domingo, 26 de fevereiro de 2012

MICHEL TOURNIER



GENERALIDADES INCARACTERÍSTICAS


Michel Tournier tem afirmado em diversas entrevistas que o principal objectivo da sua obra romanesca é a reelaboração de mitos, ancorados numa dimensão o mais possível concreta, mesmo que situados em circunstâncias temporais e espaciais já difíceis de conceber e visualizar. É inegável que a concretização deste objectivo, particularmente conseguida em obras como Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico, Os Meteoros ou O Rei dos Álamos, ao efabular simbolicamente questões de ordem filosófica, funcionou, dentro da literatura francesa, como um desvio e um questionamento estético da narrativa realista, principalmente como vinha sendo formulada pelo chamado “nouveau roman”.

No entanto, aquilo que hoje mais fascina na obra romanesca de Michel Tournier é a forma como certas personagens parecem corporizar uma energia polimorfa, uma espécie de plasma vital que as une ao cosmos e de que estas se alimentam de uma forma placentária. É esse pan-erotismo, essa promiscuidade primordial, que dá um comportamento intrigantemente ambíguo a certas personagens, transformando-as em "novos mitos", uma vez que suspendem no leitor - para usar uma recente definição de Milan Kundera - qualquer juízo ético.

Semelhantes considerações talvez permitam compreender melhor por que é que o último livro traduzido deste autor, Uma Ceia de Amor, provoca tão profunda desilusão.

O livro, numa espécie de introdução intitulada "Os Amantes Taciturnos", apresenta um casal que resolve separar-se, após anos de incomunicabilidade, concebendo a realização de uma ceia como forma de anunciar publicamente essa sua intenção e onde os convidados deverão contar uma história relacionada com o amor. Só que este tema tão genérico vai permitir que se sucedam todo o tipo de histórias, desde um louvor à evolução dos perfumes à narrativa de um parricídio, passando por reformulações do Natal ou uma poética evocação dos amores de Pierrot e Columbina. Rapidamente se percebe que não existe qualquer estratégia narrativa coerente entre a introdução e a restante sucessão de histórias e que, por isso, este livro é uma simples compilação de contos e narrativas encapotada de romance.

De facto, é muito duvidosa - e não só esteticamente - a forma como se procurou "embrulhar" este conjunto de histórias e narrativas avulsas. Além disso, elas são, na sua generalidade, de um valor francamente pouco mais do que circunstancial. É certo que são servidas pelo proverbial virtuosismo estilístico deste autor e a sua versátil capacidade de aludir e intrigar - e que a tradução de Miguel Serras Pereira consegue transcrever soberbamente para a nossa língua; mas não há dúvida que esse hábil manejo da utensilagem retórica é sintomático da principal "facilidade" em que pode tombar um autor como Michel Tournier: na convicção inebriante de que a reelaboração dos mitos é um simples problema de estilo.

Poucas páginas de Uma Ceia de Amor recordam o autor dos romances acima referidos. De qualquer modo, com justiça, há que salientar a história intitulada "Lucie ou a mulher sem sombra", onde se retrata a figura de uma professora que, bloqueada no caos da infância, envolve os seus alunos numa ternura liquefeita, desordenada, iniciando-os deste modo nos códigos obscuros da existência. Ou, na já citada história introdutória, o personagem de um escultor que, na vazante, junto ao Mont-Saint-Michel, constrói as suas estátuas de casais jacentes e se extasia com a sua dimensão fugaz, ao prever o efeito voraz das vagas do mar sobre as imagens que esculpiu.


(Publicado no Público em 1992)


Título: Uma Ceia de Amor
Autor: Michel Tournier
Tradução: Miguel Serras Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
229 págs., € 14,10




sábado, 25 de fevereiro de 2012

CARMEN MARTÍN GAITE 2



OS SUBÚRBIOS DA MORTE


A publicação em Portugal dos últimos romances de Carmen Martín Gaite tornou possível que esta autora fosse conhecida no nosso país como nenhum outro escritor da chamada geração do “meio século” espanhol. Este facto, mesmo ponderando todos os méritos literários da sua obra, parece um pouco “injusto”, principalmente tendo em consideração que esta geração conta com nomes tão distintos como Luis Martín-Santos, Ignacio Aldecoa, José Manuel Caballero Bonald, Jesus Fernández Santos, Ana Maria Matute, Juan Benet, Rafael Sanchez Ferlosio, Garcia Hortelano, Juan e Luis Goytisolo, Juan Marsé e Francisco Umbral. Convém destacar que se deve a esta geração literária uma viragem decisiva nas letras espanholas, visto que, partindo ainda de uma perspectiva realista e de uma atitude crítica em relação à sociedade, optou por técnicas narrativas que estilhaçaram o modelo oitocentista e introduziu estratégias e problemáticas decorrentes do quadro estético e teórico da modernidade.

É inquestionável que, tendo ainda como referência o seu contexto geracional, Carmen Martín Gaite conseguiu, principalmente nas últimas duas décadas, um sucesso comercial que a transformou numa verdadeira instituição literária e editorial no país vizinho (em particular, após o sucesso comercial que foi o ensaio Usos Amorosos de la Postguerra Española). Decerto que as principais constantes temáticas que aparecem espelhadas na sua obra não são estranhas a este sucesso: uma previsível preocupação com a estrutura emocional e afectiva da mulher numa sociedade fortemente patriarcal como a espanhola, uma atenção muito centrada no modo como as feridas da memória e a incomunicabilidade podem, a todo o momento, fazer descer a lucidez abaixo da linha de água da realidade e, como pano de fundo permanente, uma irredutível perplexidade com a absurda condição da existência.

Mais uma vez, o último romance de Carmen Martín Gaite editado no nosso país, O Estranho É Viver, não escapa a esta problemática. Saliente-se que este título parece programar toda a encenação dramática da obra, o que por si só não seria criticável, se este artifício de glosa não fosse, muitas vezes, demasiado explícito e condicionante.

Como visão geral, pode afirmar-se que O Estranho É Viver é um romance sobre o luto. A trama desencadeia-se com a visita da narradora - uma arquivista, ex-compositora de música “rock”, que, de uma forma obcecada, mas um pouco diletante, se dedica a investigar a vida de um aventureiro setecentista espanhol que morreu nos calaboiços por ser incapaz de distinguir a realidade dos seus próprios delírios - à clínica onde está internado o avô, já moribundo e com quebras de consciência. Aí, vê-se confrontada com a solicitação do médico para que aceite, por compaixão, substituir a mãe, que também faleceu recentemente e com quem ela mantinha uma relação difícil, nas visitas ao doente, de molde, a que este, nos últimos dias de vida, não sofra o doloroso impacto da morte da sua filha.

Esta situação obriga a narradora não só a um obsessivo confronto com a memória da mãe, como a embrenhar-se nos espaços em quem ela viveu e com as personagens com quem conviveu, mergulhando-a num dia-a-dia alucinado que a coloca à beira da loucura. No fundo, sente-se transportada para territórios que ficam sob a sombra da “asa da morte”, dando-lhe uma visão fulgurante do valor específico da existência.

Toda a acção divagante da narradora ao longo de O Estranho É Viver tem, por isso, um duplo sentido: primeiro, “prepará-la” para assumir, por momentos, o papel da mãe e conseguir, através do “médium” perturbado que é o avô, ouvir o que nunca ouviu da boca da mãe e dizer-lhe o que nunca disse (e o verdadeiro “clímax” do romance, que é a última visita ao avô, atinge uma “intensidade” que é verdadeiramente invulgar na já vasta obra de Carmen Martín Gaite), num “ajuste de contas” que, por um lado, é mortífero, por outro, redentor, já que liberta a sua consciência emocional das “teias da morte” e a predispõe a viver a sua própria existência; segundo, porque, no meio daquele período em que a narradora sente um impulso imperioso para se enredar no devaneio, em se isolar ou em mentir, esta compreende como a “realidade espectral” da morte está profundamente enraizada na consciência de cada um (e, por isso mesmo, a “estranheza” da vida de que fala o título deste romance). O que a narradora percebe, através do insólito da experiência que está a viver, é que, ao contrário da concepção clássica que entende a morte como o estádio que apaga qualquer significado à vida, o reino da morte é uma imensa planície enevoada a perder-se no tempo e a vida uma “periferia” que, pela sua simples existência, dá sentido a tudo, até à própria morte.

Por conseguinte, O Estranho É Viver, ao pretender ser uma reflexão sobre a dimensão da morte, revela-se uma obra de um enorme optimismo (saliente-se que até a conclusão do romance - em que, como sinal da sua pacificação com o passado, a narradora engravida – poder-se-ia transformar num “cliché” sentimentalista, se a autora não conseguisse, através de uma segura economia narrativa, tornar a situação aceitável). Em conclusão, este romance sobressai com uma das obras mais conseguidas e interessantes que Carmen Martín Gaite realizou nos últimos tempos, e onde, curiosamente, até alguns dos seus defeitos estilísticos e narrativos mais comuns (uma certa propensão para dissolver a estrutura da obra num registo de divagação incontrolada e a opção por dinamizar a trama com situações no limite do plausível) estão bem integrados e legitimados.


Publicado no Público em 1998.


(Foto da Autora de EFE)



Título: O Estranho É Viver
Autor: Carmen Martín Gaite
Tradutor: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1997
233 págs., € 12,62




domingo, 12 de fevereiro de 2012

CARMEN MARTÍN GAITE 1



RESTOS DE UM NAUFRÁGIO


Eis um romance que nos transmite, antes do mais, uma sensação de incómodo. Como se o leitor ficasse numa situação de desequilíbrio entre o abismo da banalidade e o fulgor de paisagens que - para utilizar uma referência querida a Carmen Martín Gaite - se fixam na memória como uma das infinitas imagens que, de facto, nos personalizam.

Tudo se deve a um projecto claramente assumido e - para quem conhece um pouco o percurso literário da autora - particularmente coerente: toda a produção narrativa de Carmen Martín Gaite se insere num quadro que imbrinca, de modo constante, a estrutura romanesca com o discurso de pendor autobiográfico, de registo intimista, mas também testemunhal. E é nesta concepção do romanesco, assumida diversas vezes pela autora em termos teóricos, que advêm as fragilidades e, ao mesmo tempo, as mais fascinantes capacidades discursivas de um romance como Nebulosidade Variável.

Veja-se, por exemplo, o título. Quem se lembrará, passados cinco anos de ter lido este romance, de um título tão incaracterístico como este? Confesso que eu, mesmo quando o estava a ler, tinha dificuldades em recordar o título sempre que me questionavam sobre as minhas leituras do momento. Depois, a própria estrutura narrativa: haverá coisa mais singela do que construir um romance de forma epistolar entre duas amigas, muito íntimas na infância e na adolescência, mas que passaram a sua vida adulta sem se ver e, de súbito, sentem necessidade de regressar ao mesmo nível de cumplicidades? Alternando de forma sistemática o narrador e o destinatário, cada capítulo de Nebulosidade Variável é constituído por uma “carta”. Contudo, pela sua dimensão e pelo seu tipo de construção, genuinamente romanesca, estes capítulos parecem tudo menos cartas... E, por isso, a autora, logo no início do romance, “se esquiva” em parte a este artifício: estas cartas deixam de ser enviadas, vão servindo para encher inumeráveis cadernos que se darão a conhecer ao seu destinatário num derradeiro encontro entre as duas amigas.

Compreende-se que um discurso confessional assume outra significação e exigência quando tem um destinatário explícito. Mas haveria necessidade de legitimar a existência deste através do artíficio tão primário das cartas?

Felizmente que a capacidade de análise psicológica e de construção de situações verosímeis e interessantes de Carmen Martin Gaite consegue, a maior parte das vezes, fazer esquecer a pobreza da estrutura de Nebulosidade Variável. Estas duas figuras de mulher “de meia-idade”, uma, dona de casa vivendo uma relação conjugal assente numa incomunicabilidade intransponível e consciente da carência que lhe provoca a irremediável autonomia afectiva dos seus filhos adultos, outra, psiquiatra e solteira, saturada de relações amorosas falhadas e de analisar as fissuras emocionais e afectivas dos outros, têm uma densidade, nas suas fragilidades e nas suas convicções, nos seus deslumbramentos pelos pequenos prazeres diários e nas suas amargas constatações daquilo que o desfiar ininterrupto do tempo as fez perder, que rapidamente provocam a empatia do leitor e fazem com que ele se integre no clima de cumplicidade que as duas amigas têm entre si.

É evidente que estas personagens cedo se revelam como as duas faces de uma mesma moeda e que a autora claramente nelas se desdobra para assim estabelecer o diálogo que dentro de si efectua. Não é por acaso que sobre este romance paira a sombra tutelar de Fernando Pessoa e, em particular, pelo seu permanente deslizar discursivo de tema para tema, de O Livro do Desassossego... Para não falar das reminiscências pessoanas que tem o ambiente do romance, em que a vida é sempre assumida como um contínuo desperdício entre momentos perfeitos e intensos do passado (e que só são perfeitos e intensos porque "são" passado) e uma “ordem” que pertence a algures que não a vida.

Percebe-se, assim, porque é que, entre as inúmeras imagens que funcionam como estímulo narrativo de Nebulosidade Variável, aparece a da vida como espelho quebrado. No desfiar dos dias, é-se sempre assaltado por emoções e sentimentos, acasos e coincidências, imprevistos embates do passado contra o presente, que obrigam a que se tenha de ser uma “lebre sempre atenta” às manobras do caçador/tempo para conseguir manter irrompível a fina e elástica membrana que não nos deixa afundar na loucura. E nesse jogo de sobrevivência aparece a literatura como “strip-tease solitário”, constantemente reiniciado, que procura juntar os estilhaços desse espelho de forma a que de novo seja possível rever-se nele sem se ficar desfigurado.

E regressamos à incomodidade. Sabemos que esta geração literária espanhola do chamado “meio-século”, da qual Carmen Martín Gaite é uma das figuras proeminentes, “ensopou-se” nesse património definitivo deste século a que se dá o nome de existencialismo e que nos demonstrou até à saciedade que, por excesso de sentidos possíveis, a vida não tem sentido. Não será, no entanto, demasiado redentor, para os dias que hoje nos cabem, esta concepção da literatura como território algures que dá um sentido residual à “terra de ninguém” da vida?

(Publicado no Público em 1996)

(Foto da Autora de IES Carmen Martin Gaite)
 

Título: Nebulosidade Variável
Autor: Carmen Martín Gaite
Tradução: José Carlos Gonzalez
Editor: Difel
Ano: 1996
378 págs., € 15,65