AS DIÁFANAS MÁSCARAS
Um caso exemplar de valorização distinta de uma obra, conforme se vão alterando o contexto sociocultural e o modo de interrogar a literatura por parte do receptor, é o da produção literária de Cristopher lsherwood. Quem comparar histórias da literatura inglesa - feitas até aos anos setenta - notará que, quase por unanimidade, todas elas consideram que a ficção, até aos finais dos anos quarenta, deste autor tem o relevo e a qualidade narrativa da de Graham Greene, Evelyn Waugh ou George Orwell (para referir apenas escritores da sua geração). Mas salientam também que, após a sua fixação na Califórnia, a obra de lsherwood se subjugou ao fascínio das filosofias orientais e à problemática homossexual, deixando de ter o mesmo interesse e importância. E chega-se ao ponto, na maior parte dos casos, de nem sequer se referir nenhuma obra realizada a partir dessa altura - isto é, durante quase cinquenta anos de actividade literária.
No entanto, as recentes gerações de leitores e críticos começaram a encarar de forma diferente a produção romanesca de lsherwood, não aceitando aquela demarcação. Quando anteriormente se destacava a dimensão política da sua obra, associando-a à dos escritores que, entre as duas guerras, tiveram preocupações semelhantes, esquecia-se quais as motivações mais ou menos explícitas que o levaram a esse tipo de intervenção literária. Hoje, após a morte recente de lsherwood, torna-se bem claro que aquelas eram originadas por uma vigorosa reacção ao farisaísmo de uma época (mais do que de uma sociedade) e à incapacidade desta em compreender comportamentos que se esquivassem à norma (em especial a homossexualidade).
Porém, já neste período, o que era mais original na sua narrativa era uma sensibilidade e um “olhar” bem peculiares, no contexto literário da época, sobre as éticas sociais, os comportamentos e as relações intersubjectivas. A abertura posterior dos costumes facilitou que a obra de lsherwood se orientasse, na chamada “fase americana”, para uma temática mais subjectiva e pessoal que permitiu a clarificação desse “olhar” com que, inegavelmente, o leitor actual mais se identifica.
Facilmente se consegue caracterizar no seu segundo romance, O Memorial - pertencente, por conseguinte, ainda à fase prestigiada da produção de lsherwood - , agora traduzido, esta forma de sensibilidade e de “olhar”.
O romance procura entender, através da descrição da evolução das diversas ramificações de uma família, as mutações comportamentais e civilizacionais que a I Guerra Mundial provocou na sociedade inglesa. O autor parte do princípio que esta guerra esgarçou o tecido social e que o confronto com a morte originou, também dentro da sociedade, grupos de “vencidos” e de “vencedores”, de gentes que se resignaram a ser dirigidas pelo tempo ou que com ele se afirmaram.
De modo bem interessante, esta temática reflecte-se na própria estrutura de O Memorial. Este divide-se em quatro “livros”, situados em distintos anos da década de vinte, mas sucedendo-se de forma não cronológica; as personagens são introduzidas na trama sem apresentações prévias e o leitor é, por isso, obrigado a gradualmente estabelecer as conexões familiares e afectivas; por fim, cada um dos capítulos, em que se subdividem os “livros”, centra-se numa das personagens, o que permite entrecruzar as perspectivas com que cada uma delas se relaciona com as outras. Estas soluções narrativas acentuam a sensação de estilhaçamento da acção que se adequa na perfeição ao clima psicológico e social que a obra deseja exemplificar.
Contudo, as personagens de O Memorial parecem, mesmo quando estão na plenitude da sua vida, eternos adolescentes em constante desajustamento e necessitando de simular as suas angustiantes interrogações num prazer imediatista e “ligeiro” de viver (note-se que não é apenas neste tipo de caracterização das personagens que existe uma curiosa similitude entre a obra de lsherwood e a de F. Scott Fitzgerald). De facto, todas estas personagens parecem ter a consciência de que a dimensão mais trágica da vida é só existirem ilusórias tragédias. Tudo é contingência, fluidez do tempo, e daí o sorriso amargo com que as personagens de O Memorial encaram o destino: os suicídios são falhados ou perdem o sentido que se lhes quer dar, a morte abrupta dos entes amados transforma a viuvez em formas de comiseração que favorecem o desejo de poder e a dor e os orgulhos feridos transfiguram-se em prazeres e em liberdades. Mesmo os afectos são jogos e a existência matiza-se em simulações que, de tão intensamente assumidas, se tornam a palpável realidade em que se encaixa as relações entre as pessoas.
É esta convicção de lsherwood de que os comportamentos são “máscaras” que, de tão coladas a pele, com ela se (con)fundem, que o afasta dos modos de formular as relações intersubjectivas por escritores de gerações anteriores, como, por exemplo, D. H. Lawrence. Assim, se, por um lado, lsherwood entende que aquelas têm sempre tendência para se afirmar pelos códigos estabelecidos pela civilização, por outro, manifesta uma radical desconfiança relativamente aos comportamentos: eles são sempre o sinal explícito de um inevitável compromisso entre pulsões e contingências sociais.
Não há dúvida que a passagem do tempo só tem comprovado a modernidade de um romance como O Memorial. Mais que não seja, porque o labirinto mediático, em que hoje se vive, tornou evidente aquilo que o “olhar” de lsherwood prenunciava: não existe nenhuma forma de amor ou de morte exterior às linguagens que socialmente se constroem.
Publicado no Público em 1990.
Título: O Memorial
Autor: Christopher lsherwood
Tradução: Maria do Rosário Sousa Guedes
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
254 págs., € 8,46