ARTIFICIOSAS CORRUPÇÕES
Uma das ideias mais generalizadas sobre o romance é a de este ser, por excelência, o instrumento artístico de análise e de crítica social. Simplesmente, o romance, como objecto artístico, é, antes do mais, uma forma de conhecimento que ambiciona uma totalidade, envolvendo o escritor como entidade individual e social. Nesse sentido, não há romance de crítica social que não exija uma coerente reflexão moral que implique e caracterize uma visão do mundo; sem esta, o dito romance de critica social transforma-se num simples “fogo-de-artifício”, mais ou menos habilidoso, mas condenado ao fracasso quanto aos seus fins e como objecto artístico.
Creio que esse é um dos vários equívocos em que tem assente a produção romanesca de Alberto Bevilacqua, um escritor italiano que iniciou a publicação da sua obra nos anos sessenta, obtendo, desde logo, uma significativa consagração. De facto, este autor tem pretendido efectuar, com a sua ficção, uma desmontagem das traficâncias com que os diversos poderes sociais e políticos tem gangrenado o corpo colectivo da Itália contemporânea. O Jogo das Paixões, o romance agora traduzido, insere-se integralmente neste tipo de preocupações.
Através de um enredo que narra a luta pela liderança da Mafia veneziana e as suas relações cúmplices com os poderes públicos, Alberto Bevilacqua pretende retratar uma Itália onde já não se consegue distinguir os contornos da Lei e do Crime. A figura central do romance, o Doge - título irónico dado ao chefe daquela Mafia -, aparece, pelo contrário, como um eventual Redentor, contraditório e sanguinolento, fustigando, pela chantagem, a hipocrisia daqueles que têm o prestígio e o poder e revelando que o seu ostensivo poço de virtudes é um obscuro poço de corrupção.
A imagem final que O Jogo das Paixões transmite da sociedade contemporânea é a de um tecido social completamente esgarçado por tibiezas, traições, denúncias, ódios e prostituições. As “paixões”, a que alude o título, são os furores mortíferos a que conduzem o sexo e o dinheiro, e o termo “jogo” caracteriza os exercícios rigorosos e aplicados de ocultação a que são obrigados esses furores para atingirem os seus objectivos. Mesmo os afectos mais intensos se transformam, depois de apaziguado o desejo, em contratos que visam uma determinada representação social.
Assim, de acordo com a concepção da sociedade que determina a actuação do Doge - em que os indivíduos não passam de artificiosas máscaras que encobrem uma carne manchada pelo pecado original de uma traição e que, por isso, necessita de se alimentar da corrupção dos outros -, Alberto Bevilacqua coloca-se, decididamente, do lado dos “chantagistas”. E isto revela a dimensão absurda da “imago mundi” de O Jogo das Paixões: é que, ao contrário do que os poderes sociais e políticos pretendem fazer crer, impondo hábeis processos de culpabilização que permitem um fácil manuseamento dos indivíduos, o sentimento de corrupção é, antes de social, uma questão do foro íntimo; só quando se assume determinado acto como corrupto é que ele pode ter nefastas implicações sociais. Por isso, a este nível, não existem “máscaras” e “rostos”, porque não existe distinção entre verdade e representação: a máscara é a pele. A mais simples reflexão moral daria, por conseguinte, outra dimensão a este romance e libertaria o autor dos perigosos equívocos para que se vê arrastado.
Talvez não sejam alheias a estas “facilidades” certas opções estilísticas do autor neste romance: não só a construção frásica é, a maior parte das vezes, rebuscada e artificiosa (ou será isto resultante de uma tradução pouco conseguida de um profissional que já obteve muito melhores resultados em obras como as de Primo Levi ou de Umberto Eco?), como, em particular, é inconsequente a decisão de, no próprio texto, utilizar expressões que evidenciem a dimensão puramente ficcional do enredo. Além disso, a maior parte das personagens e das situações narradas são, de modo notório, pouco plausíveis, como se Alberto Bevilacqua se satisfizesse em acreditar que a sua pena é demiúrgica.
É lamentável que o autor não se tenha confinado a produzir um romance de puro divertimento que tem, obviamente, a sua legitimidade própria. Ao comprometê-lo com implicações mais complexas, criou um produto que não é peixe nem carne, fracassando, por isso, em todos os tabuleiros.
Publicado no Público em 1992.
Título: O Jogo das Paixões
Autor: Alberto Bevilacqua
Tradução: José Colaço Barreiros
Editor: Difusão Cultural
Ano: 1992
294 págs., (esgotado)