OS ÚLTIMOS CARGUEIROS
Desde sempre
entendido como uma representação material da aventura, o cargueiro era a
concreta hipótese de viver a poesia do longínquo e do exótico. Os modernistas,
e, em particular, os futuristas, encaravam-no como o símbolo das possibilidades
mundializantes que a técnica concedia ao homem. Na obra de Joseph Conrad (uma
sistemática referência neste Ultramarina), o cargueiro torna-se o
lugar privilegiado para um confronto radical entre o carácter e a adversidade,
entre o Homem e o Mal. Mas todo este ciclo de certo modo se encerra com alguns
textos de Jack Kerouac da década de cinquenta (e que Ultramarina também
prenuncia), onde se revela que a aparente dimensão de aventura do cargueiro se
resume a uma brutal precaridade de quotidiano, feita de cansaço, monotonia e
carência.
Neste
livro de Malcolm Lowry, o cargueiro, como figura literária central, é o
“transporte” que proporciona um conjunto de actos iniciáticos: primeiro, porque
é ele que satisfaz a exigência existencial de dissolução do indivíduo na Natureza,
isto é, na infinitude do mar, única imersão que permite compreender
profundamente o específico lugar do Homem na hierarquia do universo; segundo,
porque as exigências duríssimas da vida do mar servirão como veículo de integração
social ou como meio de descoberta do outro.
Toda a
estrutura romanesca de Ultramarina se desenvolve em redor
das atitudes ambivalentes que o marinheiro Dana Hilliot, a personagem
principal, tem face a essas provas rituais por que resolveu passar. Porque se a
viagem no cargueiro lhe permite o mergulho cósmico no mar e na noite, que lhe
transforma o olhar, também lhe provoca todo um conjunto de carências que o
impele a perder-se nos diversos portos, nesse universo comum de putrefacções,
fome e sífilis, onde atraca. O porto torna-se assim o lugar do Mal (figura que é
uma notória referência à obra conradiana), esse espaço nocturno de álcool e comércio
sexual onde, procurando abandonar os fantasmas da sua adolescência, Dana
Hilliot se arrisca.
Por
outro lado, este roteiro de iniciação entre o Belo e o Horror cruza-se com um difícil
processo de descoberta do outro. Um outro que, para Dana Hilliot, é um bifronte
(feito de Janet, a amada que deixou em Liverpool, e Andy, o cozinheiro, por
quem se sente fascinado, mas que tem, perante ele, uma atitude sistemática de
desprezo e rejeição), exigindo vias de aproximação dolorosamente antagónicas:
uma feita de actos gratuitos de heroísmo e de uma aprendizagem sexual realizada
através da prostituição, forma de se afirmar numa comunidade de homens e de granjear
o respeito e a admiração de Andy, e outra estabelecida na fidelidade à palavra
fundadora da sua relação com Janet que não lhe permite maculá-la com um acto
sexual de circunstância.
Este
simples (e frágil) quadro de conflitos deixa-nos perceber que Ultramarina
é um romance de formação. Mas é esta tipificação que nos revela aquilo que, já
neste romance, é fundamental para Malcolm Lowry: a certeza de que todo o processo
de afirmação existencial é um mero ordenamento de um conjunto de impulsos, estímulos,
referências, enfim, de sinais que a névoa da memória associa até estabelecer um
código pessoal, identificante e transmissível. A obra romanesca torna-se,
assim, um “work in progress”, a representação material da elaboração desse código.
Ultramarina é,
paralelamente, em estritos termos literários, uma obra onde se afina a intensa
musicalidade de um estilo que atinge o seu apogeu nesse romance único que é Debaixo
do Vulcão - estrela que transforma todas as restantes obras de Malcolm
Lowry em seus meros satélites
.
Pelas
suas características estilísticas, onde se associa desde a gíria marítima a
formas eruditas de discurso, este romance levanta notórias dificuldades de
tradução que Fernanda Finto Rodrigues, com a sua longa experiência
profissional, consegue resolver, na generalidade dos casos, de uma forma equilibrada.
Publicado
no Expresso
em 1986.
Título:
Ultramarina
Autor:
Malcolm Lowry
Tradutor:
Fernanda Pinto Rodrigues
Editor:
Livros do Brasil
Ano: 1986
261
págs., € 5,05