GENERALIDADES INCARACTERÍSTICAS
Michel Tournier tem afirmado em diversas entrevistas que o principal objectivo da sua obra romanesca é a reelaboração de mitos, ancorados numa dimensão o mais possível concreta, mesmo que situados em circunstâncias temporais e espaciais já difíceis de conceber e visualizar. É inegável que a concretização deste objectivo, particularmente conseguida em obras como Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico, Os Meteoros ou O Rei dos Álamos, ao efabular simbolicamente questões de ordem filosófica, funcionou, dentro da literatura francesa, como um desvio e um questionamento estético da narrativa realista, principalmente como vinha sendo formulada pelo chamado “nouveau roman”.
No entanto, aquilo que hoje mais fascina na obra romanesca de Michel Tournier é a forma como certas personagens parecem corporizar uma energia polimorfa, uma espécie de plasma vital que as une ao cosmos e de que estas se alimentam de uma forma placentária. É esse pan-erotismo, essa promiscuidade primordial, que dá um comportamento intrigantemente ambíguo a certas personagens, transformando-as em "novos mitos", uma vez que suspendem no leitor - para usar uma recente definição de Milan Kundera - qualquer juízo ético.
Semelhantes considerações talvez permitam compreender melhor por que é que o último livro traduzido deste autor, Uma Ceia de Amor, provoca tão profunda desilusão.
O livro, numa espécie de introdução intitulada "Os Amantes Taciturnos", apresenta um casal que resolve separar-se, após anos de incomunicabilidade, concebendo a realização de uma ceia como forma de anunciar publicamente essa sua intenção e onde os convidados deverão contar uma história relacionada com o amor. Só que este tema tão genérico vai permitir que se sucedam todo o tipo de histórias, desde um louvor à evolução dos perfumes à narrativa de um parricídio, passando por reformulações do Natal ou uma poética evocação dos amores de Pierrot e Columbina. Rapidamente se percebe que não existe qualquer estratégia narrativa coerente entre a introdução e a restante sucessão de histórias e que, por isso, este livro é uma simples compilação de contos e narrativas encapotada de romance.
De facto, é muito duvidosa - e não só esteticamente - a forma como se procurou "embrulhar" este conjunto de histórias e narrativas avulsas. Além disso, elas são, na sua generalidade, de um valor francamente pouco mais do que circunstancial. É certo que são servidas pelo proverbial virtuosismo estilístico deste autor e a sua versátil capacidade de aludir e intrigar - e que a tradução de Miguel Serras Pereira consegue transcrever soberbamente para a nossa língua; mas não há dúvida que esse hábil manejo da utensilagem retórica é sintomático da principal "facilidade" em que pode tombar um autor como Michel Tournier: na convicção inebriante de que a reelaboração dos mitos é um simples problema de estilo.
Poucas páginas de Uma Ceia de Amor recordam o autor dos romances acima referidos. De qualquer modo, com justiça, há que salientar a história intitulada "Lucie ou a mulher sem sombra", onde se retrata a figura de uma professora que, bloqueada no caos da infância, envolve os seus alunos numa ternura liquefeita, desordenada, iniciando-os deste modo nos códigos obscuros da existência. Ou, na já citada história introdutória, o personagem de um escultor que, na vazante, junto ao Mont-Saint-Michel, constrói as suas estátuas de casais jacentes e se extasia com a sua dimensão fugaz, ao prever o efeito voraz das vagas do mar sobre as imagens que esculpiu.
(Publicado no Público em 1992)
Título: Uma Ceia de Amor
Autor: Michel Tournier
Tradução: Miguel Serras Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
229 págs., € 14,10
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