quinta-feira, 14 de junho de 2012

THOMAS MANN 1



O PERFUME DA BURGUESIA



Em 1909, quando Thomas Mann publicou o seu segundo romance, este Sua Alteza Real agora traduzido e editado no nosso país, já era reconhecido, por causa de Os Buddenbrooks, como o romancista da decadência (imagem que se irá ainda reforçar com o aparecimento, em 1913, de Morte em Veneza) e, ao mesmo tempo, como um analista dos valores, potencialidades e limites do “pensamento burguês”.

Esta caracterização do autor, que acompanhou toda a sua longa carreira literária, tinha, no entanto, nesta época inicial da sua obra, uma muito maior pertinência. Nesta altura, evidenciava-se de facto, na reflexão de Thomas Mann, a preocupação em compreender os moldes como se processava a passagem de testemunho entre as classes que tiveram a inevitabilidade histórica da liderança social e política.

Percebe-se, assim, melhor qual foi um dos objectivos de Thomas Mann ao redigir Sua Alteza Real: o de elaborar uma obra que funcionasse como contraponto (e complemento) a Os Buddenbrooks. Enquanto esta obra é uma ampla saga, construída segundo o mais perfeito modelo do romance oitocentista, da decrepitude e do esgotamento social de uma entidade (a família Buddenbrook), Thomas Mann vai escrever, com Sua Alteza Real, uma parábola optimista, em jeito de “conto de fadas”, que visa esclarecer qual o contributo essencial da burguesia para a revitalização do tecido social e político de regimes que, nascidos com a implantação dos princípios liberais, vão subsistir até à I Guerra Mundial e cujos exemplos mais típicos são a Alemanha kaiseriana e o Império Austro-Húngaro.

No entanto, foi este tom ligeiro, de comédia suavemente humorada, que condenou de uma forma irremediável este romance: não só, à altura da sua publicação, Sua Alteza Real teve um tremendo insucesso (provocando no próprio autor uma crise de confiança que o levou a duvidar das suas capacidades criativas), como ainda hoje é, de longe, a obra menos conhecida e mais minimizada de Thomas Mann. Lamentavelmente, porque este romance é bastante revelador do pensamento histórico do autor antes da I Guerra Mundial e porque se podem perceber nele, em embrião, os princípios em que assentará essa obra maior do percurso intelectual de Thomas Mann que é Considerações de um Apolítico (1918).

Sua Alteza Real narra o processo de formação de um príncipe, futuro herdeiro de um grã-ducado arruinado, e a aproximação, e, por fim, o casamento com uma filha de um milionário americano. É óbvio que este “enredo” simples alude à aliança aristocracia/burguesia, característica dos regimes atrás referidos, assim como se reporta à transmissão gradual de liderança num quadro, de conflitos atenuados, determinado pelas próprias necessidades temporais.

Mas nenhuns destes aspectos, demasiado notórios, dão o sentido principal desta obra. Este realça-se do confronto entre a formação do príncipe e aquilo que nesta vai ser introduzido pela sua relação com a “burguesa rica”.

Toda a formação do príncipe é uma dolorosa preparação para assumir um estatuto formal de estrita representatividade. A sua existência deverá ser orientada “para os outros”, no sentido em que estes têm de reconhecer nele a excepcionalidade que permita aceitar com agrado a sua situação de súbditos, originando a imprescindível coesão social. E o empenho existencial para assumir essa função de representatividade tem tão elevada significação social que o príncipe é obrigado a anular-se como sujeito: para ele, não há nenhuma forma de existência “exterior” ao seu estatuto. É este o ensinamento que o prof. Uberbein, o principal mentor intelectual do príncipe, lhe incutiu e que apreendeu do papel que a aristocracia (por integrar toda uma cadeia de poderes e representatividades) a si própria se deu e cumpriu durante o Antigo Regime.

Perante a atitude formal do príncipe, o comportamento da filha do milionário americano representa a expressão plena da individualidade e da subjectividade, encarando-se estas como substância de qualquer existência: para ela, não existe afirmação social (e, por conseguinte, efectiva representatividade) exterior à afirmação pessoal. O namoro e o noivado são, no essencial, estratégias sentimentais com que a “jovem burguesa” incute graduais transformações de comportamento no príncipe, de molde a este “desformalizar” a sua existência. O que ela pretende do príncipe é que este se transforme num “sujeito”, dando um conteúdo, e não somente uma forma, ao seu estatuto. Por fim, o suicídio do prof. Uberbein e, naturalmente, o casamento entre as duas personagens principais vão ser a consagração histórica desta atitude; por outro lado, a rosa, que, ao longo dos séculos, no pátio interior do palácio principesco, floria de uma forma magnífica, mas com odor a podre, e que, depois do casamento, volta a ter perfume, assinala a convicção de Thomas Mann nas infindáveis virtualidades desta atitude individualista, genuinamente burguesa.

Esta ingénua convicção, derivada de um certo romantismo sentimental, vai sofrer um embate brutal com os sangrentos acontecimentos da I Guerra Mundial. A “crise de criatividade” que Thomas Mann quis ver em Sua Alteza Real não é tanto uma crise do próprio autor, mas o desmoronar da concepção das relações sociais e de poder de toda uma época. Foi aquele conflito mundial que de facto reduziu este romance à imagem de um simples documento sintomático de um período e que obrigou Thomas Mann a nuancear toda a sua reflexão histórica e a prepará-la para outros percursos.


Publicado no Público em 1990.



Título: Sua Alteza Real
Autor: Thomas Mann
Tradução: Ana Maria Reltoff
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
317 págs., € 10,04


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