A CARICATURA INÚTIL
Uma boneca
insuflável, tipo “tamanho natural”, de órgãos sexuais perturbantemente
permissivos, é içada pela polícia, por meio de uma grua, dos caboclos de um
edifício, e ao ser apertada, sofre, perante a perplexidade das autoridades e
antes de rebentar, uma mágica mutação sexual que a transforma num ser de uma
enorme exuberância fálica: é provável que o leitor, ao deparar com situações
romanescas como esta, se sinta impelido, no silêncio da sua leitura, a rebentar
numa sonora gargalhada, a ponto de deixar os seus familiares receosos com a sua
sanidade mental. E é também natural que o leitor se sinta inclinado a
classificar o seu livro, repleto de peripécias semelhantes a esta, como uma
obra de “literatura humorística”.
É este o epíteto
que é dado à obra literária de Tom Sharpe, um autor que viveu alguns anos na
África do Sul, escrevendo algumas obras satíricas sobre o apartheid, mas que só
granjeou um enorme sucesso a retratar ambientes britânicos, e que é considerado
como um dos actuais continuadores de uma longa tradição inglesa, que vem desde
Chaucer e Swift, deste género literário. O exemplo que sumariamente narrámos é
retirado do seu romance Wilt, agora traduzido, e é uma das inúmeras
situações romanescas que pretendem ser hilariantes.
O humor,
mesmo quando conseguido, é uma faca de dois gumes: tanto pode ser encarado como
uma das técnicas estilísticas mais envolventes e estimulantes, sinal até de uma
capacidade superior de auto-análise, como, por outro lado, se pode transformar
num mecanismo feroz de amesquinhamento do real.
É difícil
perceber por completo com que intenções funciona o humor em Wilt.
Não se pode dizer que seja, como, por exemplo, na primeira literatura
modernista, um “reprodutor de sentidos”, desbravando caminhos estéticos novos e
criando pontos de perspectiva que possibilitem inovadoras percepções do mundo e
do homem. Nem, por outro lado, que exista um sentido predeterminado que oriente
o efeito literário do humor para objectivos precisos, de forma a que o leitor
se confronte com a perspectiva subjacente à obra.
Caricaturar,
como no caso de Wilt, as possibilidades de uma presente permissividade, a ânsia
de procurar, mesmo que de forma superficial, novos entendimentos que racionalizem
certo mal-estar contemporâneo e as instituições, mais ou menos conseguidas, de
formação e integração social, sem se inteligir qual o seu sentido crítico e
pretendendo apenas criar um efeito hilariante no leitor, parece-nos, contudo, confinar
a literatura a um projecto redutor de diversão.
É certo
que Tom Sharpe revela possuir notáveis capacidades estilísticas, conseguindo
construir os diálogos com fluidez e encadeando com habilidade peripécias
divertidas, algumas delas resultantes de uma observação arguta. Mas não será muito
pobre fazer de um romance um simples levantamento de mediocridades, de sombras
crápulas de nós próprios, para vir acentuar que tudo “isto” não passa de um
carnaval onde os dramas individuais são meras máscaras de fantoches?
Publicado
no Expresso em 1987.
Título: Wilt
Autor: Tom Sharpe
Tradutor: Ana Mafalda Telo
Editor: Teorema
Ano: 1987
225 págs.,
€ 14,90