A FICÇÃO DOS EQUÍVOCOS
Desde
as suas primeiras obras, nos finais da década de vinte, que Evelyn Waugh
provoca reacções contraditórias entre os leitores e os críticos: por um lado, é
considerado um dos mais brilhantes humoristas da literatura inglesa e um
estilista destacado numa geração que inclui ficcionistas como Greene, Orwell e Isherwood;
por outro, como um escritor bem “irritante”, cujos romances disfarçam mal uma
perspectiva conservadora e marcadamente desajustada para compreender as dinâmicas
sociais deste século.
Esta
última forma de encarar Evelyn Waugh tem razões objectivas: o escritor nunca
procurou esconder o seu catolicismo militante nem a sua defesa de uma ordem
social que aceita o ancestral posicionamento de topo da aristocracia. Os biógrafos
e analistas pretendem explicar este esforçado empenhamento pela sua conversão tardia
(Evelyn Waugh era anglicano e só em
adulto, já com obra publicada, se tornou um fiel
servidor da Igreja Romana) e pela sua origem numa “middle-class” que se
habituou, com reverência, a admirar as qualidades da nobreza. No entanto,
talvez se deva encarar Evelyn Waugh – para o melhor e para o pior - como um
escritor genuinamente britânico que sempre entendeu que as melhores virtudes civilizacionais
do seu povo estavam num distanciamento displicente e humorado das diversas problemáticas
da sociedade contemporânea e num rusticismo aristocrático, educado e compreensivo.
Scoop, o romance
agora traduzido com o título de Enviado Especial, foi dos que, desde
a sua edição original, mais dividiu os críticos. Bem característico da segunda
fase da obra do escritor (que vai desde Vile Bodies, 1930, até ao início, em
1952, da publicação da trilogia Sword of Honour - exceptuando-se, no
entanto, deste conjunto, pelas suas características distintas, o romance Reviver
o Passado em Brideshead), onde pretende demolir, pelo humor, certo “modus
vivendi” do chamado “mundo moderno”, este romance foca o universo dos jornais,
em especial a sua ânsia de notícias, por motivos de competitividade e captação
de públicos.
Enviado
Especial é construído segundo o modelo clássico de
humor que assenta no encadeamento constante de equívocos, transformando toda a
acção num crescendo de situações absurdas, que, por fim, se revelam eficazes e
adequadas à resolução da situação problemática originária. Esta resolução aleatória
provoca sempre uma inevitável desvalorização, pelo ridículo, da situação e do
universo que a criou, tornando-se, assim, óbvio o objectivo de toda a estratégia
narrativa. No caso vertente deste romance, a acção desencadeia-se com a confusão
do editor “do internacional” de um diário londrino que envia, como repórter
especial para um país africano em guerra civil (percebe-se, sem nunca ser
nomeado, que esse país é a Abissínia), um obscuro correspondente de província,
em vez de um escritor de sucesso com nome idêntico. No entanto, a inexperiência,
acerca do mundo do jornalismo e da política internacional deste repórter
ocasional, permite-lhe descobrir, um pouco com a clarividência dos cegos, que a
guerra civil é um acontecimento “forjado” pelos jornalistas e que a realidade
do país é diametralmente diferente. Consegue, deste modo, um “furo” jornalístico
que satisfaz em pleno o diário, a ponto de este, sem ter ainda descoberto a confusão
original, pressionar o governo britânico para que conceda ao repórter um título
de nobreza.
Esta
trama possibilita a Evelyn Waugh desferir as suas setas mordazes sobre um
conjunto de “realidades” que encara como sintomáticas do “declínio e queda” da
civilização ocidental: a mundanidade de certos meios da “elite” urbana que, em
consequência do seu poder económico e político, tem capacidades de manipulação das
necessidades de informação do público; o papel de um matriarcado que, dado o
seu ascendente sexual sobre as figuras masculinas, transforma os afectos em domínio
ou num mesquinho aproveitamento material; a incompetência e a mediocridade de
um jornalismo disposto a “caçar notícias” só com a intenção de aumentar as
vendas e reforçar o seu prestígio; a introdução de modelos políticos ocidentais
em África, provocando situações de fácil oportunismo e profunda corrupção, etc.,
etc.
Face
a certas situações actuais, parece que a recuperação deste romance tem toda a
pertinência. Creio, contudo, que esta perspectiva é mais um equívoco a juntar
ao conjunto de equívocos com que Enviado Especial é construído. Nesse
aspecto, a sua conclusão é reveladora: face ao “mundo moderno”, a melhor
atitude é regressar a uma existência contemplativa, resignadamente satisfeita
com os amenos e inconsequentes conflitos caseiros de uma ampla família.
Alguém
poderá, com bom senso, dar crédito a um “olhar crítico” cuja alternativa
redentora é o retorno a um tempo fechado que a dinâmica social há muito fez
desmoronar e tornou arqueológico?
Publicado no Público em 1991.
Título: Enviado Especial
Autor: Evelyn Waugh
Tradutor: Luis Almeida Campos
Ano: 1991
Editor: Bertrand Editora
304 págs., esg.