O DESPERTAR DO MEDO
A
receptividade da crítica e do público à obra ficcionista de William Golding
tem-se revelado bastante irregular e são, sem dúvida, resultantes dessa
flutuação, as objecções à concessão do Prémio Nobel a este autor. Mas perante a
dimensão criativa, no contexto da literatura inglesa e universal, do seu
primeiro romance, O Deus das Moscas, agora reeditado pela Portugália, numa
excelente tradução de Luís de Sousa Rebelo, toda esta discussão “cosmopolita”
se revela bem irrelevante.
Remetendo
para uma longa tradição inglesa (que vem desde Swift e Defoe), William Golding
constrói uma parábola que pretende situar as motivações para o social do Homem:
um grupo de crianças, em consequência da queda de um avião, encontra-se perdido
numa ilha deserta e paradisíaca, e é obrigado, para sobreviver, a gerar uma
sociedade, em que a “adulta”, a estabelecida, só existe como reminiscência desejada.
Um
búzio, tocado por Rafael, reúne os sobreviventes e motiva a primeira assembleia
que estabelece o objectivo social fundamental - manter sempre acesa uma
fogueira como sinal de existência para o exterior e para a salvação -,
tornando-se na representação simbólica do poder: aparecem assim as primeiras instituições
orientadas para atingir um objectivo colectivo.
Mas,
passado um primeiro momento de certeza e de felicidade, o “medo” do que
não se entende, a “fera” desconhecida que torna
todos perecíveis, alastra por todo o grupo, fazendo rebentar conflitos que até aí
estavam apenas latentes e que gangrenam os ainda
mal delineados corpos sociais.
Face a
este espectro, duas atitudes existenciais se confrontam: uma, representada por
Rafael, que pretende, nunca perdendo de vista os objectivos sociais definidos,
colocar dentro dos limites de uma certa racionalidade a própria dinâmica
produzida no grupo pelo medo; a outra, representada por Jack, que, ritualizando
o desejo sangrento de matar, pretende obliterar, de um modo irracional, todos
os terrores.
Esta última
atitude, embriagando o grupo num festim de sangue e fogo, faz desabrochar
instintos primordiais e revela-se mais forte e anímica pelo gozo brutal que
transmite de asfixiar o que não se entende. Os naturais inimigos desta atitude
são, por isso, inconscientemente eliminados: Simão ou a capacidade de tornar
inteligível o que os outros temem mesmo formular; Bucha ou a capacidade
criativa e pragmática de concertar as energias colectivas.
Simão,
de um modo profético, intuíra qual a fera que todo o grupo temia: a aparente
soberania do acto de matar e o destemor irracional perante a morte, ocasionando
o desrespeito pelo Outro como necessário desconhecido. Era este o deus das
moscas que existe em cada um e que, desde que se transforme em dominante em
termos colectivos, leva à consumação da racionalidade que fundamenta o social:
a perseguição de Rafael, garante fiel da fogueira, e a devastação da ilha são o
inevitável culminar de todo este processo.
É supérfluo,
portanto, o pessimismo que apontam estas páginas de William Golding. É natural
que a ascensão de formações socio-políticas totalitárias e a própria II Guerra
Mundial tenham condicionado, pela ambiência produzida, a gestação deste
romance. Mas o que nele ressalta é a caracterização pertinente do que mais
profundo existe na própria dinâmica socio-política - e, neste aspecto, torna-se
um contraponto interessante à obra de Orwell.
Saliento,
por fim, o importante prefácio de Luís de Sousa Rebelo, situando O
Deus das Moscas no contexto da literatura inglesa e analisando-o com
rigor. Pena é que esta reedição apressada não tenha permitido reactualizar um
texto com mais de vinte anos.
Publicado no Expresso em 1984.
Título: O Deus das Moscas
Autor: William Golding
Tradução (e prefácio): Luis de Sousa Rebelo
Editor: Portugália Editora
Ano: 1984
266 págs., esg.