segunda-feira, 16 de julho de 2018

ROBERT COOVER 2

 
 
 
 
EXERCÍCIO DE ESTILO
 
Se existe um tema que se pode entender como clássico, no quadro de teorização da modernidade, esse é inegavelmente o das relações entre serva/senhor. Remetendo para três imensos pilares do pensamento moderno — Sade, Freud e Nietzsche —, durante este século, vários pensadores, onde sobressai Bataille, perturbaram as nossas consciências humanistas e bem-pensantes, ao esmiuçarem a dependência corpórea, sensorial, que tal relação estabelece entre os seus membros, ao clarificarem a necessidade orgânica que institui, chegando ao ponto de assinalarem que a sua ruptura provoca um desequilíbrio fatal e comummente doloroso nos seus dois pólos.
 
É a este tema que resolve regressar o escritor norte-americano Robert Coover, em A Criada e o Amo. Este autor, pela primeira vez traduzido para português, iniciou em 1966, com The Origin of the Burnists, a publicação de uma significativa obra de ficção (lembramos Pricksongs and Descants, The Public Burning, etc.), marcada por uma permanente preocupação formal e orientada para a desagregação das estruturas normativas e clássicas do romance. Essa obra, entroncando numa tendência da ficção americana contemporânea, que tem também como expoentes Harry Mathews, John Barth e Richard Brautigan (todos eles desconhecidos do leitor português), tem, portanto, uma importante vertente experimental que transforma as narrativas numa espécie de arte combinatória de elementos formais onde as regras do jogo substituem as condicionantes miméticas (se quisermos encontrar alguma correspondência à obra de Robert Coover na literatura deste lado do Atlântico, devemos lembrar-nos das experiências do grupo OuLiPo, liderado por Raymond Queneau e Georges Perec).
 
É por isso que se pode afirmar que o tema de A Criada e o Amo é um “logro” a que o autor tem que recorrer para evidenciar aquilo que está subjacente e é nuclear na própria produção ficcional, que é a sua estrutura formal. Aproveitando-se de um quadro narrativo repetitivo e onde é desnecessária, e inconveniente, a progressão (o início dos trabalhos domésticos de uma criada e a sua sistemática punição por desleixo), Robert Coover vai desenvolver uma combinatória de referentes que, alterando-se e deslocando-se na própria narrativa, vão assinalar a subreptícia progressão de comportamentos até à ritualização de uma relação perversamente punitiva, onde os seus objectivos e sentidos se vão desvirtuando até ser a própria existência do “castigo” que justifica a relação.
 
As variantes de texto para texto são a tal ponto gradativas que a sua progressão faz-nos lembrar as experiências da música e do bailado “minimal” (como muito bem refere o texto de apresentação que aparece na contra-capa desta edição), e um trabalho interessante a realizar, face a esta obra, era perceber qual a lógica que determina aquela progressão (aritmética? geométrica?).
 
Perante um tema tão exaustivamente estudado (e, portanto, onde é difícil apresentar inovações significativas) e com um valor tão subsidiário na produção da obra, o que se realça em A Criada e o Amo é a sua dimensão de “exercício de estilo”. Mas talvez seja essa mesma predominância das preocupações formais que leva o leitor, ao concluir a leitura desta obra, a encará-la como demasiado fechada em si mesma e, por conseguinte, inútil.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: A Criada e o Amo
Autor: Robert Coover
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
68 págs., esg.
 




quinta-feira, 12 de julho de 2018

GRACE PALEY

 
 
 

MÚSICA DE CÂMARA

 

Existem escritores que, em vez de pretenderem realizar abrangentes totalidades sobre a condição do homem, ou de se confrontarem com espectaculares tragédias ou imponentes sistemas filosóficos, impõem, pelo contrário, nas suas obras, uma tonalidade de música de câmara, procurando unicamente aflorar aqueles “dramas moleculares” do quotidiano que tanto condicionam a existência.

 
É este o caso de Grace Paley, uma escritora norte-americana que, há cerca de trinta anos, iniciou a sua obra de ficcionista com este Pequenas Contrariedades da Existência que a Relógio d’Água agora traduziu e editou. Originária de uma família judia russa, Grace Paley nasceu, em 1922, em New York, tendo dedicado a maior parte da sua vida a conceber “short-stories” possíveis de terem de facto sucedido entre a vizinhança dos bairros de Bronx ou de Lower East Side onde sempre viveu.

 
Pequenas Contrariedades da Existência é constituída (como a restante obra desta autora) por breves histórias de mulheres, narradas, de forma sistemática, com um humor que, muitas vezes, toca o patético, e onde a desgraça ou a felicidade parecem não ser coisas deste mundo, ou, pelo contrário, tão profundamente mescladas na vida das pessoas, que dá a ideia de que a lágrima e o sorriso aparecem do nada.

 
A melancolia e a ternura com que são descritas rupturas e as paixões, os conflitos de geração, as faltas de dinheiro ou as súbitas prosperidades, transmitem a estas “short-stories” uma envolvente serenidade e revelam que Grace Paley tem uma enorme cumplicidade com as personagens femininas que retrata.

 
Depreende-se de Pequenas Contrariedades da Existência uma vontade simples de “mostrar”, como se fosse impossível descobrir qualquer sentido na existência das pessoas. Nenhuma conclusão é assim retirada destas “short-stories”, deixando-se, por isso, ao leitor a possibilidade de efabular a sua significação.

 
Utilizando a elipse e um estilo simples e directo, num tom vagamente tchekoviano (a que não deve ser estranha a sua origem russa e judia), Grace Paley consegue atingir, em Pequenas Contrariedades da Existência, uma significativa intensidade lírica que é, a maior parte das vezes, um sinal maior das “short-stories” - essa, sem sombra de dúvida, a grande criação narrativa da literatura norte-americana.

 
Lamenta-se, no entanto, que a edição portuguesa revele uma tradução e revisão descuidadas, obscurecendo, não poucas vezes, o sentido destas histórias.

 
 

Publicado na revista Ler em 1987.

 


 

Título: Pequenas Contrariedades da Existência
Autor: Grace Paley
Tradutor: Paula Castro
Editor: Relógio d’Água
Ano: 1987
126 págs., esg.
 

 



GORE VIDAL 4

 
 
 
OS BASTIDORES DO ESPECTÁCULO DO PODER
 
Uma tremenda trovoada cai, de noite, sobre um amplo relvado salpicado por árvores de grande porte. Num dos extremos do relvado, uma mansão georgiana toda iluminada, onde decorre uma luxuosa recepção. Recolhido debaixo de uma destas árvores, um adolescente, vestido a rigor com um fato branco, confronta-se com a trovoada, convence-se de que é capaz de a dominar. A chuva bate-lhe na cara, ensopa-lhe o fato e obriga-o a fugir, ensurdecido pelos trovões, para o pavilhão da piscina. Pára à porta, porque ouve um rádio a tocar, e, através da luz intermitente dos relâmpagos, vê, sem conseguir identificá-lo, um casal a fazer amor. A sofrer com a sua própria carência de adolescente, resolve fugir de novo, atravessando a correr o relvado e entrando, pelas traseiras, na grande casa.
 
Creio que, mesmo na sua inevitável pobreza, esta descrição sucinta da acção inicial de Washington, D. C., de Gore Vidal, revela o carácter “espectacular”, diria mesmo hollywoodiano, com que este autor nos introduz na saga em que pretendeu decifrar o poder político norte-americano.
 
Gore Vidal começou (por fim…) a ser traduzido no nosso país, e logo com uma das obras mais importantes deste autor que, desde muito cedo, se distinguiu na literatura americana do pós-guerra pela sua versatilidade estilística e temática. Descendente de uma família ligada tradicionalmente à elite dirigente dos Estados Unidos, Gore Vidal nunca iludiu a sua íntima relação com esse “establishment” (ele foi, por exemplo, uma figura proeminente da corte dos Kennedy e candidato a senador), mas, ao mesmo tempo, sempre assumiu atitudes muito críticas e incómodas para com esse “establishment” e, por isso, todas as suas regulares participações nos meios de comunicação social (Gore Vidal tornou-se profusamente conhecido nos Estados Unidos em consequência das suas, sempre “notadas”, aparições televisivas) provocaram repercutantes polémicas. Narcisista, sempre convicto da argúcia e da pertinência dos seus argumentos, Gore Vidal acusa de mediocridade a actual literatura americana (salvam-se Tennessee WiIIiams, Christopher Isherwood, Eudora Welty e poucos mais…), aponta a corrupção e a apetência autocrática e imperialista dos presentes dirigentes políticos, denuncia a “ditadura heterossexual” da sociedade em que vive. Gore Vidal conseguiu, assim, tornar-se uma das vozes mais radicais da vida americana e, numa daquelas contradições bem típicas dos Estados Unidos, uma das mais ouvidas e das mais solitárias.
 
Em termos literários, a vasta obra de Gore Vidal estende-se pelos domínios da ensaística, da dramaturgia e da narrativa. Este último domínio organiza-se, no fundamental, em três áreas formais: a ficção histórica, a sátira romanesca à sociedade americana e a ficção científica. De todas estas áreas, talvez a mais importante seja a do romance histórico, onde se destacam os títulos de Creation e, em especial, das duas trilogias sobre a história americana (a primeira, da qual o tomo inicial é este Washington, D.C., é constituída também pelos romances Burr e 1876, e a segunda encontra-se em fase de criação, tendo-se, no entanto, já publicado os títulos de Lincoln e Empire).
 
Washington, D. C. foi considerado, pela crítica dos Estados Unidos, como um dos melhores romances alguma vez escritos sobre o poder político norte-americano, e, em particular, sobre aquela cidade que, com os seus matizes vincadamente provincianos e, ao mesmo tempo, pretensamente cosmopolitas, lhe serve de sede.
 
A acção do romance processa-se entre o New Deal de F. Roosevelt e a Guerra Fria de Eisenhower, período em que Gore Vidal considera que se funda o actual império norte-americano, e analisa duas das relações mais determinantes para a compreensão da sua vida política: as relações entre os meios de comunicação social e o poder político, e, dentro deste, entre o Senado e a Presidência. Para isso, coloca em situação, por um lado, a família Sanford, que domina a imprensa da cidade, e, por outro, dois políticos, o senador Burden Day e o seu assistente Clay Overbury, e a respectiva ambição de atingir, como soe dizer-se nestas circunstâncias, a mais alta magistratura da nação americana.
 
Numa perspectiva estilística, como já foi referido, a obra explora toda a capacidade de encenação espectacular da escrita para, com um não-sei-quê de ironia, colocá-la ao serviço da descrição do “destino excepcional” das figuras que partilham o poder da nação mais poderosa do mundo. Utilizando uma estrutura clássica, Gore Vidal vai situando, como eixo central das diversas sub-divisões dos nove capítulos que constituem o romance, uma personagem diferente, o que permite apresentar distintos pontos de vista sobre a acção, complexificando assim os juízos que, sobre esta, se possam fazer, e afastando qualquer fácil tendência maniqueísta em que o leitor possa cair.
 
Como é habitual na ficção histórica, em Washington D. C. cruzam-se personagens reais com “inventadas”, e na acção do romance reflectem-se os principais acontecimentos porque passou a história americana naquele período: o reforço da esquerda liberal, depois do seu empenho na guerra civil espanhola, na administração do New Deal, a recuperação económica, a tensão internacional na fase pré-guerra e o neutralismo, a participação no conflito mundial, a ocupação de Berlim, Yalta, Hiroshima e a Conferência de São Francisco, a caça às bruxas maccarthista, a política de Blocos, a Guerra Fria e o muro de Berlim. Todos os desempenhos da política norte-americana perante estes acontecimentos são encarados como resultantes de um jogo, complexo e arriscado (e, por isso mesmo, amoral), que a elite social de Washington vai executando pela conquista do poder político, e como “puras emanações” de um microcosmos, sobre as quais, por conseguinte, cada elemento integrante parece não ter responsabilidades directas e objectivas.
 
Gore Vidal não esconde que entende a conquista poder político, antes do mais, como uma vitória da inteligência. É certo que existe, como é óbvio, uma intervenção do acaso (ou da sorte) na ascensão ao poder político; mas esta é principalmente consequência de uma implacável capacidade de sedução e de manobra das pessoas. A ascensão ao poder político é, por isso, resultante de um acumular (e de um culminar) de diversos pequenos poderes e conquistas; daí que o poder político tenha uma voracidade tal que exija a total absorção do indivíduo que lhe sentiu o fascínio, ao ponto de abdicar de si, isto é, de ocultar a sua subjectividade. Esta deixa de ter qualquer autonomia: deverá, como tudo o resto, resignar-se ao objectivo da conquista do poder.
 
É face a esta exigência do poder que, no essencial, as personagens de Washington, D. C. se situam: umas sujeitam-se por completo às regras impostas pelo jogo do poder, mesmo que isso leve à destruição de parte de si próprias (é o caso de Blaise Sanford, o magnate que domina a imprensa de Washington e de Clay Overbury, o jovem político em constante ascensão), e são, por isso, “inevitavelmente”, vitoriosas; outras encaram o poder político como devendo estar também sujeito a regras, principalmente morais, e, por conseguinte, sabem que, “inevitavelmente”, não estão em condições de o disputar, resignando-se ao simples papel de incomodarem e dificultarem a ascensão das primeiras, mas conseguindo deste modo, mesmo que condicionadas, obter uma certa integridade solitária como pessoas (é o caso do jovem Peter Sanford e, de certo modo, de Diana Day).
 
Perante estes dois universos em ininterrupto confronto, demarca-se o senador Burden Day, um político que pretende ainda conciliá-los, e que, por isso mesmo, é um representante da “idade de ouro” da política americana, quando esta ainda procurava governar uma República e não um Estado Imperial (note-se que, em obras posteriores, Gore Vidal renunciou a esta imagem de um período exemplar na política americana). No entanto, perante as exigências dos “novos tempos”, a tentativa de conciliação de Burden Day vai também transmitir dele uma imagem de fraco e de um vencido.
 
E, contudo, este controle do poder político não vai dar aos vitoriosos nenhum poder efectivo, mas só o prazer de gerirem um jogo: os políticos são obrigados permanentemente, de modo a não o perder, a executar uma estratégia de sedução o mais ampla possível e, por isso mesmo, a afirmarem-se numa sintonia abúlica com a maioria social. Além disso, as relações entre o Senado, o Congresso e a Presidência levam à anulação de um poder autónomo, e, por outro lado, estes vivem sujeitos a uma administração tentacular que de facto tudo decide.
 
Uma das constatações que se retiram da leitura de Washington, D. C. é que o Presidente americano nada governa, estando apenas limitado a expressar um “estilo” que dá uma “imagem” ao poder. Os políticos vitoriosos sabem, por isso, que é fundamental não revelarem idiossincrasias que se tornem fatais e isso condiciona-os a uma “retórica” do poder que pouco decide e que apenas transmite os sinais ritualizados de que tudo domina.
 
Convém ainda salientar que, em Washington, D. C., as próprias personagens, que entendem que a ascensão ao poder político deve estar sujeita a regras, não assumem essa atitude em consequência de qualquer princípio altruísta, exterior a eles próprios; pelo contrário, foi resultante do confronto entre a história pessoal e a própria História que determinou o modo como cada um encara o poder político.
 
Por fim, gostaria de referir que uma das virtualidades de Washington, D. C. é possibilitar uma viva compreensão, mesmo considerando a distância temporal entre o período referenciado e a actualidade, de um país que tem a intrigante capacidade de conciliar as dinâmicas sociais mais inovadoras com um “actor-presidente” (fica bem saliente neste romance de Gore Vidal como é “perturbantemente lógico” que um actor, pela sua intrínseca compreensão de que o poder é, no essencial, espectáculo, ocupe hoje a Casa Branca) que se evidencia por um discurso, na aparência anacrónico, mas que, no fundo, está em completa consonância com a imensa face oculta da sociedade americana.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: Washington, D. C.
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Fernanda Barão
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
388 págs., esg.
 
 



domingo, 8 de julho de 2018

SAUL BELLOW 2

 


ALGUÉM CHORA POR NÓS
 
 
A um certo passo, em Agarra o Dia de Saul Bellow, um velho médico burlão, que pretende continuar a “enrolar” a personagem principal, Tommy Wilhelm, diz, ao tentar convencê-lo da pertinência do projecto deste de separação e divórcio: ”Porque a deixa fazê-lo sofrer assim? (...) Não faça o jogo dela. (...) Quero dizer-lhe, não case com o sofrimento. Há quem o faça. Casam com ele, e dormem e comem juntos, como marido e mulher. Se deixam entrar a alegria pensam que é adultério.” E mais adiante, comentando a realidade que o circunda: ”Sete por cento deste país estão a suicidar-se por meio do álcool. Outros três, talvez, narcóticos. Mais sessenta que escorregam para o pó por meio do tédio. Mais vinte que venderam a alma ao demónio. E, então, há a pequena percentagem daqueles que querem viver. E essa é a única coisa com significado em todo o mundo de hoje. Esses são apenas os dois tipos de pessoas que há. Alguns querem viver, mas a grande maioria não. (,,,) Digo-lhe mais — continuou —, o amor dos moribundos resume-se a uma coisa: querem que morramos com eles. É porque nos amam. Não nos enganemos.”
 
Este longo “discurso”, colocado ironicamente na boca de um charlatão, sintetiza o quadro que ensombrece toda esta obra de Saul Bellow.
 
Tommy Wilhelm encontra-se a meio da sua vida e sente-se totalmente falhado. Repudiado pelo pai, abandonou mulher e filhos, não conseguiu afirmar-se como actor de cinema, sentiu-se obrigado, em termos morais, a abandonar o emprego, investiu o pouco dinheiro que ainda tinha na Bolsa de Mercadorias e perdeu-o. Vive num hotel, com as contas por pagar, sem amigos, e, principalmente, de todo descrente em relação a si próprio. Tommy Wilhelm, quer queira ou não, casou-se com o sofrimento.
 
É por isso que, ao fazer um balanço da sua própria vida, durante vinte e quatro horas, Tommy Wilhelm, desvenda um dos mais cruéis sintomas da sociedade americana: envolvidos em tantos estímulos de afirmação e consumo, convencidos de que o querer desliza sem atritos nesta sociedade, os homens desfazem e refazem as suas vidas, diluindo-se na névoa dos dias sem deixarem qualquer rasto.
 
Talvez em Portugal não se tenha ainda evidenciado a importância de Saul Bellow, provavelmente o escritor americano mais saliente do pós-guerra. A obra deste autor (vasta, com diversas fases distintas, galardoada com o Prémio Nobel, e donde se destaca este Agarra o Dia, para muitos críticos considerado como a sua obra-prima) não passa de um longo monólogo de um sujeito que ambiciona a omnisciência do lugar, mas que, perante a irrazão dos actuais mecanismos sociais, se sente desagregado e perdido.
 
É este o ponto de partida que origina uma das visões mais pessimistas da sociedade americana que alguma vez foi escrita: quando Tommy Wilhelm, no final das suas deambulações de um dia avassaladoramente depressivo, se encontra, por acaso, no funeral de um desconhecido, e rebenta numa crise de choro, aquilo que ele chora é a total inutilidade do destino do homem contemporâneo. Mas Saul Bellow sabe (e consegue transmitir-nos essa sensação, ao encerrarmos esta novela) que o verdadeiro horror chegará quando a crise de choro passar, quando Tommy Wilhelm abandonar aquele funeral de um individuo que, de um modo anónimo, personifica o irremediável e universal sem sentido da própria existência.
 
Publicado na revista Ler em 1987.
 
 
Título: Agarra o Dia
Autor: Saul Bellow
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Fragmentos
Ano: 1987
112 págs., esg.
 
 

 


sexta-feira, 29 de junho de 2018

WILLIAM S. BURROUGHS e JACK KEROUAC

 
 
 
 
 
A ETERNA ADOLESCÊNCIA A CAMINHO DO NEGRO FIM DO MUNDO
 
Quando se silenciou o troar apocalíptico das bombas e dos canhões da II Guerra Mundial, os Estados Unidos, que tinham passado quase incólumes no conflito (sem invasões nem destruições no seu território e com menos de meio milhão de vítimas militares – isto é, apenas 1% das vítimas globais da Guerra), encontravam-se, no início da década de cinquenta, num aparentemente imparável ciclo de crescimento económico. A irradiação do bem-estar e do consumo em vastos segmentos da população, que até aí tinham vivido na penúria da Depressão e da Guerra, mergulhava o “bom americano” num imenso optimismo, fruto da crença num linearismo desenvolvimentista que iria trazer, segundo parecia, a “paz universal” e a “felicidade eterna” na terra. Foi neste ambiente social e económico, que dava a impressão de condenar toda a gente a um modelo de vida e a uma forma de estar padronizada, que apareceu na costa Oeste, a contragosto, toda uma geração de intelectuais, a “beat generation”, que procurava um “outro” território existencial, dando origem a uma imprevisível tormenta na desmesurada nau americana.
 
Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Gary Snider, Neal Cassady, etc., têm, de facto, em comum, uma necessidade de fuga (Gilles Deleuze, em 1977, considerava-a como a característica determinante de toda a literatura anglo-americana deste século; mas não há dúvida que, onde ela se torna ostensivamente evidente, é na produção literária da “beat generation”): a filosofia oriental, o uso regular de estimulantes e alucinogénios, a afirmação da sexualidade, o pacifismo e o anti-nuclearismo, o renascimento de certa americanidade (a de Whitman, Pound e Henry Miller, por exemplo) resumem-se a uma procura frenética de práticas quotidianas alternativas, à exploração de campos “off que, obviamente, ultrapassam em muito o domínio da produção artística e literária. O peso social destas práticas, e das propostas ideológicas decorrentes, foi tremendo, e quem queira perseguir a genealogia dos fenómenos sociais mais expressivos dos anos sessenta e setenta terá que, de forma inevitável, passar pela acção cultural da “beat generation”.
 
Todo este processo se encontra hoje, contudo, bem distante: a editora e livraria de Lawrence Ferlinghetti, que publicou todos estes autores, a City Light Books, tornou-se um templo institucional em San Francisco, a Universidade de Berkeley o panteão da sua glorificação, os autores “beat” mitos vivos e... mortos. E, como é natural, a avaliação rigorosa da sua produção literária e artística começou a efectuar-se, mais ou menos liberta da fascinante circunstancialidade que a envolveu.
 
William S. Burroughs e Jack Kerouac são, reconhecidamente, os maiores prosadores desta geração. E, curiosamente, qualquer deles pretendeu esquivar-se a uma imagem de estritos romancistas.
 
O primeiro, depois de passar por uma dolorosa experiência de toxicómano, dependente de opiáceos, por longas estadias na América do Sul e na África do Norte (a sua permanência em Tânger, em consequência do seu comportamento anómalo, tornou-se lendária), foi alvo, em Boston, por alturas da edição americana da sua segunda obra, Naked Lunch, de um julgamento muito polémico, acusado de obscenidade e atentado aos costumes: o livro (já traduzido para português com o título A Refeição Nua) é resultante de um conjunto de anotações feitas no período da dependência e, posteriormente, no de tratamento por apomorfina.
 
No seguimento desta experiência narrativa, Burroughs vai dedicar-se, durante quase uma década (1959-1967),a um trabalho experimental sobre a linguagem (aplicando, de um modo sistemático, o “cut-up”, método inventado por um seu amigo, o pintor Bryon Gysin, e oriundo de experiências pontuais de Tzara e de algumas concepções teóricas de Cage e MacLuhan), pretendendo estabelecer um elo de comunicação pré-racional com o leitor, e convencido de que a literatura tinha de se converter num instrumento de guerrilha contra a semântica e contra racionalidade que lhe está subjacente, entendidas como os principais suportes do sistema tecnológico, entendido pelo autor como opressivo, em que se vive.
 
Cidades da Noite Vermelha, o último livro de WiIIiam S.Burroughs, como os dois anteriores, é resultante de uma nova “viragem” literária do autor, consciente do “fiasco”, em termos de comunicabilidade, que foi a aplicação radical do “cut-up”. Interligando dois enredos, um, de flibusteiros, passado no séc. XVIII, outro, oriundo do romance negro americano (para lá de outros excertos dramáticos), o romance pretende explicitar a existência, em diferentes épocas, de uma surda guerra que forças obscuras movem com vista a transformar virologicamente a humanidade: conclui-se com um enredo de antecipação, onde, em gigantescas e espectrantes metrópoles, se estabelece uma imagem apocalíptica do nosso futuro, feita de violência e quotidiana criminalidade, de mutação e “perversão” sexual, de circulação permanente de opiáceos.
 
Mas a presença, em catadupa, de imagens brutais de violência, de aviltamento do outro, de degradação, muitas vezes associadas à homossexualidade masculina, só fazem sobressair, à revelia do alarme pessimista sobre o futuro da humanidade, que Cidades da Noite Vermelha pretende ser um “olhar puritano” sobre a actual sociedade, que desvirtua e torna inevitavelmente estéril esse mesmo alarme.
 
Por outro lado, o uso “disfarçado” do “cut-up” e o recurso a métodos narrativos retirados dos “comics” e da ficção “marginal” de aventuras desequilibram a estrutura romanesca desta obra e transformam-na num mero (mas brilhante) depositário de técnicas narrativas.
 
A este nível, o apontamento mais interessante relaciona-se com o “renascimento” de personagens e situações pertencentes aos anteriores enredos na terceira parte de Cidades da Noite Vermelha: ao integrá-las na trama final, William S. Burroughs consegue não só desfazer qualquer “ilusão naturalista”, que tivessem criado os anteriores enredos, por serem construídos por processos narrativos clássicos, como recria, em compensação, a ilusão de que o texto é um mecanismo que se autorreproduz, deixando um lastro semântico.
 
Esta obra torna bem evidente que a produção literária de William S. Burroughs se encontra, pelo menos numa fase provisória, numa situação sem saída criativa. Mas essa não será a situação de todo um conjunto de romancistas que, nas décadas de sessenta e setenta, se preocuparam em especial com uma reflexão sobre a linguagem e as técnicas narrativas, subvalorizando os registos especificamente dramáticos?
 
Quanto a Jack Kerouac, essa necessidade de fuga, de libertação de um quotidiano programado, determinou que a sua obra rejeitasse a especificidade do “literário” (entendido nos limites poéticos e estilísticos modelados pelas obras de Henry James e de Hemingway, autores, por ele, menosprezados): a escrita tinha que se tornar o instrumento imediato e testemunhante de um existir “poético”, isto é, emocionalmente intenso, e o romance uma torrente de palavras que pretendia apanhar o pulsar da vida, transformando-se no monumento épico do momento (os antecedentes desta escrita estão, como é bem explícito, em Céline e em Henry Miller, por exemplo).
 
The Dharma Bums (traduzido para português com o título infeliz de Os Vagabundos da Verdade), o seu terceiro livro, é, como a maioria da restante obra deste autor, a fixação romanesca de material autobiográfico: neste caso, as suas convivências com o budismo zen.
 
Mas, para lá da especificidade do enredo, o que é hoje realçante neste livro, como no já clássico On the Road, é ainda conseguir fascinar-nos, mesmo sofrendo de evidentes ingenuidades narrativas, por personagens que estabeleciam novos modos de viver, por imortais adolescentes sempre disponíveis à descoberta e à invenção de um outro sentir. E, inegavelmente, estes romances de Kerouac, ao dimensionarem de um modo poético todo um conjunto de sinais da civilização urbana, transformaram os Estados Unidos no paraíso daqueles que ainda acreditam ser possível o nomadismo como forma de estar.
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
Título: Cidades da Noite Vermelha
Autor: William S. Burroughs
Tradutor: Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Editor: Difel
Ano: 1984
320 págs., esg.
 
 
Título: Os Vagabundos da Verdade
Autor: Jack Kerouac
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Minerva
Ano: 1984
303 págs. , esg.
 


 

 
 
 
 
 
 

 


segunda-feira, 25 de junho de 2018

PETER TAYLOR

 
 
 
 

O RINGUE FAMILIAR
  
Certo dia, um director editorial, vivendo em Manhattan, recebe dois telefonemas das irmãs, informando-o de que o seu octogenário pai, em Memphis, anunciou a sua intenção de se casar de novo. Estes telefonemas, exigindo que ele tomasse posição sobre o assunto, vão impeli-lo a fazer um balanço sobre a forma como decorreram as suas relações familiares, em particular como lhe perturbaram a vida, mesmo quando, mais tarde, se convenceu que se tinha, na prática, libertado delas.
 
É este o ponto de partida (e de chegada) de Convocação Para Memphis, o segundo romance de Peter Taylor, um escritor sulista que adquiriu, nas três últimas décadas, algum prestígio nos Estados Unidos, em especial no domínio das “short-stories”.
 
Com um esquema narrativo já clássico — todo o romance se desenrola em redor de um acontecimento perturbante que provoca no narrador a necessidade de reformular posições e comportamentos —, Peter Taylor vai efectuar uma pormenorizada reflexão sobre a instituição familiar, numa linha de preocupações que tem pontuado alguns dos actuais ficcionistas norte-americanos (e cujo exemplo mais interessante continua a ser, na nossa opinião, o de John Irving).
 
Assim, Convocação Para Memphis alonga-se numa fatigante análise caracterial dos membros da família do narrador, centrando-se particularmente no comportamento do pai, cujas opções vão condicionar em definitivo a existência dos restantes elementos familiares. Uma falência fraudulenta e a rotura com um amigo levam o pai a deslocar a sua família, nos anos quarenta, de Nashville para Memphis, e esta transferência para um novo ambiente sociocultural vai provocar não só a desagregação psicológica da mãe, mas uma série de consequências nefastas para os filhos: a impossibilidade de casamento para as duas filhas, o envio, como voluntário, de um dos rapazes para a guerra, onde vem a morrer, e a fuga do outro para Nova lorque.
 
Mas, o que está aqui em causa, é se o arbítrio do pai, resultante da autoridade que lhe é conferida em termos sociais, e agindo sem ter em consideração as apetências específicas de cada membro da família, é apenas um sinal de um brutal egoísmo ou a natural manifestação da tensão conflituosa sobre a qual a família se institui. Se assim for, é aceitável que os filhos, quando recebem, por sua vez, em consequência da idade avançada dos pais, a autoridade familiar, tenham legitimidade para colocar na primeira linha os seus próprios interesses, condicionando e “punindo” a velhice paterna: no caso presente em Convocação para Memphis, levando os filhos a despistar um eventual casamento na velhice do pai, que lhes poderia cercear a integral herança do património paterno.
 
A perspectiva de Peter Taylor, neste seu romance, sobre a instituição familiar é de a encarar, por conseguinte, não tanto como lugar privilegiado da gestão dos afectos, mas como o espaço privado de um irremediável “ajuste de contas” geracional e de uma permanente antropofagia.
 
Contudo, tudo isto já foi, e com outros meios, exaustivamente exposto pela psicanálise. Uma grande imprecisão na estrutura romanesca, uma monotonia estilística acentuada e uma reflexão repetitiva e “enrolada” não contribuem, decerto, para que um posicionamento conceptual já conhecido tenha uma outra Iuminosidade.
 
A ambição, às vezes, é nefasta: o material-base, que Peter Taylor utilizou, bastava, rigorosa e unicamente, para uma curta novela interessante; ao tentar dar-lhe um tratamento extenso, o autor transformou Convocação Para Memphis num evitável romance falhado.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
Título: Convocação Para Memphis
Autor: Peter Taylor
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Difel
Ano: 1988
195 págs., esg.