A
IDENTIDADE MATERNA
Uma das cíclicas interrogações que aparece nos cenáculos
literários, tanto nacionais como internacionais, é sobre a morte da literatura
(ou mais especificamente do romance). Colocando já de lado a inutilidade da
questão, um dos aspectos que ela evidencia é o gozo (ou, noutros casos talvez,
o sincero desespero) apocalíptico de alguns humildes mortais, ligados a estas
matérias, se sentirem a “viver” hipotéticas “milenares viragens de páginas da
História” e, por isso mesmo, serem os últimos representantes de uma linguagem.
O que é de estranhar nesta formulação é os seus autores não desconfiarem de um
certo “espírito de época” (nunca se viu, como nos últimos tempos, tantos “fins”
- da História, das religiões, das artes), de continuarem, de um modo irreflectido, a
associar a morte das línguas com a das linguagens (é possível conceber em
termos históricos o fim de uma linguagem?) e de não perceberem que, quando
estão a prever a morte da literatura ou do romance, estão, pelo contrário, a
prenunciar a sua própria morte como leitores.
Porém, tem de se confessar que, por vezes, a leitura de
certas obras, como é o caso de Casa das Mulheres de Álvaro Pombo, “parece” dar sentido a este receio do fim da
literatura e do romance. Álvaro Pombo (n. 1939) é um dos autores mais
conceituados da vizinha Espanha, com uma obra já vasta de romancista, e que
obteve diversos galardões literários, entre os quais o mais recente Prémio
Nacional de Narrativa com este romance agora traduzido. No entanto, Casa
das Mulheres, para além de algumas virtualidades que uma leitura
cuidada pode esforçar-se por desvendar, dá uma primeira impressão de ser um
romance que nasceu “velho”, sem ter
adquirido a sabedoria que o tempo traz.
É certo que o autor já nos habituou a uma certa argúcia na
observação psicológica e a um tratamento particular das personagens,
perspectivando-as segundo um prisma pessoal, o que dá origem, aqui e além, a
algumas asserções que são preciosidades fulgurantes. Mas nem isso chega para
que não fiquemos com a ideia de que Casa das Mulheres não seja uma espécie de teia de aranha,
salpicada de cristais de orvalho, mas totalmente esgarçada e onde o próprio
autor se enredou.
A nossa perplexidade começa logo com o sentido que
mobilizou o romance. Tudo leva a crer que o autor pretendeu delimitar, em termos
romanescos, uma “especificidade do feminino” na Espanha franquista. É esta leitura que consegue dar uma visão
mais integrada e significativa desta obra e que o título original (Donde
las Mujeres) expressa (note-se que o título português parece-nos uma
versão acertada de um título “complicado” para uma tradução literal e
sintomático de um trabalho de inegável qualidade). Mas será ainda estimulante e
criativo formular nos nossos dias um projecto semelhante?
A própria estrutura romanesca transmite ao autor um
estatuto ambíguo. Ao colocar, como narradora do seu romance, uma figura
feminina que, durante a maior parte da acção dramática, se “identifica” com os
valores, as regras e a visão que predominam na “casa das mulheres” onde vive, o
autor parece procurar ocultar a sua “visão masculina”, impossível de
escamotear, por detrás dela - o que não é muito coerente com a sua visão do
romanesco que valoriza a especificidade espaço/tempo como coluna dorsal da
formulação narrativa.
Casa das Mulheres desenvolve-se
sinuosamente através do processo formativo, infantil e adolescêntico, de duas
irmãs, confrontando-o com o estádio de maturidade de outras irmãs - a mãe e a tia
- pertencentes à geração anterior (excluindo, neste caso, uma terceira que
“morre de amor” logo nas primeiras páginas), todas vivendo em duas casas
próximas e isoladas num promontório que as marés transformam em ilha. É
evidente que estas últimas - uma com um comportamento mais excêntrico e
mundano, outra marcada pelo gosto de uma vivência intimista e irrealista e
ocultando-se permanentemente sob um manto de veleidades artísticas -
estabelecem uma órbita de comportamentos que cerca as “jovens” e se torna a sua
constante referência. Mas, tão importante como a interactividade entre estas
duas gerações, é a circulação de diversas figuras masculinas que “visitam” de
um modo cíclico estas mulheres e que povoam o seu imaginário como entes
frágeis, esbatidos e, ao mesmo tempo, determinantes.
De facto, essas figuras masculinas (no seu diverso
estatuto de pais, maridos, amantes e irmãos), na generalidade mais ausentes do
que presentes fisicamente, aparecem como duendes que, com a sua simples
presença e com o estatuto que representam, se transformam nas “estacas” por
onde tem que passar o sinuoso “slalom” do destino destas mulheres. No fundo, os
homens são embaixadores de um universo “exterior” à casa materna que, por um
lado, a condiciona com regras, legais e económicas e, por outro, origina um
certo fascínio entre os seus habitantes que inevitavelmente leva ao seu
desmoronamento. Porém, quando este sucede, o que as sobreviventes fazem (isto
é, as representantes da geração mais nova) é “transportar” os elementos
identificadores dessa casa materna, fundando uma nova.
O que Álvaro Pombo pretende evidenciar, com Casa
das Mulheres, é que existe um
universo-matriz (“a identidade é sempre maternal”, afirma o autor já para o
final do romance) que, ao longo dos tempos, se vai alterando, sem se modificar,
em consequência da contingência que é a presença, no seio desse universo, da “figura
masculina” - como se esta fosse o grão
de areia em redor da qual se forma a pérola da ostra feminina. Por conseguinte,
na mulher, tudo se transforma e nada se modifica, já que ela transporta consigo
a identidade materna.
Publicado no Público em 1997.
Título: Casa das
Mulheres
Autor: Álvaro
Pombo
Tradutor: Luís
Filipe Sarmento
Editor:
Editorial Notícias
Ano:
1997
230
págs., € 5,04