“EVEN
WHEN YOU ARRIVE, YOU’RE GOING BACK AND FORTH”
A Zadie Smith, e ao seu romance “White Teeth”, donde retirei esta frase
para o título.
Habitualmente, inclui-se nesta visão as
literaturas das Caraíbas (ou Antilhas), não só as que foram produzidas nos
diversos tipos de crioulos, mas também as que foram e são escritas nas línguas
dos países colonizadores (o inglês, o espanhol, o francês e o neerlandês), que
se tornaram, após as independências, línguas nacionais, e com um alcance mais global.
No entanto, pode constatar-se,
utilizando os indicadores disponíveis (os Prémio Nobel concedidos, por
exemplo…) que não são poucos os autores naturais das Caraíbas com projecção
internacional. Dir-se-á que este facto deriva em grande parte da língua
utilizada por estes autores ser o francês e o inglês e de possuírem, antes do
mais, a nacionalidade francesa e britânica. Mas, de qualquer forma, é
indiscutível que esses autores nunca perderam as profundas ligações que têm aos
seus locais de origem e que essas ligações são bem explícitas nas suas obras. E
o número de autores com estas características é tão significativo que se tornaria
fastidioso estar aqui a enuncia-los.
Na minha opinião, as considerações do
pós-colonialismo ganham muito mais sentido e ressonância se procurar perceber
como a realidade “material” afectou a produção discursiva da literatura, mas
também de outras manifestações artísticas, das Caraíbas. Basta um superficial “olhar”
pela situação social, económica e política que a região das Caraíbas viveu (e
vive) nas últimas décadas para perceber a dimensão e a profundidade das
sequelas que lá deixaram o colonialismo e o neo-colonialismo. A violência
social, a miséria crónica da maioria da população, o desrespeito completo pelos
mais elementares direitos humanos, a permanência de um Estado, seja em modelos
ditatoriais seja em modelos ditos “democráticos”, que apenas existe para
satisfazer a avidez cega de “famílias” já per si ricas e poderosas, fazem,
desta região, um dos palcos mais sinistros da história contemporânea. E não
vale a pena assinalar aqui e ali uma ou outra excepção, pois esses casos só vêm
tornar ainda mais gritante a regra geral: e essa é que os Estados, nesta
região, são encarados pela grande maioria da população como “gangs” de
criminosos a evitar e não como entidades constituídas para proteger e promover
o bem-estar da comunidade.
As Caraíbas, pela mais obscena das
razões, tem sido objecto do interesse cíclico da comunicação social europeia e
americana: a sua voraz necessidade de sangue para inebriar audiências tem feito
com que “corra” a noticiar as crónicas intempéries (terramotos, inundações,
tempestades tropicais, etc.) que assolam esta região, provocando milhares e
milhares de mortos. Mas raramente essa mesma comunicação social se interessa
por entender e explicar os “reais” motivos dessas destruições de vidas humanas
e do ambiente, que, obviamente, não estão tanto nas catástrofes naturais, mas mais
no profundo subdesenvolvimento destas sociedades, na miséria em que está
mergulhada a enorme maioria da população e na incapacidade de “responder” de
forma cabal a essas calamidades.
Ora, toda esta situação,
naturalmente, determinou, não tanto a qualidade ou a quantidade da produção
literária e artística, mas, em particular, o modo como se processa a produção
discursiva nestas manifestações (veja-se, a título de exemplo, a relevância que
tem nas Antilhas a “pintura naïf” e como os artistas contemporâneos têm vindo a
reequacionar este património); e, consequentemente, obriga a procurar entender
de outra forma esses discursos, abdicando de abordagens assentes em modelos
canónicos ocidentais.
Estas constatações resultam da minha
leitura de uma obra de um escritor do Haiti (o romance intitula-se “L’Énigme du
Retour”, e o autor é Dany Laferrière), e de perceber que pouco se sabe da realidade
deste país, e muito menos da sua literatura, principalmente fora do espaço
francófono. E este facto levou-me, mais uma vez, a reflectir sobre os
mecanismos culturais que motivam o interesse pela leitura de uma obra literária
(e a quase inevitável propensão “nacionalista” com que se fazem essas opções)
ou ainda sobre a fundamentação do modelo com que se constrói a história
literária (mais assente no impacto e/ou projecção de uma obra ou de um autor,
isto é, em critérios, em boa parte extraliterários, do que em valores
intrínsecos à própria obra).
Lembro que a história contemporânea do
Haiti dá-lhe certas peculiaridades que o destacam dos restantes países da
região e da América Latina, como, por exemplo, ser, depois dos Estados Unidos,
a primeira colónia americana a tornar-se independente, ter “nascido” de uma
revolta de escravos e ser, provavelmente, por isso mesmo, um dos primeiros
Estados a abolir a escravatura. Mas, durante o restante séc. XIX e todo o séc.
XX, o que caracterizou a vida política deste país foi a permanente
instabilidade, com inúmeras rebeliões, conflitos rácicos entre mulatos e
negros, golpes de Estado militares e guerras com a vizinha República Dominicana
(que “motivou” uma ocupação dos Estados Unidos). Lamentavelmente, a única
excepção nesta constante instabilidade foi no período em que o poder foi
ocupado por duas das ditaduras mais brutais e sangrentas do continente americano:
os Duvalier, pai e filho (os famigerados “Papa Doc” e “Baby Doc”), que se
mantiveram no poder durante cerca de trinta anos, suportados por milícias e
“esquadrões da morte” (os famigerados “Tonton Macoute”, que se mantiveram no
“activo”, mesmo depois do fim das ditaduras dos Duvalier), objectivamente
acusados de vários massacres de populações civis e de oposicionistas. Nos
últimos trinta anos, depois da saída do poder, em 1987, dos Duvalier, o Haiti voltou
de novo à ininterrupta instabilidade política, transformando-se cada vez mais
num “protectorado” dos Estados Unidos, com este país a interferir permanentemente
no “caos” da sua política interna.
É esta história, associada a uma endémica
corrupção e a pilhagens constantes das riquezas públicas por parte das famílias
próximas do poder político, que justifica o gravíssimo subdesenvolvimento do
Haiti, cuja maioria da população vive esmagada pela penúria e pela fome. Os
indicadores de desenvolvimento socio-económico e cultural deste país, apresentados
pelos organismos internacionais, comprovam, em todos os aspectos, que ele se
encontra numa enorme fragilidade, sendo um dos países mais subdesenvolvidos do
globo. Hoje, o Haiti subsiste à custa da assistência pública internacional;
mas, até nessa perspectiva, a situação é dramática, pois muitas dessas
entidades, com o seu enorme exército de técnicos e “especialistas”, vivem, como
os próprios haitianos mais esclarecidos o afirmam, de forma parasitária em
redor da situação de carência de toda a ordem das populações, sem, no entanto,
alterar de forma eficaz a presente situação.
Com este cenário, não admira que os
haitianos se vejam obrigados, desde que tenham meios para o fazer, a uma
crónica emigração, incluindo, naturalmente, as suas elites culturais que se
sentem em absoluto incapazes de sobreviver no seu país, acossadas pela miséria circundante
e por bandos de assassinos. E, integrando esta elite, obviamente os seus
escritores.
Ora, tendo em conta tão precárias
condições de subsistência, não se pode afirmar que a literatura haitiana tenha
um valor displicente. Pelo contrário, pode dizer-se que é, sem sombra de
dúvida, uma das mais florescentes das Caraíbas. Porém, como se percebe, uma boa
parte dos autores mais reconhecidos vive no exterior do Haiti (em França, no
Canadá e nos Estados Unidos) e escreve em francês ou, em menor grau, em inglês.
De facto, mesmo não sendo língua oficial (essas línguas são o crioulo haitiano,
falado por toda a população, e o francês, falado apenas por cerca de metade
dela), o inglês, decorrente da enorme diáspora para os Estados Unidos e Canadá,
e ainda, possivelmente, como consequência secundária do ascendente dos Estados
Unidos na vida pública haitiana, tem sido utilizado por alguns escritores
relevantes, como é o caso de Edwidge Danticat (n.1969), uma narradora radicada
nos Estados Unidos, que tem obtido o reconhecimento da crítica e do público
(recordo que ganhou, entre muitos outros prémios e consagrações, o
prestigiadíssimo Prémio Neustadt, em 2017, para o conjunto da sua obra).
Quanto aos autores em língua
francesa, destaco os nomes de Jacques Roumain (1907-1944), militante comunista
e autor de um dos romances essenciais (“Les Gouverneurs de la rosée”) da
literatura haitiana, René Depestre (n. 1926), principalmente reconhecido como poeta, mas que também
é um importante romancista e ensaísta, Frenkétienne (n. 1936), poeta e
dramaturgo, além de pintor e músico, o magnífico e malogrado romancista Jacques
Stephen Alexis (1922-1961), Jean Métellus (1937-2014), também reconhecido como
poeta, Yannick Lahens (n. 1953), Louis-Philippe Dalembert (n.1962) e o já
referido Dany Laferrière (n.1953).
Este autor, exilado em Montreal desde
os anos setenta, já com mais de duas dezenas de títulos publicados, adquiriu,
desde a edição do seu primeiro romance (com o saboroso título de “Comment faire
l’amour avec un nègre sans se fatiguer”), em meados da década seguinte ao
início do seu exílio, um reconhecido sucesso tanto no Canadá como em França, logrando
vários prémios (entre eles, o Prémio Medicis com este romance que agora li,
“L’Enigme du retour”) e doutoramentos “honoris causa”, concedidos por
universidades francesas, canadianas e americanas. A coroar este percurso
literário, foi eleito para a Academia Francesa em 2013, sendo o segundo membro
desta Academia a não ter a nacionalidade francesa (o outro foi Julien Green).
Em resumo, Dany Laferrière é hoje considerado como um dos mais importantes
autores da francofonia.
Uma característica inteiramente
assumida na obra de Dany Laferrière é o seu caracter autobiográfico. É, por
isso, compreensível que a sua obra se centre na temática do exílio, da situação
dos exilados nos países de acolhimento e da sua relação com o país de origem. Mas,
aceitando o pressuposto que a autobiografia é um registo convencionado, o autor
estabelece uma constante dialéctica com a memória, abrindo-se dessa forma à autoficção.
Pode, assim, afirmar-se que, ao
confluir na mesma entidade a figura de autor e de narrador, há a intenção, por
parte de Dany Laferrière, de questionar a própria figura do autor, procurando
“iludir” ou “apagar” a personagem real, concreta, com a nova entidade criada: o
autor pretende perenizar nesta figura do narrador/autor a sua própria imagem.
Ora, é neste contexto que “L’Enigme
du retour” funciona como uma espécie de culminar de toda a sua obra ou, pelo
menos, como uma peça-chave de um percurso literário. E, talvez por isso, tenha
sido tão bem recebida no mundo literário de língua francesa.
A trama do romance é, na aparência,
muito simples e escreve-se em duas linhas: o narrador/autor recebe, a certo
momento da sua vida, um telefonema a informá-lo de que o seu pai morreu; e percebe
que isso é um “ponto de ruptura” que o obriga a contextualizar o seu passado e
o seu percurso. Para isso, sente necessidade de entender essa figura paterna
cuja morte lhe foi anunciada e que ele mal conheceu e, com ela, o Haiti da sua
infância e adolescência.
Mas para perceber as “repercussões”
desta decisão (e são essas “repercussões” que vão constituir a componente
estrutural do romance), tem que se explicar que este pai, rigorosamente
homónimo do narrador/autor, foi obrigado a fugir do país, por temer pela sua
vida, em meados da metade da década de cinquenta, para os Estados Unidos, em
consequência da sua oposição ao regime de “Papa Doc”; vinte anos depois, pelas
mesmas razões, o filho, o narrador/autor, foge também do Haiti, para um exílio
no Canadá, agora receando os Tonton Macoute de “Baby Doc”. Entre pai e filho
(pois o pai fora obrigado a fugir quando Dany Laferrière tinha apenas quatro
anos) ficou somente as narrativas da sua mãe e da sua avó e dos amigos
militantes do pai.
Percebe-se ainda que a tentativa de
compreender a personalidade do pai, leva o narrador/autor a tentar situar-se em
relação ao Haiti da sua infância e adolescência, aceitando, em grande parte,
que esta é uma entidade mítica e fruto do imaginário pessoal. Por isso mesmo, o
narrador/autor percebe que este “regresso” não é uma simples viagem de captação
da presente vivência dos espaços e lugares onde viveu. A sua dimensão
“iniciatória” obriga-o a confrontar essa experiência com a paisagem (e até o
clima) do lugar de acolhimento (a Montreal gélida ou, no sentido mais amplo, o
Norte), onde no essencial viveu os últimos trinta anos.
Assim, decide deslocar-se, numa
espécie de deriva preparatória, para outras regiões do Canadá e dos Estados
Unidos, estacionando, em particular, em Brooklyn, onde o pai vivera e acabara
por morrer, recolhendo os seus últimos e poucos pertences (o que inclui uma
mala depositada em seu nome num banco em Manhattan, que o narrador/autor
abandona, pois não a consegue abrir e sente que é um sofrimento inútil
descobrir o que lá está…), falando com amigos e familiares e procurando
perceber quem era “aquele” pai que morreu rigorosamente só. Ao mesmo tempo que
faz esta deambulação de “luto e despedida”, o narrador/autor sonha… pois
percebe que a actividade onírica é uma forma “oculta” de visitar esses mesmos
espaços e lugares sem ser reconhecido, um pouco como a entrada “clandestina”
nos lugares que a sua imaginação “recriou” e que necessita de ter presente e
vivo na sua consciência para os confrontar com o país real.
Como bagagem, leva apenas o “Cahier
d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire, um clássico fundamental da
literatura antilhana, que serve como apoio mágico e referência na procura de
compreender o seu lugar original.
Perceber o Haiti. Perceber, na imagem
cristalizada do passado, a sua beleza terrífica e sedutora (é muito curioso e
interessante que o narrador/autor, entre as diversas qualidades e atributos do
pai, destaque a sua capacidade de sedução – atributo necessário para o seu
papel de líder), na aridez quase extática dos lugares e na aparente serenidade
dos homens, mergulhados na mais negra fome e à espera do crime anónimo que lhes
silencie o sofrimento.
Para isso, como referi, o autor vai
necessitar de utilizar todos os seus recursos e abordagens. Um deles é,
naturalmente, perceber as manifestações culturais do seu povo, em particular, a
sua pintura “naïf”, assim como a literatura, uma componente determinante do seu
país imaginário.
Esse regresso ao Haiti vai, assim,
transformar-se num ritual exorcista próximo da liturgia vudu: saber qual é o
lugar dos “mortos” (o pai, um certo país chamado Haiti, repleto de amigos, mas
também de castas rácicas, de miseráveis e de assassinos) e, principalmente, se
eles continuam ou não a conviver com os vivos.
O resultado dessa “peregrinatio ad
loca infecta” é compreender que todos estes “países”, todas estas formas de
entender o Haiti, coexistem, tal como coexistem, no mesmo reino, os vivos e os
mortos. E que o seu lugar, o seu lugar de autor/narrador é estar em permanente
deriva: a nenhum lugar pertence porque a todos pertence.
É também esta certeza que o
autor/narrador descobre no olhar silencioso do seu sobrinho que o acompanha no
périplo pelo Haiti: a de que ele irá inevitavelmente seguir os passos do seu
pai e de ele próprio, e que o sobrinho, ao acompanhá-lo, está também a
preparar-se para abandonar o Haiti. Há um destino, uma verdade irredutível, na
sua condição de haitianos que os leva a permanecer em trajecto, sempre cá e lá,
vivendo presos ao seu lugar de origem, mas em constante fuga para outro lado.
O que fica deste caminho? Um livro,
que utiliza todos os registos, do poético à narrativa, do ensaio ao
levantamento geográfico e etnográfico, um conjunto de espectros circulando
entre o amor e o absoluto silêncio. E a dor, a dor de um destino imparável,
entre a fuga e o regresso, entre o exílio e a amarga sobrevivência.