TOUT
DIRE
Uma
preocupação ferocíssima de sinceridade, eis o que apetece afirmar de imediato
sobre a obra de Raymond Guérin. E, de tal modo premente, que revolvia o seu
modo de escrever: este ficava sujeito, em termos estilísticos, a essa
necessidade de rasgar os enquadramentos éticos com que a literatura, até então,
procurava, pretensamente, revelar o “real”. Era, para utilizar uma expressão do
próprio autor, o desejo de “tout dire”.
Uma
ansiedade comum que movia também, por outra via, a produção literária dos seus
amigos, mais afortunados, Curzio Malaparte e Henry Miller. Mas o público seu
contemporâneo — Raymond Guérin viveu entre 1905 e 1955 e a maior parte dos seus
livros saíram no período logo após a II Guerra Mundial — etiquetou, a tentativa
do autor de instaurar um realismo mais intenso, de “sórdida” e “obscena”, não
entendendo esse seu projecto de reinscrever a realidade numa perspectiva mais
orgânica, mais visceral, em suma, mais corporal. E rejeitou a sua obra,
rodeando-a de silêncio e esquecimento.
Além
disso, o leitor coevo de Raymond Guérin também não entendeu que esse
afrontamento da realidade, rompendo as conveniências éticas e estilísticas,
tinha um outro objectivo: conseguir retirar da narração dos perfis contextualizados
em situações-limite os arquétipos necessários para delinear um novo “corpus”
mítico. Nesse sentido, o seu último romance, Les Poulpes, ao ficcionar
a sua experiência nos campos de prisioneiros de guerra nazis, onde passou três
anos, é, no pessimismo trágico das situações descritas, o que mais corresponde
aos seus parâmetros estéticos.
Por
isso, as personagens a que Raymond Guérin dá voz e fala em A Pele Calejada, agora
apresentada ao leitor português numa excelente tradução de Luiza Neto Jorge, vão
confessando-se como meros corpos vivos, fazendo a sua aprendizagem mortal do
destino. Personagens mal nomeáveis, negações da excepção: as mesmas, cujos
gestos e voz, Viviane Forrester considerava, num belíssimo e recente livro, La
Violence du calme, como grãos da poeira sussurrante que faz a História
e o tempo.
Clara,
Jaquina, Luísa. Três irmãs, três corpos de mulheres, cuja pele ainda estremece com
o sofrimento, ainda não calejou (calejar a pele era o argumento do pai para justificar
a pancada que lhes dava), que se esquivam, como podem e sabem, à malha de morte
que lhes querem fazer vestir: a fome, os ritmos desenfreados de exploração, a
repressão judicial, o amor sem desejo, os filhos não queridos, os abortos, a
doença.
Mas
presas acossadas, desarmadas pelo querer dos outros. Que as vampiriza: pais,
patrões, polícias, juízes, amantes. Forçadas, desde a infância, a só
reconhecerem a sobrevivência como modo de estar, impelidas para a
marginalidade, como se fosse inerente â sua condição de mulher tudo o que lhes
irá acontecer.
Estas
figuras femininas, sobressaídas do silêncio ruidoso destas páginas, pretendem
não ser apenas “voz”, mas “deusas”, representando um exército de sombras que o
silvo do tempo teima em silenciar e que Raymond Guérin procura, com o desespero
da palavra escrita, manter, a todo o transe, os contornos do rosto e do corpo.
A
partir de um texto publicado no JL-Jornal
de Letras, Artes e Ideias em 1982.
Título: A Pele Calejada
Autor:
Raymond Guérin
Tradução:
Luiza Neto Jorge
Editor:
Assírio & Alvim
Ano: 1982
96
págs., esg.