AS PEDRAS DA SALVAÇÃO
Exemplar desta situação é o caso de Carol Shields, a autora de quem foi
agora publicado o romance A Memória das Pedras. Esta
escritora, nascida na década de trinta e já com um número significativo de
títulos, tem vários romances e “short-stories” passados (pelo menos, em parte) nos Estados Unidos, o que propiciou o seu “perfilhamento” pela
cultura norte-americana. Não admira, por isso, por exemplo, que o romance agora
traduzido tenha recebido o Governor General’s Award for Fiction (o mais
importante prémio literário do Canadá) e, ao mesmo tempo, o Pulitzer Prize,
conseguindo, com este último, obter, pela primeira vez, o reconhecimento
popular para a sua obra e tornar-se nos Estados Unidos, em consequência do
prémio, um "best-seller". A concessão,
já no corrente ano, do Orange Prize (o galardão que premeia a obra de autoras
que tenham sido publicadas em edição inglesa) ao seu último romance, Larry’s
Party, consagrou-a em definitivo e tornou Carol Shields uma das
referências fundamentais da literatura contemporânea de expressão inglesa.
Deve salientar-se, antes do mais, que A
Memória das Pedras é uma espécie de “diário” (esta sua característica é bem evidente no título original: The
Stone Diaries) que narra, desde
o seu nascimento, no princípio do século, a vida de uma mulher, começando pelo
falecimento da mãe (que morreu no parto), atravessando a sinuosa vida do pai,
dos sogros, maridos, filhos e netos, enfim, de toda a gente que, de uma forma
ou de outra, a obriga a “continuar em frente” até ao fim dos seus dias (com que
o romance acaba). Mas um “diário” com um narrador principal distinto da
personagem central e que apresenta uma estrutura complexa, repleta de
recorrências entre situações, de inúmeros narradores secundários, de imenso
material documental (cartas, fotografias, notícias de jornais, discursos, etc.), que manifesta diversos pontos de vista, de quem a rodeia, sobre os acontecimentos e
correspondentes estados psicológicos que condicionaram o percurso da sua vida.
Percebe-se que Carol Shields pretende demonstrar que a biografia exaustiva de
uma figura não é constituída pela simples descrição de um percurso existencial
e da visão que dele tem o seu principal agente, mas também do contexto humano
que funciona como seu contraponto emocional e afectivo, visto que o “olhar”,
expresso ou não, que este último tem dessa figura, condicionará todos os seus
actos.
Os elementos que se evidenciam neste romance são, em complemento a um classicismo
muito particular de construção, uma invulgar argúcia de observação psicológica
e uma belíssima encenação de algumas situações, bem reveladoras do que pode
atingir um grande domínio da arte narrativa (estou a recordar, em particular, a
memorização que efectua o almocreve judeu albanês ao descobrir, após a morte da
mãe no parto da personagem principal, a solidão abissal da criança
recém-nascida e como isso o transforma e motiva a dar sentido à vida ou a do
velho moribundo que, ao cair de colapso no seu jardim, consegue sentir o calor
e a densidade da terra a penetrar na pele das suas costas, antes de morrer).
Porém, o que mais impressiona, em A Memória das Pedras, é a perfeita
assumpção daquilo que se tornou uma constância no romance contemporâneo: uma
obsessiva consciência de que o tempo é não só a “substância” do romance, mas também, como em
qualquer manifestação artística, aquilo que o corrói, e que é no seio dessa
amálgama que irrompe (ou não) o poder de cristalização da arte narrativa.
A forma, contudo, como A Memória das Pedras “trata” o tempo,
pretende corresponder, assumidamente, a uma das principais constantes com que
o romance americano tem encarado esta problemática. De facto, a ficção
americana sempre demonstrou uma magnânima consciência da diversidade da
existência humana e uma imperiosa necessidade de testemunhar o carácter épico
de qualquer vida. Daí que esta literatura (mais do que qualquer outra) faça
ouvir, através das personagens das suas narrativas, um verdadeiro clamor de
homens e mulheres, de crianças e velhos que, pelos canteiros deste mundo,
amaram e trabalharam, lutaram e sofreram com a dignidade que as circunstâncias
lhes fizeram caber em sorte. Talvez que o romance se tenha orientado para este
papel de “testemunho” por ser a forma mais “dramática” de reproduzir a imensa diversidade continental do espaço
americano; mas por certo que esta orientação o transformou na “pedra” basilar
onde se gravam essas existências contra a erosão do tempo: a estratégia
narrativa, através da adequação à vida que contém, “endurece-se”, ao mesmo
tempo que se torna a “lápide” dessa mesma vida. Neste contexto, o romance de
Carol Shields é de uma enorme ambição: A Memória das Pedras, até
no seu recurso a um certo classicismo, pretende não só dar continuidade a esta
tradição da literatura americana, mas, em particular, construir um modelo
narrativo que, de algum modo, dê uma forma “definitiva” a esta concepção do romance.
Vive-se, realmente, um século glorioso. Talvez não o seja pelas razões mais
previsíveis... mas não há dúvidas que em nenhuma outra época a criação
artística – em destaque a literatura, o cinema e a música popular - terá pretendido
(e, de certo modo, “conseguido”) dar
testemunho de “todos nós”, manifestando o desejo de a todos “salvar” do
esquecimento. Estranha época esta em que a literatura se transformou numa das
principais vias de “salvação”...
Publicado no Público em 1998.
Título: A Memória das Pedras
Autor: Carol Shields
Tradução: Maria do Rosário Monteiro
Editor:
Editorial Presença
Ano:
1998
317
págs., € 15,86