A
EXPOSIÇÃO DO SEXO
A estratégia utilizada nos anos setenta para a irradiação internacional do
romance latino-americano assentou numa opção “uniformizadora”: diluíram-se as
literaturas nacionais sob aquele epíteto (para isso contribuíram muitas
declarações dos próprios autores) e identificou-se este romance com uma única
forma de tratamento narrativo - o chamado “realismo mágico”. Esta opção, se
teve o inegável mérito de contribuir para tornar o romance latino-americano uma
das referências fundamentais na segunda metade deste século, ocultou,
principalmente perante o grande público, as diversas variantes estéticas e
estilísticas da narrativa que já existiam naquelas paragens e, por outro lado,
escamoteou a especificidade das literaturas nacionais, com as poucas excepções
das literaturas argentina, cubana e mexicana. Ora, esta estratégia vitoriosa,
talvez justificável naquela época, branqueou o percurso e o peso de certas
literaturas hispano-americanas, como é o caso, muito particular, da chilena.
Esta novela é um exercício literário em redor de uma pintura do naturalismo
oitocentista que sofreu um percurso assaz bizarro e significativo: trata-se do
pequeno quadro A Origem do Mundo de
Courbet que retrata, com enorme realismo, um sexo feminino. Como o próprio
Jorge Edwards descreve de passagem no seu livro, parece que este quadro foi
encomendado ao pintor por um “bey” turco e durante várias décadas esteve
escondido num gabinete reservado, sob uma portinhola mediocremente pintada com
uma paisagem bucólica. Depois foi passando de proprietário em proprietário até
chegar às mãos de Jacques Lacan, que o guardava na sua casa de campo. Só após a
morte deste, é que a sua viúva, filha de Georges Bataille, permitiu a sua
exposição pública, passados mais de cem anos de ter sido pintado.
Não basta explicar o sigiloso percurso deste quadro pelo seu conteúdo
sexual: existem obras com uma dimensão erótica muito maior que não sofreram
este destino. É certo que não deve existir nenhuma outra obra na História da
Arte que retrate uma vagina com tão minucioso pormenor. Mas, quase de certeza,
a razão fundamental do seu percurso - e a sua dimensão perturbantemente
transgressora - está relacionada com o despúdico “abandono” ao olhar do pintor
que aquele sexo aparenta. E é esta ideia que, de uma forma notória, motivou a
homónima novela de Jorge Edwards.
O enredo da novela é muito simples: um septuagenário médico chileno,
exilado em Paris, e casado com uma mulher mais nova, descobre no espólio de um
grande amigo - um D. Juan fisicamente desgastado pelo álcool que resolvera suicidar-se
- um conjunto de fotografias das suas amantes, onde se encontra o retrato da
sua mulher e uma fotografia de um sexo feminino, mimético do quadro de Courbet,
e cujo modelo ele crê ser também ela. Esta descoberta provoca-lhe a uma tão
perturbante dúvida sobre se a mulher fora de facto amante do seu amigo que leva-o a sentir que
lhe vão soçobrar as forças com a ansiedade.
O aspecto mais interessante da novela de Jorge Edwards é que parte do
pressuposto que a substância do ciúme está associada a uma “imagem obsessiva”:
a disponibilização do sexo do ente amado para outro. A razão principal do
transtorno do velho médico está na “imagem”
do sexo da sua mulher naquela fotografia e no que, de um modo alucinante, parece
representar: a intensidade do desejo dela é tão forte que aceita disponibilizar
o seu apelo erótico à reprodução mecânica e, por conseguinte, ao olhar
clandestino do seu amante. O que aquela fotografia “expõe” é um desejo de plenitude que a personagem principal não conhece no
seu ente amado. E o seu ciúme não é tanto resultante da infidelidade, mas da “revelação”
de uma tal intensidade de desejo de
plenitude na sua mulher que chega ao ponto de deixar “reproduzir” a parte do
corpo que “objectualiza”, em termos simbólicos, o desejo do velho médico. E percebe que
essa “visão” é tão contagiante que, por si só, subjuga (e estimula) o seu
próprio desejo: desde que ela confessa o seu adultério, ele anseia por “encenar”
a situação que deu origem à fotografia, convencido que a disponibilidade assim
revelada pela sua mulher lhe bastará para “absorver” a intensidade do desejo
que, num determinado momento, ela sentiu por outro.
Escrito de uma forma aliciante e fluida, A Origem do Mundo
revela-se um curioso “estudo” sobre o ciúme e o desejo e, em particular, sobre
os mecanismos que levam este a fixar-se, de forma significativa, em objectos e coisas
que são testemunhas empenhadas de uma relação erótica. Longe vai o tempo em que
uma hipócrita moral dominante remetia a temática desta novela para o “ghetto”
simplista do fetichismo...
Publicado no Público em 1997.
Título: A Origem do Mundo
Autor: Jorge Edwards
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur
Guerra
Editor:
Difel
Ano:
1997
143
págs., € 10,60