A NECESSIDADE DE UMA HETERODOXIA
Agora, depois do recente falecimento de Shusaku Endo, em que já está, portanto, publicado o que de mais decisivo escreveu, faz ainda mais sentido colocar questões que, de facto, não têm uma resposta simples: como explicar que este autor japonês tenha tido um sucesso internacional só comparável a autores como Mishima, Kawabata ou Oé? Como compreender que, exceptuando Mishima, seja o autor japonês mais divulgado em Portugal? É certo que a temática a que dedicou toda a sua obra (o cristianismo), estranha ao universo cultural japonês e inteiramente “internacionalista”, deve ter contribuído. Mas, decerto, não bastará para explicar. De qualquer modo, uma coisa é segura: a obra deste autor é bastante menos estimulante, em termos estéticos e ideológicos, do que a dos autores já referidos e bem “periférica” numa literatura tão forte e diversificada como é, nos dias de hoje, a japonesa.
A razão desta estranheza não é tanto pela temática tratada, mas porque esta obra foi toda ela construída com intuitos estritamente “programáticos” (haverá alguma obra de um outro autor de primeiro plano contemporâneo que tenha sido elaborada com intuitos programáticos?) e que se podem resumir numa simples frase: defender um cristianismo liberto dos condicionalismos históricos da sua origem e dos valores ocidentais e provar, por via romanesca, a universalidade e as virtualidades humanísticas desta concepção do pensamento cristão.
É evidente que esta problemática é em grande parte resultante das preocupações de Shusaku Endo, como cristão, em conseguir enraizar a sua religião no universo sociocultural japonês. Por isso, não é de todo injusto afirmar que esta obra é orientada para o “interior” do Japão, o que torna ainda mais intrigante o seu sucesso internacional (recorde-se, por exemplo, que a sua obra Uma Vida de Cristo, também já traduzida e editada pela Asa nesta mesma colecção, pretende ser, de forma explícita, uma divulgação do pensamento e da vida de Cristo para japoneses).
Mais do que em qualquer outra obra de Shusaku Endo, tudo isto que foi referido é bem manifesto neste ambicioso romance, Rio Profundo, com que se finalizou a sua vida literária. Toda a estrutura da obra se organiza em redor de uma situação que é a componente fundamental da acção narrativa: um conjunto heteróclito de turistas japoneses, por razões diversas, mas quase todas com componentes religiosas, viaja pela Índia, em busca dos lugares santos de Buda, e decide, fascinado pela sacralidade de Benares e do rio Ganges, ficar durante alguns dias nesta cidade, procurando obter respostas para as suas inquietações. De facto, a maioria deles passou por dolorosas experiências próximas da morte e sente que, nesse confronto, ficou algo por resolver.
O rio Ganges, com os seus rituais de morte e purificação, ao levar na sua água barrenta as cinzas dos mortos e os cadáveres que encontra na sua passagem, ao “limpar” os homens e fertilizando as terras, dá a estas personagens a consciência do ininterrupto ciclo da vida e unifica numa só resposta as suas diversas interrogações. E essa resposta é a dádiva amorosa (no sentido, obviamente, da “caritas” latina) como chão fértil da vida e o sentido último de todos os percursos. À personificação divina desta resposta dá Shusaku Endo o nome de Cristo; mas, como aceita uma personagem, Otsu - que é, de modo notório, o elemento positivo e catalisador de todo o romance -, poderia chamar-se Cebola. Quer isto dizer que a “revelação”, que o ensinamento e a vida de Cristo trouxeram, pode estar em tudo (a própria acção da Natureza a contém) e em religiões como o budismo, o hinduismo (Cristo “é” a deusa Chamunda) ou na acção e na doutrina de alguns homens (Mahatma e Indira Ghandi, por exemplo). Qualquer homem, com o seu percurso de sofrimento provocado por si ou por outrem, traz em si o sinal da “revelação”. Mesmo o “pecado” (já era este o sentido de Judas em Uma Vida de Cristo) contribui para reforçar o seu significado.
É evidente que este panteísmo é, de modo manifesto, heterodoxo e tinha que ser rejeitado pela Igreja. Qualquer igreja, para além de determinadores valores, necessita de ritos e “mistério”, e é dessa amálgama que efectua o seu proselitismo. Ao abandonar os seus sinais formais, Shusaku Endo reduz o cristianismo a um valor, e ao identificá-lo com Deus, passível de “transparecer” em tudo e em todos (no fundo, todos somos mais ou menos cristãos, mesmo quando o não aceitamos), afecta os próprios fundamentos da Igreja. O essencial herético do autor está em confinar o cristianismo a uma ética (dando-lhe, é certo, uma legitimação metafísica); mas uma religião e, em particular, uma Igreja não se limitam a isto.
No fundo, talvez esteja nesta atitude do autor a razão do seu sucesso: a simplicidade das convicções de Shusaku Endo pacifica - e a sua obra consegue efectivamente transmitir esta serenidade. E talvez não seja por acaso que os maiores méritos literários deste romance estejam na descrição de certas situações que estão nos antípodas desta atitude: estou a referir-me à descrição inicial dos últimos momentos de uma cancerosa, esposa de uma das personagens principais, ou à descrição brutal da retirada das tropas japonesas pelas florestas da Birmânia, durante a 2ª Guerra Mundial, que uma outra personagem viveu. Perante estas situações, o efeito contrapontístico das convicções do autor funciona como um singelo bálsamo que dá sentido aos inquietantes dias terrenos.
Deve-se, por fim, assinalar a qualidade da tradução, a que seguramente não é estranho o carinho que o tradutor tem pela obra de Shusaku Endo e pela sua divulgação no nosso país.
Publicado no Público em 1997.
Título: Rio Profundo
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Editor: Asa
Ano: 1997
343 págs., € 14,85