CICATRIZAR
Por vezes, o tempo
parece que sofre uma ferida profunda e que deixa de crescer. Para que ela
cicatrize, é necessário exorcizar o tempo que ficou para trás dessa ferida. Mas
para muitos já é tarde de mais, já envelheceram e não têm ânimo para recuperar:
ficam irremediavelmente presos a esse tempo, espectros em vida, memórias palpáveis
de algo que já não existe.
A Terra Onde o
Tempo Parou, a última “autobiografia mistificada” de Bohumil Hrabal
a ser traduzida (a classificação é do próprio autor), é uma tentativa de
compreender, através de uma saga familiar, gentes expurgadas da história. Neste
sentido, esta novela, ao evocar essas gentes que duplamente morreram, é, como
toda a efectiva criação, um exorcismo da morte, urna forma particular de
cicatrizar as feridas que atingiram a Checoslováquia deste século: a ocupação
nazi, a implantação do Estado socialista.
À primeira análise,
para quem leu Comboios Rigorosamente Vigiados ou Eu Que Servi o Rei de Inglaterra,
esta novela não traz nada de novo ao que se conhece da obra de Bohumil Hrabal.
Mas esta constatação é verdadeira e falsa. Todos os romances e novelas deste
autor estão muito interligados e prolongam-se uns nos outros (não admira por
isso que, por exemplo, o tio Pepin, personagem determinante de A Terra
Onde o Tempo Parou, ressuscite em As Núpcias na Casa, um romance
posterior ainda não traduzido). Bohumil Hrabal escreve e reescreve as suas
obras (correm varias versões dos seus romances no seu país natal) num autêntico
exercício terapêutico em que, ludibriando a memória com a imaginação, recria um
tempo próprio, transfigurado. O exercício, como qualquer modalidade terapêutica,
repete-se na forma e no estilo, mas é a própria repetição que possibilita a
Bohumil Hrabal construir constantes (e inesquecíveis) variantes de personagens
e situações com que povoa um tempo que é um reflexo aquoso do passado.
É comum salientar-se
a originalidade do humor de Bohumil Hrabal — e hoje já não há a menor dúvida em
afirmar, com segurança, que ele é um dos maiores humoristas deste século. Mas
poucas vezes vi referido como esse humor está relacionado com o trabalho que o
autor exerce sobre a sua memória e o seu passado. E esse trabalho de
reactualização e recriação do passado que provoca em Bohumil Hrabal uma aguda consciência
da forma como a morte redimensiona as existências. O humor é resultante desta
compreensão de que o logro é o elemento essencial do humano e que, por
consequência, tudo e nada tem uma infinita importância. Por isso, o humor de
Bohumil Hrabal nunca reduz ou caricaturiza, antes, de um modo constante, afirma
a absoluta dignidade de se ser imperfeito.
Mesmo romances tão
nostálgicos como A Terra Onde o Tempo Parou são, por conseguinte, atravessados
por uma truculenta alegria que é uma das mais espantosas expressões de vida na
literatura contemporânea. Quando o pai Francin regressa do asilo onde foi
despedir-se do tio Pepin, que, a morrer, se interroga pelo “que será do amor”,
sabe que o tempo do deão que se excitava a cheirar o traseiro das criadas, das “belas
meninas” dos bares que o tio Pepin cativava com danças espalhafatosas e
conselhos de “higiene sexual”, do talhante que clamava pelas ruas da terra a
chegada do Armagedão e da sua mulher de imensa cabeleira perfumada, etc., o seu
próprio tempo, já desapareceu e que não lhe deram as chaves para abrir o novo.
Por isso, em cima de uma ponte sobre o Elba, pegou no chapéu de marinheiro com
que o tio Pepin seduzia as “belas meninas” e lançou-o ao ar; o boné brilhou ao
sol e caiu sobre a corrente sem se afundar, deslizando até ao mar e deixando-lhe
uma “lembrança luminosa”. É essa luz que indica ao pai Francin qual o lugar da
morte na vida; e é essa luz que os romances de Bohumil Hrabal ajudam o leitor a
descobrir, antes de chegar o momento de ficar com os seus olhos definitivamente
vítreos.
Publicado no Público
em 1990.
(Foto do Autor de Hana Hamplová).
(Foto do Autor de Hana Hamplová).
Titulo: A Terra
Onde o Tempo Parou
Autor: Bohumil Hrabal
Tradução: Ludmila
Dismanová e Mário Gomes
Editor: Ed. Afrontamento
Ano: 1990
131 págs., € 6,56