PODEMOS SEMPRE ESPERAR
Há livros que, mal se começam a ler, deixam perceber que se está a tocar algo de essencial. Quer isto dizer que, para lá dos critérios que enformam o seu fabrico - e perante o qual se confronta, por princípio, o juízo crítico -, existe neles um perturbante núcleo que aflora os mistérios da entidade. Está neste caso o romance A Morte De Um Apicultor de Lars Gustafsson, um escritor que é uma das figuras mais influentes da literatura sueca dos últimos trinta anos.
O romance baseia-se, num estratagema muito usual, na compilação de três cadernos onde um apicultor e professor reformado, vítima de um cancro, foi anotando reflexões e considerações avulsas nos seus últimos dias de vida. Mas em poucos romances, com características semelhantes, este estratagema se revela tão eficaz.
A Morte De Um Apicultor começa com a apresentação e a despedida do “narrador” (aqui, tem que se dizer, parece existir um equívoco: quem se apresenta e despede não é o narrador, mas o “editor”, isto é, o responsável pela compilação e ordenação dos referidos cadernos). Percebe-se de imediato que este “Prelúdio” tem um duplo objectivo: primeiro, ficcionar o efeito definitivo que deixou no “narrador” a publicação, mais do que a leitura, dos textos que vão seguir-se; segundo, dar a entender que os textos, onde vai ser introduzido o leitor, são tão radicalmente pessoais que, se a “arte” lá entrasse, efectuaria algo de duvidoso em termos éticos.
Obviamente que esta opção de Lars Gustafsson pode ser questionável e até contestável. De qualquer modo, estas considerações em nada alteram o incómodo impacto dos referidos cadernos.
Estes textos, mais que da morte, tratam da dor. Não de uma dor abstracta ou mesmo metafísica, mas da dor física - donde todas as outras, não nos enganemos, derivam. A dor não só estabelece um registo sem expressão (e são, em particular, interessantes as reflexões cinestésicas do apicultor), onde nem o grito tem sentido, como obriga a um recuo e a um desdobramento: a dor faz descobrir a realidade animal do corpo, como na puberdade, e, perante a difusa abstracção da consciência, este reconhecimento pode tornar-se intrigantemente “confortante”; mas a dor é também uma corrente eléctrica que afecta o olhar, invadindo a paisagem e dando-lhe outra memória. A própria memória hierarquiza, com outro sentido e outra urgência, o vivido: descobre-se, por exemplo, que só se adquiriu realidade na imagem “idealizada” de quem nos amou. Tudo se transforma num todo que dilui, na sua geral materialidade, qualquer identidade.
A dor, mais do que formular a hipótese da morte, oculta-a: a morte só tem realidade social. É isso que o apicultor descobre no silêncio resignado das salas de espera dos hospitais. Quem sofre sabe que se confronta com algo que nada tem a ver com ele, mas com o mistério primordial e último da existência. Com o sofrimento físico nada se aprende: só se constata permanentemente aquilo que é o “leitmotiv” de Lars Gustafsson: “recomeçamos. Nunca nos rendemos”. A prova disso são os próprios cadernos do apicultor e aquilo que os motiva: como a urina fria da rã que o apicultor apanha no caminho, é-se obrigado a segregar o medo.
Perante a intensidade das páginas de A Morte De Um Apicultor, o olhar do leitor é forçado a desviar-se: rapidamente deixa de olhar sobre elas, para olhar com elas. E, em frente, concluir - como elas -, quando mais nada há a afirmar: “podemos sempre esperar”.
Publicado no Público em 1992.
Título: A Morte De Um Apicultor
Autor: Lars Gustafsson
Tradução do sueco: Anabela Diniz
Prefácio: Carl-Gustav Bjustrom
Editor: Asa
Ano: 1992
176 págs, € 1,51