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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

DAVID MALOUF


 




NO “LIMES” HUMANO

 
Uma das noções mais recorrentes sobre a narrativa australiana é a de que se constitui como uma espécie de “literatura de fronteira”. Esta noção deriva não tanto do facto desta literatura ser oriunda de um dos possíveis “limes” da civilização ocidental (será que ainda existem “limes” da civilização ocidental?), mas de uma certa imagem de “pioneirismo” que se encontra associada a alguns romances mais significativos de Patrick White (1912-1990) - o único escritor australiano a ganhar, em 1960, o Prémio Nobel, e que é, com Christina Stead (1902-1983) e poucos mais, uma das figuras tutelares desta literatura. Porém, é necessário reconhecer que esta imagem foi reforçada por uma certa visão “exterior” do continente australiano que o encara como um território de horizontes a perder de vista, despovoado, de rala vegetação, retalhado por gigantescas fazendas de criação de gado. E onde, principalmente, ressoa uma sufocante solidão motivada por uma esmagadora presença da Natureza.

 
É evidente que estas caracterizações, como é o caso desta noção de “literatura de fronteira”, mesmo que inevitavelmente redutoras, têm sempre algum fundamento; e hoje é consensual reconhecer que a narrativa australiana tem tido como “mainstream” uma constante reflexão sobre a fronteira entre civilização e Natureza. Mas, para que esta asserção se torne de facto significativa, deverá entender-se este termo “fronteira” em todos os seus possíveis contornos: entre razão e loucura, entre língua e silêncio, entre centro e periferia, entre experiência mística e realidade, entre epicidade e quotidiano, etc.
 
Se a problemática das relações entre Homem e Natureza ficou estabelecida pela produção literária da geração “heróica” de Patrick White e Christina Stead como elemento dominante da narrativa australiana, foram as obras de gerações posteriores, em particular aquelas que se afirmaram entre as décadas de setenta a noventa do século passado, e cujas figuras mais proeminentes são Elizabeth Jolley, David Malouf, Thomas Keneally, Frank Moorhouse, Murray Bail, Helen Garner, Peter Carey, Kate Grenville e Tim Winton (ordenados aqui pelo ano de nascimento), que lhe deram uma significativa irradiação internacional, exprimindo e definindo, através de um aprofundamento das perspectivas desta problemática e da utilização de métodos narrativos diversificados, um universo peculiar no quadro das literaturas de expressão inglesa.
 
No contexto da produção destes escritores tem merecido um destaque invulgar, pela singularidade com que aborda esta problemática das relações do homem com a Natureza, mas também pelo seu cuidado estilístico e pela subtil erudição com que sustenta a sua arquitectura narrativa, a obra de David Malouf, o autor de quem agora se apresenta o romance Uma Vida Imaginária.
 
Filho de um libanês cristão e de uma inglesa judia, David Malouf nasceu em 1934 em Brisbane, Queensland, onde passou a infância e a adolescência, tendo-se formado na universidade local. Depois de leccionar língua inglesa, por alguns anos, nesta universidade, decidiu, em 1958, fixar-se em Inglaterra, onde viveu durante dez anos, dando também aulas (em Londres e em Birkenhead). Regressou depois à Austrália, para dar aulas na Universidade de Sidney; até que, já em 1978, opta por abandonar o ensino e dedicar-se a tempo inteiro à actividade de escritor e retorna à Europa para ir residir na Toscânia, em Itália. Porém, em 1985, decide passar a viver definitivamente no seu Queensland natal, de onde, até hoje, só voltou a sair por motivos esporádicos. Saliente-se que este deambular permanente entre a Austrália e a Europa tem, em grande parte, subjacente o fascínio de David Malouf pela civilização europeia, espelhado de diversas formas na sua obra, e que este considera que foi “traduzida” (e não “transplantada”) com alguma ambivalência para o contexto geográfico e social muito distinto da Austrália.
 
 A obra literária de David Malouf espraia-se por diversos géneros (romance, conto, poesia, autobiografia, dramaturgia e até libretos de óperas), mas tem sido nos domínios da narrativa que se tem distinguido (deve, contudo, salientar-se que o autor é considerado no seu país como um poeta com uma produção de elevada qualidade estética). Foi em 1975, depois de já ter publicado dois livros de poesia (Bicycle and Other Poems e Neighbours in a Thicket: Poems, tendo este último sido premiado), que apareceu o seu primeiro romance, Johnno, de cariz autobiográfico; no entanto, foi com o segundo, este Uma Vida Imaginária, que começou a obter reconhecimento internacional, uma vez que este romance foi traduzido para diversas línguas. Durante as décadas seguintes, David Malouf foi publicando, alternadamente, poesia, romance e conto (até aos dias de hoje, para além dos já referidos, editou cinco romances e outros tantos livros de poesia, duas colectâneas de contos e uma de novelas), construindo uma obra que tem sido referenciada como uma das mais originais no quadro dos narradores de língua inglesa. Recordo, para exemplificar este estatuto, que dois dos seus romances publicados na década de noventa, The Great World e Remembering Babylon, ganharam o Commonwealth Writers Prize, o Prix Fémina para Obra Estrangeira, em França, e, no caso da última obra referida, para além destes prémios, o Miles Franklin Award, o International IMPAC Dublin Literary Award e que ainda integrou a “shortlist” do Booker Prize. Em 2000, o conjunto da sua obra foi galardoado com o Neustadt Prize.
 
Curiosamente, Uma Vida Imaginária é o único romance de David Malouf que não se passa em ambiente australiano; e, contudo, pressente-se, tanto na problemática como no modo de a formular, que esta obra integra de uma forma exemplar o citado “mainstream” da narrativa australiana. De facto, através do diário ficcionado dos últimos tempos de vida do poeta romano Ovídeo (quando este se encontra desterrado, por deliberação imperial, em território dos Citas, junto do Mar Negro, nos limites do Império) e, em particular, através da descrição do seu relacionamento com a criança-lobo que o próprio poeta descobriu e do seu esforço para a integrar na comunidade humana, o autor procura reflectir sobre um conjunto de questões que considera nucleares para a compreensão da especificidade do Homem no quadro das relações de “fronteira” entre civilização e Natureza (estas questões têm um peso tão obsessivo para David Malouf que o seu romance Remembering Babylon, redigido muitos anos depois, retoma-as de forma significativa): a relação entre “lei” e barbárie, entre ter “fala” e não ter (o exilado é alguém a quem foi “roubada” a língua), entre poder político e identidade individual (ou, por outras palavras, entre História e indivíduo), entre homem e Deus (será a entidade divina o Outro que prevemos em nós?) entre Ser e Natureza, etc., etc.
 
Esta trama serve também para David Malouf compreender, por uma descodificação de intuições e de sinais, como o “olhar” do poeta tem enormes similitudes com o da criança-selvagem e o do bárbaro, em especial na forma como encara a Natureza e a “reconstrói” em linguagem ritualizada. Nesse sentido, o próprio trabalho poético de Ovídeo permite-lhe demonstrar que o objectivo último da poesia é a diluição da fronteira entre homem e Natureza (as “metamorfoses”), deixando uma “marca”, mais imaterial do que material, que se consubstancia na própria natureza magmática do tempo.

 
Por fim, creio que deve referir-se que o estilo de Uma Vida Imaginária -  de um lirismo, ao mesmo tempo, conciso e transparente – contribuiu para transformar esta novela não só num clássico da literatura australiana e, de certo modo, da literatura universal, como favoreceu o aparecimento, em redor deste romance, de verdadeiros movimentos de “culto”, sendo encarado, por diversas gerações de leitores, como um autêntico “livro de sabedoria”.

 

Publicado em 2006 como Introdução a Uma Vida Imaginária de David Malouf.

 
Título: Uma Vida Imaginária
Autor: David Malouf
Tradutor: José Agostinho Baptista
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2006
144 págs, 11,70 €

 

 



sábado, 2 de fevereiro de 2013

THOMAS KENEALLY



O TORMENTO DOS INOMINADOS



Uma das mais simples faculdades da criação artística de cariz narrativo - mas que não é, por isso, minimizável - é a sua capacidade de permitir viajar por espaços e tempos que seria de outra forma impensável. Porém, até os leitores menos curiosos por cenários longínquos sabem que a literatura não é só isso: é a sua capacidade de transfigurar lugares e vidas que faz com que um bom romance, mesmo contextualizado em regiões muito localizadas ou exóticas, provoque uma cumplicidade que abre sentidos à existência do leitor e lhe suscita um sentimento de fraternidade na “espécie”. Se não fosse isso, quem se interessaria no nosso país por uma história situada numa pequena cidade do norte da Nova Gales do Sul na passagem deste século? E, contudo, são romances como este Uma Cidade À Beira-Rio de Thomas Keneally que nos fazem lembrar estas considerações basilares, mas determinantes, para compreender as potencialidades (e as especificidades) da produção artística.

A literatura australiana das últimas décadas tem revelado alguns autores que se têm distinguido por uma obra pujante na sua diversidade estilística e temática. Lembro, para só referir os autores que têm obtido reconhecimento internacional, os nomes de Christina Stead, de Frank Moorhouse, de David Malouf (que ganhou o ano passado a primeira edição do Irish Impac Award, o prémio literário internacional para uma obra com maior valor financeiro em todo o mundo), de Peter Carey e de Thomas Keneally. De todos estes, creio que só as obras de Peter Carey e de Thomas Keneally foram traduzidas para português - e o último, seguramente, porque um senhor chamado Steven Spielberg resolveu fazer um grande filme, A Lista de Schindler, a partir de um romance homónimo deste autor.

Creio que, há alguns anos atrás, se afirmasse que um escritor era um excelente profissional, se entenderia isto como uma forma encapotada de diminuí-lo. Sinceramente, espero que isto já não suceda, porque a leitura dos romances de Thomas Keneally deslumbram, antes do mais, pelo cuidado perfeccionista na contextualização e na conformidade estilística que caracterizam um grande profissional. Uma Cidade À Beira-Rio é uma história muito bem contada, através de uma significativa versatilidade estilística, onde a diversificação rítmica da frase atinge inúmeras vezes uma verdadeira dimensão poética, em que a natureza pulsa com um intenso lirismo e onde, por fim, o humor e uma emoção contida em parâmetros expressivos de grande qualidade conseguem fixar, de forma inolvidável, certas situações dramáticas e certas personagens.

Uma classificação apressada situaria Uma Cidade À Beira-Rio como mais um romance de fronteira e de pioneiros, idêntico a muitos que a literatura americana já produziu, mas aqui no contexto geográfico australiano. No entanto, estas regras de subgénero romanesco - claramente assumidas pelo autor - têm uma significação muito peculiar nesta obra. Com um pouco de ironia, pode dizer-se que a personagem principal deste romance é a cabeça de uma rapariga desconhecida que morreu quando fazia um aborto clandestino e que, conservada dentro de um frasco, deambula por toda a narrativa e, em particular, na consciência de um “merceeiro” sem vocação para tal, chamado Tim Shea. E percebe-se que a verdadeira “fronteira” que se questiona neste romance é entre a existência e a inexistência e que ela se situa entre a posse ou não de um “nome”.

Mas a questão não é apenas onomástica. O que significa ter um “nome”? Aqui cruza-se no romance uma outra história muito esclarecedora: a de Lucy, a criança órfã - e a forma como é narrada a morte do seu pai distingue de imediato um grande escritor - cuja vocação suicida é resultante da certeza que a indisponibilidade afectiva dos outros para consigo a torna num ser “inominado”, isto é, de existência insignificante. Percebe-se, assim, que “aquilo que nomeia” é a teia de afectos que nos rodeia, que a questão do nome é uma questão de amor.

É esta identificação da vida com a teia de afectos que define verdadeiramente a linha de fronteira, repudiando todas as presenças tentaculares da morte, apareça ela através de uma anónima cabeça decapitada, de uma criança suicida, da Guerra Anglo-Bóer, da peste bubónica, da hipocrisia social (com o seu cortejo de discriminações sexuais e raciais) ou de formas larvares de fascismo. Por isso, o pioneirismo de Tim Shea afirma-se na simplicidade de quem, como qualquer outro homem comum atento, sabe que, inevitavelmente, esteja onde estiver, está “sempre” na linha de fronteira, defendendo a especificidade cristalina do “nome” contra o desfigurante anonimato da morte.

Por tudo isto, pode afirmar-se que Uma Cidade À Beira-Rio é um belíssimo romance “cristão”, no sentido mais profundo e universalista deste termo, e bastante invulgar na recente literatura contemporânea. Pena é que, mais uma vez, esta tradução seja muito irregular, apresentando um português que exige, em inúmeras páginas, a mão de um bom revisor. Quando será que alguns dos nossos editores se convencem que a defesa de uma obra passa, antes do mais, por uma boa versão em português, mesmo que isso acarrete mais alguns custos? Esperemos que os nossos leitores saibam resistir a “este” português e leiam um romance que merecia um melhor destino no nosso país.


Publicado no Público em 1996.



Título: Uma Cidade À Beira-Rio
Autor: Thomas Keneally
Tradução: Sérgio Fiadeiro
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1996
391 págs., € 19,64


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

KIRSTY GUNN



A ÁGUA DA INFÂNCIA


Um dos elementos que mais tem contribuído para o vigor e dinamismo da literatura de expressão inglesa no corrente século tem sido, sem sombra de dúvida, a forma como consegue integrar a produção literária de autores oriundos de países pertencentes à antiga Commonwealth: basta consultar as “short-lists” dos mais importantes prémios literários ingleses para constatar este facto. É certo que esta situação é ainda uma sequela do colossal império que foi o Reino Unido e de continuar, como grande potência económica, a atrair e a formar a “inteligentsia” dos Estados que surgiram a partir da II Guerra Mundial. É neste contexto que se deve compreender a opção de muitos autores originários desses países em residir em Inglaterra e de adquirir a nacionalidade britânica. Mas mesmo em relação aos autores que resolveram permanecer no país de origem, a edição inglesa continua a ser o principal veículo da sua afirmação literária, dado o papel hegemónico que mantem, directamente ou através de sucursais ou de empresas geminadas, na publicitação de obras oriundas das antigas colónias.

A esta “absorção” cultural, não escapam os autores de países, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, em que existem níveis elevados de desenvolvimento económico e cultural. Repare-se, por exemplo, no caso de Katherine Mansfield. De facto, será mais determinante, para a compreensão da obra desta notável contista, saber que nasceu na Nova Zelândia ou que pertenceu aos círculos literários de Virginia Woolf e de D.H. Lawrence? Mesmo nos dias de hoje, em que se reconhece existir, tanto na Austrália como na Nova Zelândia, uma vida literária significativa, onde proliferam prémios, revistas e instituições, a consagração dos seus autores mais importantes, como C. K. Stead, Janet Frame, Alan Duff ou Patricia Grace, continua a fazer-se através da vida cultural inglesa.

Não admira, por isso, que, seguindo as pegadas dos seus antecessores, uma recente escritora neozelandesa, Kirsty Gunn, que despontou literariamente na década de noventa, com esta novela, Chuva, que agora é apresentada aos nossos leitores, o tenha efectuado em Inglaterra, onde ainda hoje vive.

Chuva é uma novela que faz transparecer uma imagem de fragilidade, onde a trama parece estar permanentemente a liquefazer-se, a escapar-se entre os dedos de quem a lê. De facto, o peso do elemento “água” nesta curta narrativa é tão constante, está tão presente em todas as suas páginas, que a própria acção parece desenrolar-se de uma forma ondulada, ao sabor das sinuosidades das elipses, criando uma cortina líquida que, de forma intencional, “turva” o olhar do leitor. Para este resultado contribui um acentuado cuidado estilístico - que se revela na criatividade da sua adjectivação e na depuração lírica das suas breves metáforas - que incute a esta obra uma qualidade poética muito peculiar.

A novela de Kirsty Gunn centra-se no sentimento de profunda amizade, de paixão quase materna, que a narradora, uma criança no início da adolescência, tem pelo irmão de cinco anos e nos seus solitários jogos infantis, em redor do lago próximo de sua casa, com que fugiam ao “olhar” adulto, a sonhar com uma independência selvagem, liberta de qualquer constrangimento, e que eles sabem ser uma utopia inconcretizável.

O universo de Chuva estrutura-se em redor de duas ideias-força fundamentais: a primeira, é a de que existe entre o universo infantil e adolescêntico e o universo adulto um acentuado grau de incomunicabilidade, resultante de visões e interpretações do mundo diferentes e de códigos de comportamento que são ilegíveis de parte a parte; a segunda, é a de que existe, na criança, uma sensualidade difusa, quase pré-sexual, e que é na tepidez dessa “água” que não só se fermenta a sensibilidade infantil, como é através dela que a criança consegue atingir aquela consonância com a natureza que lhe transmite uma auréola de esplendor divino. Neste contexto, a descoberta da sexualidade provoca o desaparecimento desta sensualidade sem objecto, rompendo em definitivo com a referida consonância e deformando o olhar que a narradora tem sobre o seu irmão. No fundo, a descoberta da sexualidade desencadeia o real processo de morte do corpo. Daí que a sexualidade apareça nesta novela como uma culpa desejada, um vórtice que os sentidos suplicam, mas que transforma a infância num paraíso perdido.

Chuva é, sem dúvida, uma das mais belas e interessantes obras que apareceu nos últimos tempos no nosso país sobre a infância. Grande parte da sua comovente beleza advém do pudor com que afronta os sinais trágicos da vida. Neste sentido, as páginas em que narra a descoberta da sexualidade por parte da personagem principal ou aquelas em que se desfecha o clímax da acção são exemplares de contenção emotiva, de tratamento subtil de tudo o que é insustentável para a sensibilidade infantil. Pena é que a tradução, algumas vezes, se deixe ficar demasiado presa à sintaxe inglesa e que, aqui e além, revele opções semânticas que não são as mais ajustadas.

Publicado no Público em 1999.


Título: Chuva
Autor: Kirsty Gunn
Tradutor: Margarida Vale de Gato
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
117 págs., esg.