que lhe é conferida em termos sociais, e agindo sem ter em consideração as apetências específicas de cada membro da família, é apenas um sinal de um brutal egoísmo ou a natural manifestação da tensão conflituosa sobre a qual a família se institui. Se assim for, é aceitável que os filhos, quando recebem, por sua vez, em consequência da idade avançada dos pais, a autoridade familiar, tenham legitimidade para colocar na primeira linha os seus próprios interesses, condicionando e “punindo” a velhice paterna: no caso presente em Convocação para Memphis, levando os filhos a despistar um eventual casamento na velhice do pai, que lhes poderia cercear a integral herança do património paterno.
 
A perspectiva de Peter Taylor, neste seu romance, sobre a instituição familiar é de a encarar, por conseguinte, não tanto como lugar privilegiado da gestão dos afectos, mas como o espaço privado de um irremediável “ajuste de contas” geracional e de uma permanente antropofagia.
 
Contudo, tudo isto já foi, e com outros meios, exaustivamente exposto pela psicanálise. Uma grande imprecisão na estrutura romanesca, uma monotonia estilística acentuada e uma reflexão repetitiva e “enrolada” não contribuem, decerto, para que um posicionamento conceptual já conhecido tenha uma outra Iuminosidade.
 
A ambição, às vezes, é nefasta: o material-base, que Peter Taylor utilizou, bastava, rigorosa e unicamente, para uma curta novela interessante; ao tentar dar-lhe um tratamento extenso, o autor transformou Convocação Para Memphis num evitável romance falhado.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
Título: Convocação Para Memphis
Autor: Peter Taylor
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Difel
Ano: 1988
195 págs., esg.
 
 


sábado, 23 de junho de 2018

JOYCE CAROL OATES

 
 
 

SER FIEL

  

A literatura romanesca norte-americana, em conexão com uma realidade social e cultural tão elasticamente diversificada e contrastante, é, como se costuma dizer, mais a literatura de um “continente” do que de uma nacionalidade. Parece-nos, por isso, e para lá de todos os “pânicos de imperialismo”, que não poderia ser senão relevante o papel que esta teve, em vários momentos, na produção literária deste século.

 
Ora, devido a um conjunto de romancistas que se evidenciaram durante as décadas de sessenta e setenta, esta literatura, com a de expressão alemã, está de novo a afirmar-se com uma das mais interessantes produções da actualidade. Isto já foi várias vezes escrito na imprensa portuguesa, e espera-se apenas que, face a esta unanimidade e a uma crescente curiosidade dos leitores, o movimento editorial português consiga corresponder: para quando a tradução de obras de, por exemplo, e excluindo os poucos autores de quem já foram traduzidas algumas obras, John Hawkes, James Purdy, John Barth, Joseph Heller, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, Richard Brautigan, Ishmael Reed ou John Gardner?

 
Joyce Carol Ostes é um dos recentes escritores norte-americanos que o leitor português tem o privilégio de conhecer (a Livraria Civilização Editora, já há alguns anos, editou um dos romances mais importantes da autora, Eles). Esta escritora é um caso excepcional de produção prolífera (ao ponto de alguns críticos a considerarem, por esta razão, como uma espécie de Dickens moderno), visto que em pouco mais de vinte anos, publicou cerca de quatorze romances, mais de uma dúzia de recolhas de novelas e “short-stories”, várias obras de teatro, de poesia, de anáilise literária.

 
Semelhante carácter prolífero da obra de Joyce Carol Oates responde a uma exigência de “registo em extensão”, como se o conhecimento da(s) realidade(s) e a capacidade de eventual intervenção da escrita sobre esta(s) estivesse apenas na sua representação. Os romances (como Them, Bellefleur ou A Bloodsmoor Romance) e as novelas desta escritora debruçam-se assim sobre universos tão distintos como os dramas familiares e afectivos nos meios universitários e intelectuais ou as inadaptações e conflitos da população operária vivendo nas áreas periurbanas de Detroit. É, nesse sentido, que a crítica americana considera que Joyce Carol Oates é um dos escritores que mais contribuiu para o renascimento de um certo realismo, obsessivamente analítico, que já é conhecido como “novo realismo americano”.

 
Esta premência do registo em extensão, além de ser questionável a sua pertinência estética, sobrepõe-se, na obra de Joyce Carol Oates, a outras problemáticas do trabalho ficcional, reflectindo-se em particular numa débil inquietação estilística, que explica, em parte, o carácter desigual da sua produção. Mas, por outro lado, existe nesta autora uma nítida consciência da especificidade deste tipo de trabalho: daí que seja realçante a busca de novas soluções de construção narrativa, principalmente nas suas novelas e “short-stories”, formas que são mais maleáveis à experimentação.
 

Casamentos e Infidelidades, a colectânea de novelas agora publicada, é, mesmo para quem já conhece algumas obras de Joyce Carol Oates, uma interessante revelação.

 
Entenda-se, antes do mais, o título. Esta colectânea, como naturalmente se poderia deduzir, não se debruça sobre a temática das relações conjugais. O termo “casamento” expressa a “fidelidade” comportamental em relação ao que é sentido, e, portanto, sobressai, como nuclear problemática existencial nestas histórias, a das correspondências afectivas, isto é, a das dificuldades sociais e éticas em adequar o percurso pessoal com as exigências da comunicabilidade.

 
É, por isso, muito mais lata a sua área temática. E, se continua a observar-se as mesmas características já referidas em algumas das “short-stories” coligidas, há, no entanto, na generalidade, um brilhantismo de escrita e um cuidado estilístico a que Joyce Carol Oates não nos tinha acostumado. Por outro lado, em algumas histórias experimentam-se originais construções narrativas que se integram funcionalmente na situação dramática (é o caso, por exemplo, de “A Volta do Parafuso”, de “A Espiral” e de “29 Invenções”).

 
Mas onde esta obra acolhe o nosso maior entusiasmo é na novela “Os Mortos”, pela trágica beleza com que consegue transmitir a intensidade do vivido, ou então em histórias que, libertando-se das condicionantes de um excessivo circunstancialismo, se esquivam aos paradigmas da representação realista, perturbando, assim, as referências adquiridas pelo leitor (é o caso de “Música Nocturna”), ou que chegam a aflorar o equilíbrio dos arquétipos e se tornam, por isso, inesquecíveis: leia-se os exemplos de “Casamento Sagrado” ou do extraordinário “Razão de Viver” (dois indivíduos que se perseguem até à morte, reflectindo sobre a sua condição, nunca se sabendo quem é o perseguido ou o perseguidor, nem porquê, nem qual dos dois morre) que nos lembra o despojamento das situações beckettianas.

 

Publicado no Expresso em 1984.

(Foto da Autora de Geraint Lewis)

 

 
Título: Casamentos e Infidelidades
Autor: Joyce Carol Oates
Tradutor: Maria Filomena Duarte
Editor: Livraria Bertrand
Ano: 1984
440 págs., esg.
 
 

 




segunda-feira, 18 de junho de 2018

D. H. LAWRENCE 2

 
 
O TERCEIRO OLHAR
 
Sempre me intrigou as objecções de inúmeros detractores da obra de D. H. Lawrence, acusando-o de “inapto na construção das estruturas narrativas”, de possuir um “estilo repetitivo”, do carácter “propagandístico da maior parte da sua produção literária”, e, ao nível ideológico, de “pendor fascizante”, de “maniqueísmo sexual” e de “vitalismo reducionista”. E até mesmo alguns analistas e empenhados defensores da sua obra, como é o caso do conceituado especialista que assina o desajeitado prefácio desta edição de St. Mawr e Outros Contos, batem repetidamente na mesma tecla.
 
Não só a maior parte dessas objecções são injustas ou incorrectas, como, em especial, são motivadas por uma básica incompreensão da efectiva dimensão do facto literário e, por conseguinte, do carácter de “poeira residual” dessas “imperfeições” face à radical deslocação no estatuto da sensibilidade que a obra de D. H. Lawrence produziu. E para esta mutação — objectivo que só as obras literárias geniais alcançam - contribuiu uma admirável e inconfundível retórica da paixão, aquela mesma que faz com que este autor, vindo do silêncio que a distância do seu tempo provoca, continue a ser uma das figuras mais comoventemente fascinantes da literatura mundial.
 
Como referem os apêndices que integram a edição de St.Mawr e Outros Contos, D. H. Lawrence escreveu estas histórias em 1924 e 1925, quando, numa segunda estadia no Novo México, procurou, mais uma vez, viver aquela sintonia existencial com a Natureza que apelava, de forma incansável, em todas as suas obras. Mas também é o período em que se começa a sentir, nos seus textos, alguma amargura e cansaço pelos permanentes confrontos com a hipocrisia e mesquinhez dos seus conterrâneos.
 
Estes textos não são, de facto, muito significativos dentro da produção literária de D. H. Lawrence (exceptuando o magnífico conto “A Princesa” que, há alguns anos, foi traduzido, e de forma memorável, por Aníbal Fernandes). Têm, no entanto, o interesse de revelarem algumas subtis transformações que a temática deste autor foi sofrendo ao longo da sua obra.
 
Assim, é bem mais explícita a caracterização da Natureza como uma dinâmica assente na morte. Sobre este aspecto, repare-se na reflexão que, na novela “St.Mawr”, se efectua sobre a relação Cristo/Judas como entidades integrantes de uma “dinâmica natural”: é o comportamento de Cristo que determina o beijo de Judas, sendo este quem dá toda a significação à existência do primeiro, não havendo, por isso, neste jogo, a possibilidade de definir bons e maus. Assim, por definição, a Natureza está “aquém” de qualquer proposição ética.
 
Por conseguinte, uma existência que pretenda estabelecer-se em consonância com a Natureza terá que assumir a morte. É a sua não assumpção, como sinal de um poder desvitalizado que ambiciona impor uma ordem à Natureza, que provoca o aparecimento do mal: é este o motivo por que, em “St. Mawr”, se condena o bolchevismo e o fascismo, acusando-os de procurarem satisfazer o desejo de escravos, de “mortos que gostam de viver no meio da podridão dos cadáveres”.
 
A coisificação do Mal, que estes textos parecem revelar a uma primeira leitura, é ilusória e resultante, pelo contrário, de uma ampla análise de comportamentos. De obra para obra, D. H. Lawrence tinha, de facto, alargado a compreensão da diversidade desse tipo de comportamentos dominantes (tão dominantes que, segundo o autor, são eles que determinam a vocação mais manifesta do institucional e do civilizacional) que, em comum, têm apenas o seu “enquistamento” na frustração e pretenderem, antes do mais, o desvirtuamento do “amor como força natural”. Como se observa em “A Harmonia”, a morte de Pan (a divindade que irradiava aquela imagem do amor) não é tanto consequência do aparecimento de Cristo (a divindade que referencia o amor como ética e discursividade), mas da incapacidade em conseguir a coexistência das duas divindades no horizonte humano.
 
Na sua fragilidade, estes textos realçam ainda mais como o conflito Pan/Cristo representa a angustiante contradição com que D. H. Lawrence sempre viveu: se o homem, como “coluna de carne”, não pode ocultar em si a força da Natureza, ele tem, por outro lado, necessidade de “ver”, de definir discursivamente a Natureza, de forma a não se confinar ao estatuto de “coisa”; mas, ao fazê-lo, o homem tende, de mediato, a construir um Paraíso sobre a Terra, a hierarquizar a Natureza segundo o seu olhar. Entre as duas necessidades, a obra de D. H. Lawrence visou sempre um “terceiro olhar” que as fundisse, e foi nessa ambição que ela soçobrou e se agigantou. Face a esta, as “poeiras residuais”, que se assinala na sua obra, não passam de inevitáveis resquícios de um projecto que ultrapassa a literatura e a vida.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: St. Mawr e Outros Contos
Autor: D. H. Lawrence
Tradução: Clarisse Tavares
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
295 págs., esg.
 
 



GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

 


RASTOS DE UM COMETA

 
É consensual afirmar que o contributo fundamental da obra de Gabriel García Márquez (e, de uma forma ou outra, da de grande número de escritores latino-americanos do pós-indigenismo) para a literatura contemporânea foi o de complexificar as fronteiras, até aí muito definidas, entre real e imaginário. Chega-se mesmo a considerar que a sua obra estabelece um novo realismo em que aquelas fronteiras estariam abolidas, uma vez que se revelariam desajustadas para a compreensão de uma realidade (a sul-americana) onde as presenças da religiosidade, da superstição, da fantasmagoria, do devaneio lírico ou pueril, etc., são tão “concretas” como a escassez de meios de subsistência para a maioria da população.

 
Grande parte dos contos que compõem A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada, na sua estrutura muito simples e linear, justificam, de facto, esta caracterização: a acção desencadeia-se com a presença de um elemento do imaginário, assumido como real, que vem transformar ou prenunciar (e este efeito de “prenúncio” é o único resíduo de fantástico que permanece neste elemento) mutações na vida dos heróis ou da comunidade.

 
Esta estrutura, mais tipificada em “Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes” e em “O Mar do Tempo Perdido”, sofre, no entanto, variantes de conto para conto. Assim, “A Última Viagem do Navio Fantasma” narra a marginalização que provoca a assunção individual de um elemento do imaginário como real e o “perigo” que, ironicamente, pode existir na sua desesperada afirmação no seio da comunidade; “O Afogado Mais Bonito do Mundo” reflecte como um elemento real pode cristalizar um imaginário colectivo, em particular se é motivado pela frustração (neste caso, sexual e afectiva) ou pela carência; “Norte Constante Para Alem do Amor” evidencia como o desejo simula no real um elemento do imaginário, tornando-se, por conseguinte, na sua essência, inconcretizável e mortífero.

 
Um outro aspecto característico da obra de Gabriel García Márquez bem exemplificado nesta colectânea, principalmente em “Norte Constante Para Além do Amor’, “Blacaman o Bom, Vendedor de Milagres” e na novela curta que lhe dá titulo, é a dimensão simbólica das suas personagens. Este simbolismo, enraizado na cultura popular ou nas reminiscências com que esta reformula a sua história, alude de um modo constante à situação neo-colonial hoje existente nas Caraíbas ou em todo o continente sul-americano. No entanto, nunca se pode encarar como único nível de leitura esta conotação política, uma vez que o autor procura dar às personagens uma significação que, em complementaridade, ascenda às categorias universais.

 
A inserção do imaginário no real e a significação polissémica das personagens são servidas nestes contos, como é comum na obra de Gabriel García Márquez, por um descritivismo barroco, sensual, de coloração surrealizante, que dá uma ambiência exótica a estas histórias e, ao mesmo tempo, facilita que sejam encaradas num registo em que tudo parece natural.

 
Convém salientar, no entanto, que estes contos, na sua maioria de produção coeva à epopeia de Macondo, dão a ideia de serem “rastos” (e restos) da passagem de um imenso cometa. Nesse sentido, esta colectânea representa o fim de um ciclo e, paralelamente, patamar estilístico e temático de outro que prepara o romance O Outono do Patriarca.

 
Por outro lado, descontextualizados, estes contos prenunciam, apesar das intenções continuamente expressas pelo autor, uma dilaceração da noção de realismo, abrindo caminho a uma ficção que, liberta de uma exigência constrangente a uma referência exterior determinada, cada vez mais alcança o valor paradigmático do mito.

 

Publicado no Público em 1990.

 

Titulo: A Incrível e Triste História da Cândida Erendira e da Sua Avó Desalmada
Autor: Gabriel García Márquez
Tradutor: Pedro Tamen
Editor: Quetzal Editores
Ano: 1990
135 págs. , esg.
 
 

YUKIO MISHIMA 2

 
 
 

UMA CEGA VERTIGEM
 
É indiscutível que, para o leitor ocidental, e mesmo para aquele tem maior formação cultural e literária, é difícil inteligir, em todas as suas significações e referências, a literatura japonesa, dada a especificidade e a idiossincrasia da cultura que lhe está subjacente.
 
Por isso, um dos inegáveis méritos de autores como Yukio Mishima, Junichirô Tanizaki ou Shusaku Endo é, pelo seu conhecimento da cultura ocidental, permitirem-nos estabelecer pontos de confluência entre culturas, e daí facilitar-nos a compreensão do pensamento oriental: talvez que grande parte da popularidade destes autores no Ocidente advenha disto mesmo (saliente-se, contudo, que Tanizaki nunca foi traduzido para português, mas é bem divulgado na Europa e nos Estados Unidos).
 
O Templo da Aurora, o romance agora traduzido de Yukio Mishima, é a terceira parte de uma vasta tetralogia, O Mar da Fertilidade, a que o autor se dedicou nos últimos anos da sua vida, antes de se suicidar, em 1970, procedendo a um espectacular e politicamente significativo “seppuku” ritual. Esta obra, construída num rigor dramático clássico, desenvolve-se em redor das diversas transmigrações e reencarnações de um jovem por quem a personagem principal, Honda, vai cumprindo um destino de fidelidade(s) amorosa(s). Aproveitando essas reencarnações, que dão unidade estrutural à obra, o autor vai procedendo a uma longa reflexão sobre a filosofia budista, confrontando-se com as suas inúmeras ramificações éticas e metafísicas.
 
Mas o que se realça em O Templo da Aurora é as excepcionais capacidades estilísticas e a originalidade de um projecto estético que deram a Yukio Mishima um lugar único nas letras contemporâneas. A paixão de Honda pela reencarnação de Quioáqui, a princesa tailandesa Ing Chan, e uma deslocação à cidade santa de Benares, na margem do rio Ganges, permitem-nos desvendar a fantasmagoria erótica e metafísica que atravessa toda a obra deste autor.
 
De acordo com uma tradição oriental, e com particular incidência no pensamento budista, Mishima identifica o sublime estético com a Natureza. Daí que haja, em toda a sua produção literária, um esforço árduo de referenciação, de mimésis, que determina, por um lado, uma escrita que estilisticamente ambiciona atingir o “corpóreo”, o físico, e, por outro, a perspectivação da actividade artística como um inevitável “crepúsculo”, o possível fogacho róseo antes da noite absoluta, dada a impossibilidade daquela em “ser” a própria realidade.
 
Essa “ferida estilística”, bem visível em O Templo da Aurora, explica, pelo menos em parte, certas obsessões de Mishima, como, por exemplo, considerar o suicídio como o projecto estético mais redentor, aquele que, após um percurso de renúncias e confrontos preparatórios, culmina toda uma vida. E é essa necessidade de dissolução da consciência através de uma absoluta identificação com a Natureza, que leva a Mishima a procurar no erotismo um “êxtase” prenunciatório da morte.
 
O erotismo, para Mishima, só existe com a culpabilização, pois que é a corrupção que transcende o amor, da mesma forma que é a doença e a morte que dá sentido eterno à Natureza. Honda, a personagem principal de O Templo da Aurora, percebe friamente quais os limites e a grandeza da paixão “voyeurista” que sente pela princesa Ing Chan: o “voyeurismo” permite transportá-lo até ao objecto amado, sem, contudo, abandonar a consciência da percepção; é a “perversão” do “ver proibido” que lhe fundamenta o amor, mas também é esse “ver proibido” que lhe interdiz o êxtase que consagraria esse mesmo amor.
 
O Templo da Aurora, como a restante obra de Mishima, na sua intrigante proximidade com a de Bataille, é dominado pelo mesmo impulso lírico e passional que arrastou o seu autor num turbilhão destruidor. E o maior elogio que se pode fazer à sua obra é afirmar que o leitor de facto pressente, perante ela, um sedutor perigo e que o projecto estético que lhe está subjacente é ainda um “crepúsculo” suficientemente intenso para nos poder cegar.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
 
Título: O Templo da Aurora
Autor: Yukio Mishima
Tradução: Luisa Mira e Castro
Editor: Presença
Ano: 1987261 págs., € 9,82
 

 
 
 
 



terça-feira, 5 de junho de 2018

KNUT HAMSUN

 
 
 

A LITERATURA COMO VERDADE E EQUÍVOCO
  
Num jornal norueguês, em Maio de 1945, apareceu o seguinte texto necrológico: “Não sou digno de falar de Adolf Hitler, e a sua vida e sua obra de modo algum convidam a qualquer comoção sentimental. Foi um guerreiro, um pregador do evangelho dos direitos de todas as nações. Foi uma figura de reformista de primeiríssima ordem e o seu destino histórico deveu-se a que actuava numa época da mais vil brutalidade, a qual, por fim, o derrubou. Assim deve encarar Adolf Hitler qualquer europeu ocidental, e nós, seus adeptos mais próximos, inclinamos a nossa cabeça na hora da sua morte”. Quem subscrevia esta prosa não era nenhum segundo comandante da barca do nacional-socialismo (esses, pelo contrário, procuravam escapulir-se por entre a poeira levantada can o desmoronamento da Alemanha), mas a figura mais prestigiada, com Henrik Ibsen, das letras norueguesas, a mesma que, cinco anos antes, também tinha aclamado a ocupação do seu país pelas tropas nazis: Knut Hamsun.
 
Os mais fervorosos entusiastas da sua obra (e alguns eram irredutíveis anti-nazis, como Thomas Mann, André Gide ou Henry Miller) ficaram perplexos com a opção política de Knut Hamsun. Como era possível que este autor, que tinha escrito um dos mais originais e fascinantes romances dos finais do séc. XIX (A Fome, publicado pela primeira vez há precisamente cem anos), Prémio Nobel da Literatura de 1920, fosse um empolgado adepto do nazismo?
 
Como tudo, talvez este catastrófico equívoco se comece a entender pela infância. Knut Hamsun viveu-a numa paisagem primordial: entre mar, ilhas, gelo e florestas. Filho de camponeses pobres, com seis irmãos, foi enviado, ainda criança, para casa de um tio, vivendo nas árticas ilhas Lofoten. Foi este fanático pietista que o ensinou a ler, pela Bíblia, e a escrever, transcrevendo orações. Daquela paisagem elementar e desta educação, de religiosidade obscura, ficar-lhe-ão para sempre um acentuado panteísmo e o sentimento que, perante a Natureza, o homem está irremediavelmente solitário e despojado. Mais do que um fascínio estético, a Natureza ser-lhe-á sempre urna exigência ética.
 
Mas viver, em meados do século passado, naquela terra inumana, era condenar-se a um inevitável aniquilamento. Logo no início da adolescência, foge para Oslo (na altura, com o belíssimo nome de Christiana) e, de emprego em emprego, enceta uma vida de vagabundo, afundando-se na mais negra miséria. Empurrado pela fome, embarca para a Terra Nova, para a pesca do bacalhau. Pouco depois, encontramo-lo em Chicago, trabalhando como leiteiro, condutor de eléctricos, porteiro de hotel, etc.; sempre em busca de algum dinheiro para comer, aparece, mais tarde, como assalariado rural no Dakota do Norte: mas não consegue arranjar uma situação rninimamente estável e, por isso, regressa à Noruega. Entretanto, no meio das insónias da fome, lê tudo o que consegue apanhar e fica profundamente marcado por certos autores: Strindberg, Dostoievski, Nietzsche, Mark Twain, etc.. Aprende línguas. E consegue voltar para a América como explicador de francês; mais tarde, procura dedicar-se à carreira de conferencista. Começa também a escrever poemas e contos. Mas o insucesso é total. Com trinta anos, no mais tremendo desespero, resolve regressar de novo à Noruega e escrever um romance: aparece assim a “A Fome”, em 1890.
 
Antes de A Fome, Knut Hamsun escrevera, porém, duas conferências bastante importantes para balizar este romance: Da Vida Intelectual na América e Da Vida Inconsciente da Alma. Na primeira, o escritor condena o modelo de civilização que via crescer nos Estados Unidos e que caracterizava como marcado pelo pragmatismo e pelo materialismo (detectando os seus princípios até em autores como Emerson e Whitman); na segunda, recusa o realismo vigente, defendendo a existência de um único real subjectivo, onde se diluem as fronteiras entre a alma e a matéria, e acusando de absurdo, por limitado, o realismo “social” de Ibsen.
 
Percebe-se, assim, por que é que A Fome nunca desliza para um tom reivindicativo ou miserabilista. O que o autor pretende é a descrição minuciosa das humilhações e dos orgulhos desconexos, das euforias e das depressões, das errâncias e dos abatimentos, dos delirantes ou mesquinhos projectos que provocam os nervos de uma alma a morrer de fome. Toda esta deambulação é exposta por uma escrita que procura confluir o real exterior e o íntimo num único olhar, acompanhando com o seu ritmo, entre o coeso e o lírico, as flutuações emocionais e intelectuais do narrador. Por outro lado, Knut Hamsun não visa estruturar de forma coerente um carácter, mas apresentar, aproveitando-se da sua experiência pessoal e com aparente imediatismo, a fragmentação, a dispersão, o intraduzível com que as emoções e os sentimentos se manifestam. Nesse sentido, esta escrita alveja um outro realismo, num esforço bem semelhante ao dos pintores impressionistas. Nada havia de comparável na narrativa coeva.
 
Todavia, o romance não se resume, como apontavam os seus principais detractores, à análise de uma situação patológica. O narrador entende-se como “corpo de um projecto” em que a escrita se afirma como verdade soberana contra qualquer contingência ou contrariedade. É esse projecto de existência pela palavra que o torna indisponível, até ao vómito, até à morte, a qualquer “alimento” que o prenda ao exterior desse mesmo projecto, levando-o a assumir integralmente a fome que passa.
 
As obras narrativas consequentes (Mistérios, Pan, etc.) vão revelar uma faceta complementar de Knut Hamsun: a convicção que a vagabundagem, até mesmo o nomadismo, é a única forma de manter uma certa independência face às imposições que uma civilização, cada vez mais materialista, vai criando através da presença do Outro. As personagens principais apresentam-se como seres contraditórios em permanente fuga, sem nada que os prenda, vivendo obsessivamente dentro das suas próprias fantasmagorias e ansiando por estabelecer una relação solitária e total com a natureza.
 
Pouco a pouco, as traduções sucedem-se e os seus romances aparecem por toda a Europa. Mas a sua infância, a dolorosa experiência da emigração e da fase inicial da sua actividade literária tinham tornado Knut Hamsun marcadamente anti-social, levando-o a ocultar-se nos amplos espaços das florestas nórdicas ou a deambular pelo continente europeu. A obsessiva certeza de que a literatura é a transmissão de uma verdade pessoal numa sociedade desinteressada pelo indivíduo, torna-o insatisfeito, conflituoso. As suas obras começam a insurgir-se contra a vida urbana, e o alastramento da nuvem negra da indústria, acompanhada dos valores sociais que ele tinha visto implantar-se nos Estados Unidos, para as regiões idílicas onde passara a infância, fá-lo tomar posições extremas, condenando os percursos da civilização ocidental e apelando cada vez com mais enfâse, a um retorno à Natureza.
 
Aos cinquenta anos, resolve então fixar-se no campo. A partir desta altura, a sua obra transforma-se num panegírico da vida rural e são estes romances, como Os Frutos da Terra, que vão dar origem à concessão do Prémio Nobel. Convence-se, mais tarde, que o pragmatismo e a carência de ideais das sociedades ocidentais são consequência da implantação dos regimes democráticos e, por isso, vírus espalhados pela Inglaterra. Volta-se então para a Alemanha, pátria do romantismo, do idealismo hegeliano, de Nietzsche e Wagner. Estavam criadas as condições para que Knut Hamsun se convertesse ao ideário do nazismo. E, em 1930, confessa-se publicamente adepto de Adolf Hitler.
 
Entretanto, as suas obras, a partir de 1920, deixaram de ter o mesmo interesse e importância, transformando-se apenas num libelo sarcástico contra o mundo que o rodeava e perdendo o sentido da complexidade do comportamento humano. A defesa da “independência de espírito” contra tudo e contra todos (posição que tanto fascinou Henry Miller e irá fascinar a “Beat Generation”) tinha-o encaminhado para um equívoco sem recuo possível.
 
Depois da libertação da Noruega, Knut Hamsun foi julgado como colaboracionista. No julgamento, foram consideradas como atenuantes o não ter professado posições anti-semitas, a confirmação de que tinha salvo de morte certa inúmeros cidadãos, a sua longa idade (tinha 85 anos) e ter sido dado como débil mental. Não foi, por isso, condenado à morte, mas foi obrigado a pagar uma gigantesca multa que o deixou na miséria. Voltara ao princípio. No mais completo ostracismo, continuou a escrever, exaltando a natureza e o prazer de viver, até morrer com 93 anos.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: A Fome
Autor: Knut Hamsun
Prefácio: Paul Auster
Tradução: Liliete Martins
Revisão: Hélder Guégués
Editor: Cavalo de Ferro
Ano: 2004
254 págs., € 16,29