A GUERRA CIVIL
Quem tiver iniciado o conhecimento da obra do escritor basco Bernardo Atxaga com o seu romance Obabakoak, que ganhou o Prémio Nacional de Literatura de Espanha em 1989 e lançou a sua obra nos circuitos internacionais de edição, ficará provavelmente um pouco desiludido ao ler o romance Um Homem Só, agora editado no nosso país. No entanto, este sentimento “distorce” uma avaliação correcta dos dois romances: não se deve esquecer que Obabakoak é um “caso” muito peculiar e, por conseguinte, quase impossível de correlacionar seja com que obra for, mesmo do próprio autor.
De facto, poucos casos haverá na história literária de uma obra que “se assuma” como fundadora de uma literatura nacional escrita, como sucedia com Obabakoak. Obviamente não era a primeira obra em “euskara”. Mas Bernardo Atxaga, ao iniciar este projecto, pretendia, através de um árduo trabalho sobre a língua materna, conciliar a língua literária com os seus leitores e, dessa forma, refundar uma literatura. Esta circunstância transmitia uma gravidade quase mítica a Obabakoak que transparecia na fluidez musical das palavras e na estrutura da obra: era preciso “recriar” as vozes, as histórias, as personagens e os lugares de uma cultura, transpondo-os para uma geografia imaginária mas, ao mesmo tempo, referenciável. O resultado foi um romance onde o humor, a inteligência afectiva, a variedade tonal estabeleciam uma invulgar e complexa teia de nexos entre os elementos estruturantes, levando ao reconhecimento de que Obabakoak não só, de certo modo, refundava uma literatura, como se revelava uma das obras mais importantes das letras espanholas (?) do pós-guerra.
Um Homem Só, o romance agora publicado e excelentemente traduzido (a obra de Bernardo Atxaga tem sido bafejada pela sorte de ter muito bons tradutores no nosso país), não pretende ter as mesmas ambições. Parece, numa primeira leitura, centrar-se no “clima psicológico” que vivem, nos dias de hoje, os (ex-)guerrilheiros nacionalistas e, por consequência, no estádio actual da luta autonómica do país basco. Com esse fim, narra, utilizando a linearidade convencional do romance clássico, os últimos cinco dias de um ex-guerrilheiro que, após a prisão, resolve adquirir, em conjunto com antigos companheiros de luta, um hotel nos arredores de Barcelona. Ao longo da narração, percebe-se que esse homem, cansado e um pouco descrente das causas que abraçou, se satisfaz a gastar os dias com pequenos prazeres e ódios de estimação, amores fortuitos e amizades mais ou menos cúmplices. No entanto, um pouco por sentimento de culpa por ter abandonado a luta em que acreditara, um pouco para combater o tédio dos seus dias, resolve envolver-se num apoio pontual aos seus antigos companheiros de armas, situação essa que se vai revelar de um risco imprevisível.
É só quando conclui a leitura da obra, e se encontra envolvido num desfecho trágico e emotivo, que o leitor percebe, na placidez narrativa de O Homem Só, uma armadilha. E compreende que Bernardo Atxaga procurou revelar, pelo lado mais difícil, um facto óbvio, mas esquecido de forma intencional: aquilo a que se chama terrorismo é uma forma variante da guerra civil, e, por isso mesmo, os papéis da vítima e do algoz são permanentemente revertíveis, conforme o lugar em que se situa a dor e o sofrimento - no fundo, aquilo que é partilhado por todos. E que, além disso, é impossível escapar a essa situação de guerra civil, porque, antes do mais, ela é a expressão do torvelinho de fantasmas, inquietações e medos que atravessam os dias: todos somos “homens sós”, procurando uma benfazeja paz que, de forma inevitável, só se alcançará na água tépida da morte.
Bernardo Atxaga construiu, com O Homem Só, um romance talvez não tão importante em termos literários como Obabakoak... Mas, sem dúvida, é um testemunho pungente e decisivo para compreender a necessidade de existir um espírito de tolerância e abertura com vista à resolução do problema nacional basco.
Publicado no Público em 1998.
Título: Um Homem Só
Autor: Bernardo Atxaga
Tradução (do castelhano): Maria do Carmo Abreu
Editor: Publicações Dom Quixote
Quem tiver iniciado o conhecimento da obra do escritor basco Bernardo Atxaga com o seu romance Obabakoak, que ganhou o Prémio Nacional de Literatura de Espanha em 1989 e lançou a sua obra nos circuitos internacionais de edição, ficará provavelmente um pouco desiludido ao ler o romance Um Homem Só, agora editado no nosso país. No entanto, este sentimento “distorce” uma avaliação correcta dos dois romances: não se deve esquecer que Obabakoak é um “caso” muito peculiar e, por conseguinte, quase impossível de correlacionar seja com que obra for, mesmo do próprio autor.
De facto, poucos casos haverá na história literária de uma obra que “se assuma” como fundadora de uma literatura nacional escrita, como sucedia com Obabakoak. Obviamente não era a primeira obra em “euskara”. Mas Bernardo Atxaga, ao iniciar este projecto, pretendia, através de um árduo trabalho sobre a língua materna, conciliar a língua literária com os seus leitores e, dessa forma, refundar uma literatura. Esta circunstância transmitia uma gravidade quase mítica a Obabakoak que transparecia na fluidez musical das palavras e na estrutura da obra: era preciso “recriar” as vozes, as histórias, as personagens e os lugares de uma cultura, transpondo-os para uma geografia imaginária mas, ao mesmo tempo, referenciável. O resultado foi um romance onde o humor, a inteligência afectiva, a variedade tonal estabeleciam uma invulgar e complexa teia de nexos entre os elementos estruturantes, levando ao reconhecimento de que Obabakoak não só, de certo modo, refundava uma literatura, como se revelava uma das obras mais importantes das letras espanholas (?) do pós-guerra.
Um Homem Só, o romance agora publicado e excelentemente traduzido (a obra de Bernardo Atxaga tem sido bafejada pela sorte de ter muito bons tradutores no nosso país), não pretende ter as mesmas ambições. Parece, numa primeira leitura, centrar-se no “clima psicológico” que vivem, nos dias de hoje, os (ex-)guerrilheiros nacionalistas e, por consequência, no estádio actual da luta autonómica do país basco. Com esse fim, narra, utilizando a linearidade convencional do romance clássico, os últimos cinco dias de um ex-guerrilheiro que, após a prisão, resolve adquirir, em conjunto com antigos companheiros de luta, um hotel nos arredores de Barcelona. Ao longo da narração, percebe-se que esse homem, cansado e um pouco descrente das causas que abraçou, se satisfaz a gastar os dias com pequenos prazeres e ódios de estimação, amores fortuitos e amizades mais ou menos cúmplices. No entanto, um pouco por sentimento de culpa por ter abandonado a luta em que acreditara, um pouco para combater o tédio dos seus dias, resolve envolver-se num apoio pontual aos seus antigos companheiros de armas, situação essa que se vai revelar de um risco imprevisível.
É só quando conclui a leitura da obra, e se encontra envolvido num desfecho trágico e emotivo, que o leitor percebe, na placidez narrativa de O Homem Só, uma armadilha. E compreende que Bernardo Atxaga procurou revelar, pelo lado mais difícil, um facto óbvio, mas esquecido de forma intencional: aquilo a que se chama terrorismo é uma forma variante da guerra civil, e, por isso mesmo, os papéis da vítima e do algoz são permanentemente revertíveis, conforme o lugar em que se situa a dor e o sofrimento - no fundo, aquilo que é partilhado por todos. E que, além disso, é impossível escapar a essa situação de guerra civil, porque, antes do mais, ela é a expressão do torvelinho de fantasmas, inquietações e medos que atravessam os dias: todos somos “homens sós”, procurando uma benfazeja paz que, de forma inevitável, só se alcançará na água tépida da morte.
Bernardo Atxaga construiu, com O Homem Só, um romance talvez não tão importante em termos literários como Obabakoak... Mas, sem dúvida, é um testemunho pungente e decisivo para compreender a necessidade de existir um espírito de tolerância e abertura com vista à resolução do problema nacional basco.
Publicado no Público em 1998.
Título: Um Homem Só
Autor: Bernardo Atxaga
Tradução (do castelhano): Maria do Carmo Abreu
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
342 págs., € 15,96