segunda-feira, 9 de abril de 2012

SHUSAKU ENDO 3




A NECESSIDADE DE UMA HETERODOXIA



Agora, depois do recente falecimento de Shusaku Endo, em que já está, portanto, publicado o que de mais decisivo escreveu, faz ainda mais sentido colocar questões que, de facto, não têm uma resposta simples: como explicar que este autor japonês tenha tido um sucesso internacional só comparável a autores como Mishima, Kawabata ou Oé? Como compreender que, exceptuando Mishima, seja o autor japonês mais divulgado em Portugal? É certo que a temática a que dedicou toda a sua obra (o cristianismo), estranha ao universo cultural japonês e inteiramente “internacionalista”, deve ter contribuído. Mas, decerto, não bastará para explicar. De qualquer modo, uma coisa é segura: a obra deste autor é bastante menos estimulante, em termos estéticos e ideológicos, do que a dos autores já referidos e bem “periférica” numa literatura tão forte e diversificada como é, nos dias de hoje, a japonesa.

A razão desta estranheza não é tanto pela temática tratada, mas porque esta obra foi toda ela construída com intuitos estritamente “programáticos” (haverá alguma obra de um outro autor de primeiro plano contemporâneo que tenha sido elaborada com intuitos programáticos?) e que se podem resumir numa simples frase: defender um cristianismo liberto dos condicionalismos históricos da sua origem e dos valores ocidentais e provar, por via romanesca, a universalidade e as virtualidades humanísticas desta concepção do pensamento cristão.

É evidente que esta problemática é em grande parte resultante das preocupações de Shusaku Endo, como cristão, em conseguir enraizar a sua religião no universo sociocultural japonês. Por isso, não é de todo injusto afirmar que esta obra é orientada para o “interior” do Japão, o que torna ainda mais intrigante o seu sucesso internacional (recorde-se, por exemplo, que a sua obra Uma Vida de Cristo, também já traduzida e editada pela Asa nesta mesma colecção, pretende ser, de forma explícita, uma divulgação do pensamento e da vida de Cristo para japoneses).

Mais do que em qualquer outra obra de Shusaku Endo, tudo isto que foi referido é bem manifesto neste ambicioso romance, Rio Profundo, com que se finalizou a sua vida literária. Toda a estrutura da obra se organiza em redor de uma situação que é a componente fundamental da acção narrativa: um conjunto heteróclito de turistas japoneses, por razões diversas, mas quase todas com componentes religiosas, viaja pela Índia, em busca dos lugares santos de Buda, e decide, fascinado pela sacralidade de Benares e do rio Ganges, ficar durante alguns dias nesta cidade, procurando obter respostas para as suas inquietações. De facto, a maioria deles passou por dolorosas experiências próximas da morte e sente que, nesse confronto, ficou algo por resolver.

O rio Ganges, com os seus rituais de morte e purificação, ao levar na sua água barrenta as cinzas dos mortos e os cadáveres que encontra na sua passagem, ao “limpar” os homens e fertilizando as terras, dá a estas personagens a consciência do ininterrupto ciclo da vida e unifica numa só resposta as suas diversas interrogações. E essa resposta é a dádiva amorosa (no sentido, obviamente, da “caritas” latina) como chão fértil da vida e o sentido último de todos os percursos. À personificação divina desta resposta dá Shusaku Endo o nome de Cristo; mas, como aceita uma personagem, Otsu - que é, de modo notório, o elemento positivo e catalisador de todo o romance -, poderia chamar-se Cebola. Quer isto dizer que a “revelação”, que o ensinamento e a vida de Cristo trouxeram, pode estar em tudo (a própria acção da Natureza a contém) e em religiões como o budismo, o hinduismo (Cristo “é” a deusa Chamunda) ou na acção e na doutrina de alguns homens (Mahatma e Indira Ghandi, por exemplo). Qualquer homem, com o seu percurso de sofrimento provocado por si ou por outrem, traz em si o sinal da “revelação”. Mesmo o “pecado” (já era este o sentido de Judas em Uma Vida de Cristo) contribui para reforçar o seu significado.

É evidente que este panteísmo é, de modo manifesto, heterodoxo e tinha que ser rejeitado pela Igreja. Qualquer igreja, para além de determinadores valores, necessita de ritos e “mistério”, e é dessa amálgama que efectua o seu proselitismo. Ao abandonar os seus sinais formais, Shusaku Endo reduz o cristianismo a um valor, e ao identificá-lo com Deus, passível de “transparecer” em tudo e em todos (no fundo, todos somos mais ou menos cristãos, mesmo quando o não aceitamos), afecta os próprios fundamentos da Igreja. O essencial herético do autor está em confinar o cristianismo a uma ética (dando-lhe, é certo, uma legitimação metafísica); mas uma religião e, em particular, uma Igreja não se limitam a isto.

No fundo, talvez esteja nesta atitude do autor a razão do seu sucesso: a simplicidade das convicções de Shusaku Endo pacifica - e a sua obra consegue efectivamente transmitir esta serenidade. E talvez não seja por acaso que os maiores méritos literários deste romance estejam na descrição de certas situações que estão nos antípodas desta atitude: estou a referir-me à descrição inicial dos últimos momentos de uma cancerosa, esposa de uma das personagens principais, ou à descrição brutal da retirada das tropas japonesas pelas florestas da Birmânia, durante a 2ª Guerra Mundial, que uma outra personagem viveu. Perante estas situações, o efeito contrapontístico das convicções do autor funciona como um singelo bálsamo que dá sentido aos inquietantes dias terrenos.

Deve-se, por fim, assinalar a qualidade da tradução, a que seguramente não é estranho o carinho que o tradutor tem pela obra de Shusaku Endo e pela sua divulgação no nosso país.


Publicado no Público em 1997.


Título: Rio Profundo
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Editor: Asa
Ano: 1997
343 págs., € 14,85



sábado, 7 de abril de 2012

SHUSAKU ENDO 2



INTERPRETAÇÃO E VERDADE


O escritor Shusaku Endo, que o leitor português já conhece de alguns romances, tem, no contexto da literatura japonesa contemporânea, um estatuto particular, uma vez que sempre se apresentou como cristão e centrou toda a sua problemática na afirmação do cristianismo no seu país. A sua última obra traduzida, Uma Vida de Jesus, tem, por isso, um imediato - e expresso - objectivo didáctico: divulgar, através da biografia, a Verdade de Jesus aos seus compatriotas.

O autor afirma nas primeiras páginas que irá fundamentar o seu trabalho nos Evangelhos e no resultado das investigações históricas que, a data da produção da obra (1974), tinham sido efectuadas. Ora, a necessidade de comparar os testemunhos dos Evangelhos entre si (aceitando, além disso, que estes são também “interpretações” de factos e que houve “adaptações” e possíveis “introduções” efectuadas pela Igreja cristã primitiva) e, ao mesmo tempo, com o resultado das referidas investigações, com o fim de constituir uma coerência narrativa, coloca inevitavelmente o problema de uma estratégia interpretativa.

Identificar-se como cristão é aceitar, mesmo com uma relativa fluidez e amplitude, os princípios de uma ortodoxia. Por conseguinte, um dos interesses, que Uma Vida de Jesus de imediato suscita, é saber como é que o autor pondera o valor da hermenêutica face a essa ortodoxia.

A estratégia interpretativa de Shusaku Endo perspectiva Jesus condicionado por uma conjuntura histórica difícil, resultante do confronto entre a ocupação romana da Judeia, a sujeição política dos hierarcas da Igreja judaica e o espírito de insubordinação e autonomia das populações que procuravam ansiosamente um Messias. Será a recusa deste confronto que impelirá Jesus à descoberta da Sua Missão; porém, será também esta conjuntura difícil que fará com que nem os Seus discípulos mais directos (exceptuando, talvez, o caso de Judas Iscariotes nos últimos tempos da vida de Jesus) compreendam essa Missão, confundidos com o trágico equívoco de que Jesus teria de ser o líder carismático da sua libertação terrena: é, por fim, esta total incompreensão que obrigará Jesus a doar a Sua Vida como forma de revelar inequivocamente a verdadeira essência de Deus. Há em Jesus, por conseguinte e em resultado das circunstâncias, uma opção suicidária, visto que Ele assume o Seu percurso e sabe que este levará a Crucifixação.

Esta descrição sucinta permite perceber como esta estratégia, oriunda de um ponto de vista ortodoxo, se conclui bem longe dele: de facto, Jesus aparece como um homem que, fruto das circunstâncias, foi tocado pelo dedo da Verdade e se tornou na Palavra de Deus. Esta visão de Jesus tem, no entanto, algumas fragilidades que revelam a incoerência da estratégia narrativa da obra: como compreender a Ressurreição e, em particular, a transformação dos discípulos de figuras limitadas e cobardes em possuidores de uma Revelação que os tornaria capazes de afrontar todos os perigos? Shusaku Endo só tem uma forma de resolver o problema: aceitando a eventualidade de um “mistério” que exigiria a presença da fé.

Esta tentativa de estabelecer uma estratégia interpretativa em Uma Vida de Jesus não quer dizer que dê origem a um resultado coerente: como tem sucedido de forma sistemática, os Evangelhos são encarados entre o simbólico e o literal, conforme a necessidade de sujeitar os “factos” a uma Verdade cristã racionalizada.

Esta incoerência revela os limites de uma obra que se pretende uma biografia credível de Jesus: interpretar uma verdade que se entende como absoluta quer dizer condicioná-la às motivações existenciais do lugar e do olhar que a interpreta. Como qualquer outro discurso mítico, a Verdade de Jesus tem a força débil de se abrir - e de se sujeitar - às interpretações que tem sido necessárias ao longo dos tempos: é essa a história do cristianismo. Ao aceitar a historicidade de Jesus e, paralelamente, ao assumir a atemporalidade da Sua Verdade, “visto que Ele é Deus feito homem”, a instituição religiosa coloca-se num posicionamento que exclui qualquer hermenêutica: esta reflectirá sempre quem interpreta e não O interpretado. Segundo esse posicionamento, a Vida de Jesus nunca poderá ser de facto conhecida e narrada: escrever-se-á sempre “uma” das inúmeras vidas de Jesus – e é este o sentido do cauteloso título da obra de Shusaku Endo.

Saliente-se que nas suas próprias fragilidades se revelam os méritos narrativos de Uma Vida de Jesus. De facto, o próprio desenvolvimento narrativo integra nas dificuldades hermenêuticas do autor: avançando e recuando, conforme sente necessidade de se explicitar e de conduzir o leitor, mesmo repetindo-se não só na caracterização das situações como nas metáforas, fundamentando-se em descrições actuais de paisagens ou questionando, de forma ensaística, os problemas do cristianismo, Uma Vida de Jesus, tratando um tema tão exaustivamente analisado, consegue, mesmo assim, tornar-se, em termos estilísticos, fascinante.


Publicado no Público em 1993.


Título: Uma Vida de Jesus
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Editor: Edições Asa
Ano: 1993
234 págs., € 13,09



quarta-feira, 4 de abril de 2012

SHUSAKU ENDO 1


UM POVO DE JUDAS



É provável que um dos fascínios imediatos, que o leitor português sentirá desde as primeiras páginas de Silêncio de Shusaku Endo, seja o de ver nelas espelhado um dos papéis mais dignificantes que, em termos históricos, o seu país exerceu: o de “civilizador” e evangelizador, isto é, o de transmissor de princípios humanistas e cristãos a povos longínquos, em condições particularmente inóspitas e que originaram, muitas vezes, o sacrifício da própria vida a quem os propagava. E, mesmo para quem tem tendência a minimizar o sentido e o valor desse papel - realçando os interesses materiais que obviamente estavam por detrás ou reforçando o aspecto deformante e nefasto que, por excesso de eurocentrismo, esses princípios também provocavam -, sente-se sensibilizado por ver que um japonês, pela via literária, reflecte e salienta o significado desse papel. Tudo se passa, no fundo, como se a imagem, que se irradia, assumisse corpo real, palpável, do outro lado do espelho.

Convém, no entanto, salientar o estatuto excepcional de Shusaku Endo na actual literatura japonesa: escritor católico, parcialmente em rotura com os valores tradicionais da cultura japonesa, tornou-se na sua terra (e nos países anglo-saxões) bastante respeitado e prestigiado por uma obra que se centra, em termos temáticos, nas dificuldades de penetração do cristianismo no Japão. Subjacente a esta problemática, está a posição de Shusaku Endo (bem realçada no prefácio de William Johnston que acompanha esta edição de Silêncio) que considera que é muito difícil ao cristianismo expandir-se no “pântano cultural” japonês, se não se libertar de certos valores helenísticos e mesmo genericamente ocidentais. No conjunto da sua obra, foi este romance (com O Samurai, também editado peias Publicações Dom Quixote) que, de forma decisiva, consagrou o autor.

Silêncio, como a generalidade da restante obra de Shusaku Endo, é um romance histórico, situando-se este na primeira metade do séc. XVII, durante a segunda fase de missionarização do Japão. Nesta altura, quando já Portugal, perante a ofensiva holandesa, tinha perdido todas as possibilidades de penetração e comercialização naquele país, os jesuítas portugueses ainda procuravam continuar a acção evangelizadora, enfrentando as proibições e perseguições que, entretanto, o poder feudal nipónico tinha lançado sobre os católicos.

O romance narra a missionarização clandestina do jesuíta Sebastião Rodrigues no interior do Japão e as suas buscas para encontrar o provincial da sua Ordem, Cristóvão Ferreira, homem muito prestigiado pala sua fé, com o fim de compreender porque é que este tinha apostatado. Mas vai ser com a sua própria experiência que Rodrigues irá perceber que, mais do que a tortura e o sacrifício físico daqueles padres, o que lhes faz vacilar na sua fé, é o permanente “silêncio de Deus” perante as barbaridades cometidas sobre os miseráveis camponeses nipónicos - só por reconhecerem o Seu Nome.

Shusaku Endo, utilizando material narrativo ficticiamente documental – com o intuito de acentuar o pendor realista e histórico -, vai construir o percurso do padre Rodrigues em paralelismo com o calvário de Cristo; daí que uma das personagens mais interessantes de Silêncio, pela sua caracterização, seja Kichijiro, o Judas japonês. Este, depois de denunciar o sacerdote português por cobardia, mas também porque a sua formação cristã é um verniz facilmente quebrável, vai arrastar, torturado, a sombra da sua culpa pelos passos mais dramáticos da prisão do jesuíta, suplicando-lhe perdão e, ao mesmo tempo, desde que pressionado pelas autoridades, abjurando repetidamente. E, da mesma forma que a acção de Judas foi essencial para a Revelação de Cristo (não é por acaso que, perante Kichijiro, Rodrigues se recorda de uma das suas primeiras dúvidas teológicas: por que motivo Cristo, como filho de Deus, necessitou do sacrifício e da condenação de Judas para revelar a Sua Verdade?), Kichijiro representa, mais do que os supliciados ou os carrascos que perpassam este romance, o povo japonês no seu todo, porque, tendo estado em contacto com a doutrina de Cristo, a abjurou e denunciou, gerando, deste modo, um crucial “teste” à sua universalidade.

Naturalmente, o cristianismo como doutrina tem que ser aqui uma questão contornável na análise do romance. Mas, de qualquer forma, ele pesa na construção de Silêncio. E o carácter demasiado programático deste livro, onde a ficção se torna elemento ilustrativo de uma problemática e de uma obsessão, “espartilha” a sua acção narrativa e a caracterização das suas personagens, dando-lhe uma respiração difícil, que o torna, por vezes, monótono.

Publicado no Expresso em 1990


Titulo: Silêncio
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Edição: 1990
Editora: Publicações Dom Quixote
233 págs., € 12,59